Neutralidade e bom senso são conceitos inseparáveis? Ser neutro é estar alheio a questões importantes e assim compactuar com o lado moralmente errado exatamente por não o combater? Bem, não existem verdades absolutas, tudo depende de um contexto. Para ilustrar isso, podemos citar, primeiramente, a obra do filósofo marxista e educador Demerval Saviani, que, em sua proposta para um novo modelo educacional que não fosse desvinculado de um processo de transformação da sociedade (a revolução socialista), fazia uma crítica tanto a educação tradicional, que colocava o professor como uma figura de autoridade e de fonte de conhecimento atrelada a ideia do estudante como um subjugado do professor cujo único papel é absorver o conhecimento passado em sala de aula (conhecimento esse muitas vezes mal aplicado devido a estrutura conteudista do modelo de ensino), quanto a proposta pela Escola Nova, que põe todo o protagonismo do ambiente de escolar no aluno e, assim, tendo como consequência, o descaso com o currículo e a formação do professor. A base de Saviani era a “teoria da vara torta” de Lenin, que buscava não seguir vias extremas que acabassem levando as propostas de ação prática para fora da análise materialista (não confundir extremismo com radicalismo). Em outras palavras, Saviani propunha um modelo educacional que buscasse colocar no mesmo grau de importância, tanto o aluno quanto o professor.

O outro contexto onde podemos mostrar se a neutralidade está atrelada ao bom senso ou não (nesse caso, quando não está) é uma situação hipotética (mas com base em fatos) onde determinado indivíduo em plena década de 1940, quando lhe é revelado que o nazifascismo foi responsável pelo genocídio de seis milhões de judeus, ao mesmo tempo que se informa do fato de muitos nazistas estarem sendo severamente punidos no Tribunal de Nuremberg, opta por não se posicionar nem do lado dos que quase exterminaram todo um povo e nem dos que estão lhes aplicando a merecida punição. Ou seja, está bem claro quem está certo e quem está completamente errado, mas se não há posicionamento, automaticamente este indivíduo está apoiando um lado e justamente aquele que está errado, já que existe um elo mais fraco e um elo mais forte, que por sua vez, é exploratório para o mais fraco (uma referência a outra teoria de Lenin, porém tirada de seu significado como licença poética). 

Continuando por partes:

A ideia de se negar o espectro político (noções de esquerda e direita) está completamente alheia a política em si. Mesmo antes desses conceitos surgirem na Revolução Francesa, já existia antagonismo baseado em perspectivas políticas que serviam para definir modelo de governabilidade e estrutura econômica da sociedade, por exemplo: enquanto haviam grupos sociais que incentivavam a perseguição e exploração escravista ao povo judeu (olha eles de novo) no território onde hoje é a Palestina, representados pelo rei Erodes, haviam outros grupos sociais (no caso os próprios judeus) que defendiam o fim de sua exploração e perseguição por parte do Império Romano, representados por Jesus Cristo e por Barrabas. Assim como na Idade Média, a Igreja Católica condenava as Revoltas Camponesas contra a exploração dos nobres (vulgo senhores feudais), exatamente porque a própria igreja detinha feudos e se sentia ameaçada. 

Além disso, é inconcebível se pensar em propostas políticas que ignorem a realidade concreta, já que as ideias não brotam na mente das pessoas do nada, mas a partir das experiências reais dessas pessoas e seu aprendizado. Afinal, a história mostra que a humanidade sofreu processos cíclicos que em maior ou menor escala, definiram a realidade com o passar do tempo e devido a própria atividade humana.
Mas agora, chegamos na parte onde as feridas são cutucadas e onde colocamos os “neutros” contra a parede, analisando a origem de seu discurso e os fatos que os rodeiam. Mas claro, não vamos nos limitar a falar só sobre aqueles que alimentam o delírio de negar o espectro político, buscando “novas alternativas”, mas outros agentes “neutros” que propõem projetos políticos que, de forma equivocada, são considerados “sem ideologia”.

O primeiro exemplo que podemos citar é o ex ministro e ex presidenciável Ciro Gomes, que, durante as eleições de 2018, se apresentou como um candidato de centro-esquerda, sustentando o trabalho de autoimagem que vinha fazendo até então. Ciro jogou para debaixo do tapete a repressão policial em seu governo no Ceará contra os professores grevistas, sua colaboração com políticas neoliberais como o Plano Real, o comentário machista sobre sua esposa (na época Patrícia Pillar) durante uma de suas campanhas, e adotou um discurso de oposição as propostas neoliberais e ao governo de centro-direita de Michel Temer, além de se posicionar como anti-Bolsonaro e por um projeto político e econômico nacionalista e reformista, chegando ao ponto de ser comparado a Leonel Brizola, o mesmo que ele um dia chamou de “o cúmulo do atraso”. 

Mas há contradições, levando em consideração o contexto em que o Brasil se encontra, onde uma tal “burguesia nacional” e a velha burguesia financeira buscavam impor, através do Estado, seus interesses econômicos a frente das necessidades da classe trabalhadora que sofre com cortes no setor público, sendo os principais: saúde e educação, perda de direitos e a ameaça de uma reforma previdenciária que aumenta o tempo de contribuição. E quais essas contradições? O projeto idealizado por Ciro Gomes inclui a realização do desejo da burguesia nacional (aqui representada pelo agronegócio) de ter um representante no poder executivo para que esse setor da economia tenha investimento estatal, facilidade de passar políticas econômicas que lhes sejam lucrativas e a proteção de suas atitudes ilegais para com o meio ambiente, os trabalhadores e os povos nativos. A “compensação” seria um aquecimento na economia, a reestatização de empresas anteriormente vendidas para o capital estrangeiro e o investimento no setor público, levando em consideração o seu programa político. Logo, o projeto de Ciro era também conciliatório, como outrora foi o governo Lula. Mas também é válido lembrar que o próprio já defendeu privatizações se “feitas com inteligência”.

O outro exemplo que podemos citar é a deputada, também do partido de Ciro Gomes, Tabata Amaral, que já tinha um relativo conhecimento por parte do povo por abraçar pautas como a educação, por sua história de superação e suas conquistas acadêmicas e políticas, mas que ganhou notoriedade em 2019 após confrontar o ex ministro Ricardo Velez Rodrigues, ao criticar seu projeto para a educação, fazendo afirmações óbvias, mas que encantavam os entusiastas da “neutralidade” e do “bom senso”, como no caso do cartunista liberal Maurício Ricardo. Ela é o exemplo mais que perfeito de alguém que defende a superação das noções de esquerda e direita, mas que tem fatos que colocam em cheque suas propostas. 

A deputada é ligada a Fundação Lemann, uma entidade privada, “mas sem fins lucrativos” e ao empresário Luciano Huck, apresentador do programa Caldeirão do Huck, da rede globo. E fica claro que ela repassa o projeto político dos agentes econômicos que apostaram em sua pessoa na disputa eleitoral, por já ter defendido a privatização de universidades públicas, partindo da mesma lógica de “privatizar com inteligência”, além de defender a reforma da previdência e o golpismo que ocorre na Venezuela, logo, ela funciona como um instrumento da burguesia dentro do Estado. 

Por fim, menos que o indivíduo não tenha formação intelectual acerca de política, não há quem entre em algum cargo de executivo ou legislativo, ou que seja uma liderança em movimento de massa, que vá defender a negação do espectro de direita ou de esquerda sem estar ligado a interesses, porque a esquerda em si, também é, mas a interesses dos que estão no lado mais fraco da corda, apesar da mesma não ter medo de afirmar o que é, enquanto certas figuras da direita jogam de acordo com as regras do grande capital, mas se dizem desvinculadas de ambos os lados. A partir de uma análise de luta de classes, pessoas como Tabata Amaral e Ciro Gomes servem a classe dominante.
 
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 25/07/2019
Código do texto: T6704114
Classificação de conteúdo: seguro