A atualidade de "O 18 brumário" no golpe e na crise política brasileira.

Introdução

Embora pareça muito pretensioso tal aproximação: a de um mero diletante interpretar tamanho clássico e, a partir dele, buscar entender a crise política que assola o país, escrevo ainda sim, este texto, sabendo de minhas limitações teóricas e de minha ignorância introdutória. Deste modo, não proporciono aqui, ao leitor, uma esplêndida análise metodológica de vasto rigor teórico; mas sim, um texto reflexivo, que busca associar a realidade concreta atual – da crise estrutural política brasileira - com a perspicácia da análise de Karl Marx em "O 18 Brumário de Luís Bonaparte".

Diversos clássicos poderiam também interpretar a atual condição política do Brasil. Pois, como descreve Carlos Nelson Coutinho: "O traço distintivo de uma obra clássica, (...) reside em sua capacidade de não envelhecer, de manter o valor universal atual dos seus ensinamentos, mesmo após o desaparecimento dos fatos concretos de que trata.". De Maquiavel á Weber, teríamos vários pontos de encontro dos livros com a realidade atual. Porém, é no 18 brumário que a atualidade, de nossa crise política, se faz mais presente.

A Obra

Escrito entre dezembro de 1851 a março de 1852, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, por Karl Marx, trata-se de um clássico e um marco de suas obras. Pois, é composto massivamente pelo método de interpretação político-econômico-social: o materialismo histórico dialético e de suas concepções de Estado. Como égide central da obra: esta a interpretação de Marx, ao Golpe de Estado de Luís Bonaparte, do qual, demonstra "como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar um papel de herói.". (MARX, p.8, 1969).

Assim, este clássico texto que revela a concepção marxista ao Golpe de Estado, se faz plenamente válido ao tempos atuais de nossa politica.

Marx inicia seu clássico, parafraseando Hegel, ao dizer que: "todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes (...) a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa."(p.17) . Deste modo, segue:

"Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. (...) quando parecem empenhados á revolucionar a si e as coisas, (...) os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens..." (p.17-8)

Ou seja, Marx demonstra como o movimento histórico trata-se de um movimento materialista e dialético, que inicia-se sob uma estrutura vinda do passado - "as circunstâncias". Utilizando-se deste pressuposto, o autor, demonstra como Bonaparte em 1852, parodia seu tio Napoleão de 1804, com um golpe de Estado. Deste mesmo modo, vemos com as "roupagens do passado" desmoronar a politica brasileira com mais um golpe. Assim faz-se do golpe civil-militar de 1964, a tragédia; e do golpe parlamentar de 2016, a farsa.

Entre os pontos de encontro, de realidade e teoria - encontramos o mais óbvio: o primeiro golpe francês, assim como o brasileiro: foi militar; da mesma forma, que o segundo golpe foi parlamentar em ambos países. Mas este é apenas um mero, dos diversos pontos compatíveis com a análise marxista e a realidade, da qual, vivemos. Os outros, seguem abaixo em tópicos para melhor compreensão:

O apoio burguês aos Golpes de Estado e a própria destruição de sua republica "democrática".

Em 1964, houve a famosa marcha da "Família com Deus pela liberdade", contra as reformas populares de João Goulart – da qual, tratava-se de um claro apoio das famílias burguesas por sua destituição, afinal, tais reformas, como a agrária, batiam de encontro com a ordem latifundiária dos grandes proprietários burgueses. Com o golpe, as marchas seguiram e foram denominadas como "marchas da vitória". Este mesmo apoio burguês para com um golpe de Estado, fora visto no último ano de 2016, com as manifestações mediadas pelos grupos direitistas, como por exemplo, o MBL - (o Movimento Brasil Livre), onde que, do mesmo modo, que a classe burguesa de 1964 que confrontava as reformas populares, a classe de 2016 confrontava-se (e confronta-se) com os programas sociais.

Karl Marx, demonstra-nos que o golpe de Luís Bonaparte em 1852, também foi colaborado pelo movimento burguês na sociedade civil, do qual, durante a formulação da Republica Burguesa naquela época e em busca de confrontar a classe proletária - considerada como "partido da anarquia, do socialismo, do comunismo"- formaram o partido da ordem. E assim como os burgueses, daqui, de 64 e de 2016, exclamaram ambos: terem "salvo a sociedade dos inimigos da sociedade". Mas, não era apenas a ilusão de terem salvo a sociedade, que passavam pelas mentes dos burgueses franceses daquela época, como passava (e passa) pelos burgueses brasileiros da nossa; também, seus gritos de: "propriedade, família, religião e ordem", mostram-se completamente semelhantes aos da burguesia brasileira.

Outro ponto de encontro entre as burguesias de ambos países e de ambas épocas, era e é, o rotulo dado ao socialismo e ao comunismo. Basta olharmos este trecho, de Marx, que notaremos a atualidade destes rótulos:

"Toda reivindicação ainda que da mais elementar reforma financeira burguesa, do liberalismo mais corriqueiro, do republicanismo mais formal, da democracia mais superficial, é simultaneamente castigada como um 'atentado à sociedade' e estigmatizada como 'socialismo'." (p.27)

Igualmente, fizeram os burgueses de 1964 ao rotularem João Goulart e suas reformas, como socialistas; e os burgueses de 2016, ao PT (o Partido dos Trabalhadores) e seus programas sociais. Embora, que de socialistas eram apenas os rótulos ilusórios que as burguesias lhes pregavam.

Com isso, a história nos demonstra que ao apoiarem os golpes e rotularem qualquer reivindicação democrática como socialista, a burguesia, corrompe sua própria republica. Para não verem as contradições do capitalismo serem suprimidas pelas mínimas "frestas democráticas", abrem mão de sua republica para o despotismo, seja dos militares; seja a de um ilegítimo presidente. Assim, barraram os burgueses de 64, as reformas de João Goulart; assim barraram a continuidade dos programas sociais do PT; assim desvincularam a nação francesa do parlamento, em 1848. Tendo todas, essas, entregado suas republicas para o despotismo.

O caráter da republica burguesa e os limites dos sociais-democratas.

Após a Revolução de 1848, da qual a burguesia, somada ao proletariado, dava um pontapé na Monarquia de Luís Filipe I. Estabelecia-se na França, a Constituição de sua Republica Parlamentar-Presidencialista; a Republica Burguesa, da qual, era formada pelo partido da ordem – composto pelos antigos monarquistas e toda a classe burguesa; e o partido, denominado por Marx, como Montanha – composto pelos democratas da pequena-burguesia e alguns proletários. Conforme foi citado acima, os burgueses do partido da ordem, para barrar os proletários do parlamento e assim cortar "ela mesma, os músculos que ligavam a cabeça parlamentar ao corpo da nação", decretou Estado de Sitio¹ à Insurreição² dos proletários em junho, daquele mesmo ano, e impediu ao proletariado qualquer participação politica. Além do mais, em sua luta contra o poder Executivo (chefiado por Bonaparte), aboliu também o sufrágio universal e impediu de vez qualquer participação popular.

Deste modo, como disse Marx: "Revelara que aqui republica burguesa significava despotismo ilimitado de uma classe sobre as outras" (p.25).

Porém, como já vimos, estas mesmas limitações burguesas, reforçam a autodestruição de seu poder. Em nosso país, não fora abolida o sufrágio universal (as eleições), mas fora corrompida e rechaçada qualquer mobilização popular, tanto pela mídia, quanto pelas autoridades e pelos grupos burgueses. E o que foi, senão uma declaração de estado de sitio em Brasília, durante as mobilizações de 24 de maio de 2017, quando o presidente Michel Temer, convocou as Forças Armadas contra o povo?

O fato é que assim como na França, a republica burguesa do Brasil, esta idêntica em sua significação. Cada vez, mais o proletário é guiado a se representar pelos ditos "salvadores da sociedade", do qual, impõem seu despotismo. E o partido que surge como o mais próximo do trabalhador revela-se tão limitado quanto a republica burguesa, da qual, faz parte:

A política adotada pelo Partido dos Trabalhadores, no Brasil, corresponde fielmente a crítica de Marx á social-democracia francesa de 1850. Afinal, o que fez o PT no poder, senão: "exigir instituições democrático-republicanas como meio não de acabar com dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e transformá-lo em harmonia."? (p.48). Do mesmo modo, o Partido Democrático francês, limitava qualquer reivindicação proletária.

Dessa maneira, Marx, adverte: "nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, conceito que fazem de si do que são na realidade." (p.45-6)

Assim, viu-se e vê-se que os proletários (os trabalhadores), estão em meio à uma faca de dois gumes: limitados. por um lado, pela Republica Burguesa e, pelo outro, iludidos pela social-democracia. Resta-nos representar-se em nome de si mesmos.

O Bonapartismo de Michel Temer

Dentre as maiores semelhanças entre o texto de Karl Marx e a realidade atual, sem duvidas, estão as estratégias e o caráter dos dois golpistas, aqui, analisados. São inúmeras as semelhanças entre Luís Bonaparte e Michel Temer, cujo, das quais, apenas algumas aqui serão expressas – talvez as outras diversas, sejam aqui introduzidas, posteriormente, ou irão compor um outro texto.

O processo pelo qual Temer atingiu o poder, foi pela aliança de seu partido com o partido mais avançado, naquele momento - cujo, com maior apoio popular e detentor do Poder Executivo, o PT, via a necessidade de aliar-se com o partido de maior valor numérico no Poder Legislativo, o PMDB - (o Partido do Movimento Democrático Brasileiro), para realizar a sua governabilidade. Tal aliança parecia ser a certeza de um caminho limpo, para os interesses e as propostas do governo Dilma. Mas, sendo um mero apêndice do Poder Legislativo (detido pelo PMDB), e não do contrário, bastava-se que o primeiro se enfraquecesse pelos limites burgueses da republica e do imperialismo econômico, para que o segundo tomasse sua frente. Do mesmo modo, que numa linha ascensional, da qual Marx caracteriza o movimento revolucionário da Primeira Revolução Francesa, e que embora, aqui, não se trate de uma revolução e sim de um golpe, seu movimento é bem semelhante ao descrito pelo autor, onde que:

"Cada um desses partidos [referindo-se aos revolucionários franceses], se apoia no mais avançado. Assim impulsiona a revolução [no caso o governo] o suficiente para se tornar incapaz de levá-la [levá-lo] mais além, e muito menos de marchar a sua frente, é posto de lado pelo aliado mais audaz que vem atrás e mandado à guilhotina." (p.41)

Deste modo, fez-se o PMDB e Temer ao PT e o Governo Dilma, impulsionou até o máximo para que se tornasse incapaz e fosse posto de lado. Neste único ponto – o da conquista do poder - difere-se o golpista Temer, de Bonaparte e, ainda sim, encontra-se nessa diferença; certas semelhanças.

A primeira é de que Bonaparte, utilizou-se do preconceito e do analfabetismo político da classe média e dos camponeses conservadores, para ser eleito Presidente da França. Infelizmente esta mesma ignorância (o analfabetismo funcional politico³) assola a classe média brasileira - seu proletariado e seu camponês conservador. Assim como o camponês conservador francês, as classes subalternas brasileiras:

"São, consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome... [Deste modo] Não podem representar-se, têm que ser representados. Seu representante tem, ao mesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e do alto lhes manda o sol ou a chuva."(p.116).

Assim, ganhou Bonaparte a massa francesa; assim, ganhou o PT a massa brasileira, o problema maior é que no núcleo de seu governo reinava um traidor.

Outra semelhança entre a conquista e a manutenção do poder, entre Temer e Bonaparte, estão nas "estratégias napoleônicas" de ambos: Enquanto o segundo dissolveu seu maior limite, a Assembleia Nacional (o Parlamento Francês), por meio de seu Poder Executivo; o primeiro, dissolveu o Poder Executivo (o Governo Dilma), por meio de seu Poder Legislativo. Assim, se Bonaparte comprou os "oficiais e suboficiais [do exército], em seus salões de Eliseu, com charutos e champanha, aves frias e salsichas feitas com alho.", para dissolver a Assembleia e reinar; Temer, comprou (e compra) os parlamentares com jantares luxuosos, para que apoiassem o golpe, seus decretos e propostas; inclusive a sua permanência. Tanto um quanto o outro fizeram "tudo se tornar parte da instituição do suborno. Todo posto do exercito ou na maquina do estado converte-se em meio de suborno." (p.125).

Mas, para se manter no poder em uma Republica "Democrática", deve-se não apenas sensibilizar as células do corpo estatal; deve-se também sensibilizar a massa. Para isso, tanto Temer quanto Bonaparte resolveram "subornar" o povo: Se Luís Bonaparte "propôs a criação de um banco para conceder créditos de honra aos operários"; Michel Temer, decretou os saquês das contas inativas do FGTS, aos trabalhadores. Da mesma maneira, que disse Marx, da ação de Bonaparte, ele diria de Temer:

"Dinheiro como dádiva e dinheiro como empréstimo, era com perspectivas como essas que esperava atrair as massas.[...] Essas eram as únicas alavancas que Bonaparte (e cabe à Temer) sabia movimentar." (p.64)

Por fim, das diversas semelhanças entre ambos, a última diz respeito a ideia, o objetivo, o motivo real tanto do golpe de Temer quanto o de Bonaparte. Ambos: "Como autoridade executiva que se tornou um poder independente, Bonaparte [e Temer] considera sua missão salvaguardar 'a ordem da burguesia'." (p.123). Vendo as pressões neoliberais pela pauta da flexibilização do trabalho, e da política de austeridade, aos países de capitalismo dependente, como o nosso. Tomou Temer, a republica democrática, assim como os militares a tomaram em 1964, para fazerem valer os ditames imperialistas do neoliberalismo. Essa era e é, a missão dos golpistas.

Conclusão

Obviamente, o clássico texto de Karl Marx, revela muito mais da crise de nossa Republica Burguesa, do que, aqui, foi exposto. Porém, conforme foi dito na introdução, trata-se de um texto que busca a reflexão dos fatos com a teoria, e os aspectos aqui destacados exemplificam bem a proximidade de ambos – com isso, tal texto pode ser "alargado" posteriormente, para agrupar maiores aproximações.

O que nos demonstra Karl Marx, assim como a analise aqui efetuada, é de que a Republica Burguesa, dita democrática em nosso país, possui vários limites e frestas para seu poder e também para sua destruição. Sendo constantemente perturbada pela luta de classes, presente na sociedade civil – que é extremamente dividida em suas condições de existência- tenta afasta-la ao máximo de seu palco político. Porém, quando as contradições do capital são questionadas; quando a participação popular demonstra ameaçar sua representação neste cenário, constantemente afastado; os burgueses, abrem mão de suas conquistas republicanas e a entregam-na ao primeiro déspota que aceite segurar o rojão explosivo. Assim, pensa a burguesia, salvar seu poder e o proteger do proletariado; assim a burguesia perde-o para um indivíduo ou para uma oligarquia e torna anos ou séculos para recupera-lo novamente. Como na França em 1852; como no Brasil em 1964 e agora em 2016. Perdeu-se o poder e desmoronou-se a república.

Deste modo, ou a classe trabalhadora assume um papel e inicia-se na sociedade civil uma Insurreição, a lá Paris em Junho de 1848, para destruir de vez as ruínas dessa Republica Burguesa deslegitimada; ou "A história não nos perdoará..."4.

Referência

MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Vol.19. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1969.

Notas :

1- Instrumento utilizado pelo Chefe de Estado em que se suspende temporariamente os direitos e as garantias dos cidadãos e os Poderes Legislativo e Judiciário ficam submetidos ao Executivo, tendo em vista a defesa da ordem pública.

2- Insurreição heroica dos operários de Paris em 23-26 de Junho de 1848, reprimida com excepcional crueldade pela burguesia francesa. A insurreição foi a primeira grande guerra civil da história entre o proletariado e a burguesia.

3- Termo expresso por Aurélio Galdino (um amigo), em uma das aulas de Ciência Politica, na Uninove. Do qual, brilhantemente disse-nos que com a agitação politica que tivemos nos últimos anos, grande parte da massa, passou de "analfabeta politica" (completamente ignorante para com a politica) para "analfabeta funcional politica", da qual participa mas realmente não entende.

4- Frase famosa de Lenin em seu texto: "Os Bolcheviques Devem Tomar o Poder"- do qual percebendo a fragilidade do governo provisório na Rússia e o instinto revolucionário dos proletários, em seu exílio, declarou aos bolcheviques: "A história não nos perdoará se não tomarmos agora o poder."