Tribuna Gaúcha (1946-1958): luta e resistência

“ Uma redação operária é uma colmeia de agitadores, líderes, revolucionários, teóricos e sonhadores.” João Batista Marçal / in memoriam

De acordo com o pesquisador e jornalista João Batista Marçal (1941-2018), em sua obra “A Imprensa Operária do Rio Grande do Sul” (2004), o jornal “Tribuna Gaúcha” foi o mais corajoso e combativo da esquerda gaúcha, despertando perseguição e ira das oposições políticas da época.

Em 17 de fevereiro de 1946, a “Tribuna Gaúcha” começou a circular, em Porto Alegre, preenchendo uma lacuna importante, após a revista “Libertação” (1945), redigida por intelectuais comunistas, ter encerrada a sua circulação. Esta publicação contou com nomes importantes, como Décio Freitas (1922-2004), Dyonélio Machado (1895-1985), Antônio Pinheiro Machado Neto (1924-1998), entre outros.

Órgão de massa do PCB / RS (Partido Comunista do Brasil), o jornal foi criado para ser um diário, porém devido a tantas dificuldades, em alguns períodos, alternava a sua periodicidade. Durante uma grande parte da sua existência, seus repórteres, redatores e diretores vivenciaram o vaivém das entradas e saídas das portas das prisões da capital gaúcha. Seu título se alternava entre “Tribuna Gaúcha” ou apenas “Tribuna”, tratando-se, evidente, de um artifício para driblar os censores e a polícia.

Na realidade, a criação desse periódico foi resultado de uma articulação comandada pela cúpula nacional do PCB, objetivando criar uma rede de jornais e revistas que atingisse o maior público possível no território brasileiro. Com esse intuito, contou com a colaboração de intelectuais das mais diversas áreas. O PCB (Partido Comunista do Brasil), ainda na ilegalidade, adota , em 1960, o nome Partido Comunista Brasileiro, porém sem alterar a sua tradicional sigla.

As várias sedes do jornal

A primeira redação da Tribuna Gaúcha se localizava na Rua General Câmara (antiga Rua da Ladeira), quase esquina com a Andrade Neves. No porão do prédio, ficavam as oficinas gráficas. Em maio de 1952, a sede do jornal foi transferida para a Rua Vigário José Inácio, 215, esquina com a Rua Voluntários da Pátria (próximo das Ferragens Gerhard). Sob a direção de Ophir Pinheiro, ocorreu outra mudança de endereço: a sede se transferiu para a Av. Borges de Medeiros, à esquerda, perto da Rua da Praia (Rua dos Andradas).

O jornal “Tribuna Gaúcha” - porta-voz do PCB – circulou até a metade de 1958, praticamente, 12 anos após a sua fundação. Outros jornais, com o mesmo perfil ideológico, faziam parte de uma rede e circularam noutros estados, a exemplo do Rio de Janeiro onde circulou a Tribuna Popular.

Memória

O Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, localizado, na Rua dos Andradas, 959, em Porto Alegre, guarda e preserva, em sua hemeroteca, alguns números do jornal “Tribuna da Imprensa” que foram doados pelo professor e historiador Raul Carrion, Esta instituição cultural está, atualmente, sob a direção da jornalista Elizabeth Corbetta.

Censura, perseguição e assassinato

Na Rua da Ladeira (atual General Câmara), visando evitar a circulação da “Tribuna Gaúcha”, ocorriam prisões, espancamentos, tumultos e até derramamento de sangue em momentos críticos de repressão. A ordem poderia partir do Tribunal da Justiça, da Guarda Civil ou até mesmo de um delegado enfurecido com o conteúdo do jornal. Com a redação sempre vigiada, a cada edição se estabelecia um confronto. As portas do prédio permaneciam fechadas e, no seu interior, o jornal era rodado, enquanto os militantes pensavam numa forma de burlar a vigilância policial e distribui-lo em locais estratégicos e previamente determinados.

Entre outras formas, para tentar romper com o cerco, a mais comum era escolher uma pessoa na redação que, ao sair da sede, iniciava um discurso contra o governo, atraindo a atenção dos repressores e desviando–os do seu foco: a redação. Caso houvesse êxito estratégico, alguns militantes se deslocavam, de forma rápida, com pacotes de jornais, para serem distribuídos, na Rua Praia, em pontos nos quais o jornal já estava sendo esperado. Noutras situações, apesar das perseguições constantes, a “Tribuna Gaúcha” renascia, como num passe de mágica, a exemplo do que ocorreu quando da sua depredação, em 24 de agosto de 1954, após o suicídio do Presidente Getúlio Vargas (1882-1954).

João Batista Marçal nos narra, em seu livro já citado no texto, dois episódios que eram constantes em relação à “Tribuna Gaúcha”. Um deles ocorreu com o militante Laci Osório (1911-1999), que, após ter discursado, visando driblar o cerco à redação do jornal, foi preso, e o delegado lhe encostou uma arma no peito. É o próprio Laci que nos conta esta historia em seu livro “Questão de Vida – Memória em Tempo de Porto Alegre” (Ed. Movimento, 1981): “Ele tremia de pistola na mão. Tive medo do medo do beleguim.” Outro fato foi vivido pelo líder comunista, Ulysses Villar (1906-1994), que assim declarou: “Desci a ladeira abaixo de pau, mas trouxe para Uruguaiana os jornais que fui buscar”.

A presença feminina

Fato curioso se dava em relação às mulheres militantes, quando estas entravam em ação , como o último recurso, para romper com a vigilância em frente ao prédio da redação. Após adentrarem no local, em dupla, saiam calmamente. Até então seria um fato comum, caso não fossem os quilos a mais que poderiam simular uma gravidez de gêmeos. Na realidade, tratava-se de jornais enrolados na cintura ou nas pernas dessas mulheres, dependendo do vestuário. Geralmente, não despertavam suspeitas e desciam a ladeira, conversando, com descontração, sobre futilidades do cotidiano.

Entre nomes de mulheres importantes, ligadas ao jornal “Tribuna Gaúcha”, encontram-se: Julieta Batistioli (1907-1996) - “A Pastorinha” – que foi a primeira vereadora comunista do Rio Grande do Sul; a poetisa, professora e pianista Lila Ripoll (1905-1967) e a jornalista Edith Hervé de Souza (1916-1998). Em se tratando de uma extensa lista, podemos citar, ainda, Ofélia do Amaral Botelho, a poetisa Beatriz Bandeira e a jornalista Eunídia dos Santos (1920-1995). Esta última, nascida, em Porto Alegre, é considerada a primeira mulher a dirigir um jornal comunista no Brasil, tendo exercido um papel fundamental na sustentação financeira do jornal.

O ícone Eloy Martins

Uma figura, que passou a fazer parte do imaginário citadino, foi o líder metalúrgico Eloy Martins (1911-2005), natural de Laguna (SC). Eleito, em 1947, para a Câmara Vereadores de Porto Alegre, destacou-se pela coragem como enfrentou os adversários políticos e a repressão da época, Inúmeros foram os confrontos, nos quais foi agredido, preso e torturado durante o Estado Novo de Vargas (1937-1945) e a Ditadura Civil- Militar (1964-1985). A foto que registrou Eloy Martins, vendendo a “Tribuna Gaúcha”, na Rua da Praia, tornou-se um ícone da esquerda gaúcha. Eloy publicou os livros “Tempos de Cárcere” (Ed. Movimento, 1981) e “Um depoimento politico: 55 anos de PCB. Memórias de um metalúrgico” (Ed. Palotti, 1989).

Sofrimento e resistência

Na redação do jornal, gráficos e jornalistas permaneciam em vigília constante diante das ameaças de destruição do parque gráfico. A redação se assemelhava a um quartel onde redatores, editores, tipógrafos e diretores formavam um exército de homens e mulheres atentos e vigilantes em relação aos adversários, que não davam trégua entre uma edição e outra do demonizado periódico.

Considerado um dos melhores redatores da Tribuna Gaúcha, Carlos Alberto Brenner não suportou a pressão e não quis mais viver. Advogado, natural de Santa Maria, ele fez parte do grupo oriundo da revista “Libertação” (1945). Outro caso de perseguição ocorreu com o poeta, artista plástico, jornalista e revolucionário Fernando Melo (1922-1949). Assassinado, em Caxias do Sul, pela polícia local, este jornalista, além de participar da Tribuna Gaúcha, era um dos editores do semanário caxiense “Voz do Povo”. Já o excelente jornalista e editor da “Tribuna Gaúcha”, José Gonçalves Thomaz (1927-1956), natural de Uruguaiana, foi vitimado por um câncer, causado, provavelmente, por uma excessiva carga emocional. Outro nome importante, nascido, em 1926, na cidade de Uruguaiana, foi José Nelson Gonzales. Repórter e editor do mesmo jornal , ele foi preso em várias ocasiões.

Os intelectuais

O jornal “Tribuna Gaúcha” contou, além dos já citados, com outros nomes ilustres, como Dyonélio Machado (1895-1985) Cyro Martins (1908-1990), Júlio Teixeira (1910-1986), Álvaro Moreira (1888-1964), Dalcídio Jurandir (1909-1979), Aparício Torelly / Barão de Itararé (1895-1971), Décio Freitas (1922-2004), João Aveline (1919-2005), entre outros.

Diante da ausência do propagado “ouro de Moscou”, O MAIP (Movimento de Ajuda à Imprensa Popular) era o órgão que se encarregava de arrecadar os minguados “tostões”, com os quais a incansável Eunídia dos Santos (1920-1995) conseguia garantir a circulação do jornal.

O Guerrilheiro Negro

Ao encerrar esta verdadeira odisséia da “Tribuna Gaúcha”, não poderia deixar de registrar o nome do jornalista Edmur Péricles de Camargo (1914-1971?). Conhecido como o Gauchão, seu caso é investigado pela Comissão da Verdade, que apura mortes e desaparecimentos durante o período da ditatura civil-militar (1964-1985), De acordo com Marçal (2004), a trajetória do “guerrilheiro negro” faz por merecer que seja escrita uma biografia aprofundada. Edmur foi preso pelos órgãos da repressão na Argentina, em escala de voo, em Buenos Aires, e na madrugada do dia seguinte foi colocado num avião da FAB (Força Aérea Brasileira) que o trouxe até o Brasil, quando desapareceu nas mãos dos agentes públicos que serviam ao regime ditatorial do Estado brasileiro.

O Jornal a “Tribuna Gaúcha” se constitui num ícone da história da imprensa operária no Rio Grande do Sul. Em suas páginas, encontra-se a marca indelével de grandes nomes do nosso jornalismo, que assumiam em suas matérias, com coragem e destemor, as suas posições político-ideológicas.

Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Musecom *

Bibliografia

MARÇAL, João Batista; MARTINS, Mariângela. Dicionário Ilustrado da Esquerda Gaúcha. Porto Alegre: Libretos, 2008.

MARÇAL, João Batista. A imprensa operária do Rio Grande do Sul. (1873-1972). Porto Alegre. 2004.

--------------------------------- Rio Grande do Sul século XX: Organizações operárias: Uma história feita de sangue e intolerância. Porto Alegre: Gráfica Relâmpago, 2011.

PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria": história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001.