Classe Média e a Ideologia Dominante: esclarecimentos

Alguns comentários de textos que aqui postei tem me indagado sobre as críticas que tenho feito à classe média, mais no sentido de uma possível generalização da minha parte do que no conteúdo da crítica em si.

Sou realista. A classe média esta a anos-luz em termos de acesso a conhecimento, empoderamento, cultura e conhecimento de como as coisas funcionam, quando comparados às pessoas de classes mais baixas.

Levará muito tempo até que as classes mais baixas tenham condições de se organizarem de forma eficiente em torno de seus interesses ( basta vermos como são parasitados por milícias, líderes religiosos e políticos corruptos). Como se conformam com tanta injustiça e violência que sofrem.

A equação do desespero:

A) quem mais é prejudicado não consegue lutar por mudanças sociais e quem poderia lutar por mudanças, no fundo não quer mudanças sociais.

B) Quem quer mudanças sociais não andam na mesma direção. Há os que se preocupam em colocar gênero "neutro" nas palavras ( motoriste ao invés de motorista). Há os que acreditam em mudar o Brasil se aliando com quem não quer mudá-lo. E há os sem esperança a curto e médio prazo.

C) Há uma direita que vende que esquerda tem o domínio ideológico, midiático e científico do país e é completamente cega e burra em relação aos interesses econômicos e de classe que imperam há séculos neste país.

D) Os vendedores de mentiras que surgiram entre eles, resolveram relativizar os fatos (pós-verdade) e desqualificar cientistas e professores para melhor vender suas ilusões. E uma parte considerável da classe média consome este discurso.

E) Principalmente para os mais pobres, há a teologia da prosperidade de muitas igrejas evangélicas: a miséria e a riqueza são consequências de uma relação com Deus...

F) Aqueles que tiveram a chance de mudar e chegaram ao poder, foram golpeados por seus aliados (que nunca se simpatizaram com o PT, mas com o $) e sistematicamente desmoralizados por uma mídia completamente parcial e rentista.

Resultado: A alternativa para as mudanças sociais que precisamos não se encontra em projeto. Ninguém sabe como fazer de forma viável e não violenta algo diferente daquilo que fracassou.

Para mim e muitos pesquisadores das ciências sociais, classes não implicam somente em diferentes categorias distintas por sua renda. Uma ampla bibliografia sociológica sobre o assunto aponta outras características consideráveis quando tratamos sobre classes sociais.

De forma muito simples, vou resumir algumas aqui.

Uma classe se realiza enquanto tal tendo referência a ocupação que exercem e esta pode ter mais ou menos prestígio em uma sociedade. Por exemplo: um motorista de ônibus pode ganhar até mais que um padre, mas o poder e influência que esta ocupação possui é muito maior que a do primeiro.

Uma ocupação também se distingue por graus de especialização, raridade e exercício de autoridade. Um professor ganha bem menos que a maior parte das profissões de nível superior, mas desfruta de autonomia e autoridade que muitos com a mesma renda não usufruem.

O acesso a conhecimentos e saberes valiosos socialmente, uma formação básica de qualidade, domínio do próprio idioma e de outros, domínio de leitura, cultura geral, capacidade reflexiva, permite uma mobilidade horizontal e vertical muito maior do que aqueles que possuem menos destes conhecimentos.

Estes conhecimentos não são igualmente distribuídos. São resultados de interações familiares, de condições financeiras para educar os filhos, da capacidade destas famílias de "transferirem" aos seus filhos seus hábitos, conhecimentos e valores. Tudo isto implicará na facilidade ou não deles chegarem a uma universidade e ocupar posições mais disputas em sociedade.

É muito mais complicado para aquele que teve todo este caminho pavimentado, por assim dizer, que fora preparado desde o útero da mãe para ocupar tais posições, entender que o mais pobre não disputa em iguais condições. Muitos ignoram uma série de condições de classe que os favoreceram nesta disputa e acreditam piamente que só dependem do próprio mérito.

São os que abraçaram liberalismo e políticas mais repressivas contra os mais pobres: tomados como menos esforçados e inconformados com o prêmio por sua preguiça que é a miséria.

Isto significa que toda a classe média abraçará este tipo de visão política? Não, principalmente os que conseguem olhar para fora de sua bolha e perceber que só cabe um julgamento meritocrático quando todas as oportunidades são iguais. O que não acontece, o Brasil nem se aproxima disto.

As desigualdades são tão extremas no Brasil, que basta nos exigirmos um pouco de honestidade intelectual e reflexão que veremos que a explicação meritocrática é insuficiente. A própria classe média ao receber uma boa educação tem mais condições de realizar tal reflexão, no entanto nem todos fazem.

O motivo é simples, não é educacional ou cognitivo, é valorativo. É possível ter clareza do mal, do nosso egoísmo e crueldade e mesmo assim não se afetar. Tudo depende dos valores que aprendemos e da disposição de cada um para ir além da sua bolha.

***

A classe média desempenha papeis chaves na organização desta sociedade, afinal quem opera a repressão e a burocracia que mantém uma sociedade perversa como a nossa são eles. A questão é no nível operacional é difícil mudar sem perder o emprego, mas é possível alterar as leis e visões de mundo que determinam a forma como operam. Vou dar um exemplo:

Um policial pode tentar ser mais empático e mais justo em suas abordagens? Pode o policial que obriga um jovem a dar senha do seu celular, fazer o mesmo em áreas nobres? Não. Este policial que se vê impotente diante do crime, por que não é na repressão que ele diminuirá, fará o que diante de um cenário que ele tem pouquíssimo controle?

Então ele acha todo mundo suspeito, todos que não tem dinheiro. Ele reproduz a ideologia dominante, mas qual outra poderia reproduzir sem comprometer sua função? Isto significa que todos os policiais são assim? Não, mas que todos sentem a pressão...

Quando temos juízes que são muito severos com porte de drogas por parte de favelados e muito compreensivos com indivíduos de outras classes? O que este juiz esta fazendo senão reproduzindo a ideologia dominante?

Quando um professor acredita que seus alunos não aprendem por motivos cognitivos e disciplinares, sem antes pensar na relação entre o conhecimento e as desigualdades sociais, o que este professor faz senão reproduzir a ideologia dominante.

Quando o ministro da educação e o presidente começam a desqualificar livros e professores que problematizam as desigualdades sociais, raciais e de gênero e não reproduzem um ensino seletivo ( o que separa os "burros" dos "inteligentes") e estes canalhas estão fazendo? Reproduzindo a ideologia dominante.

Karl Marx teve origem na classe média. O pai de Engels foi um industrial. Lênin e Fidel Castro foram advogados. Che Guevara foi um médico. A lista é enorme de personalidades importantes da esquerda e dos movimentos sociais que tiveram origem na classe média.

Da mesma forma, dá pra citar gente que veio de famílias muito simples e pouco que subiram na vida assumiram uma perspectiva meritocrática. Não me espanta isto, afinal tal ideologia é dominante, os pobres também precisam acreditar que o mundo é justo: é uma condição para que se conformem com tudo isto.

A diferença é que a classe média se beneficia muito mais desta ideologia do que os mais pobres, por isto é muito mais fácil a aceitarem, enquanto ao pobre não é questão de aceitar, mas de se conformar.

No mais, sempre deixei as ressalvas nos artigos, mas deveria ter sido mais enfático. Meu recado foi e ainda é direcionado àqueles que se colocam em uma perspectiva em que a meritocracia se coloca não só como verdadeira, mas benéfica aos mesmos. É entre a classe média que encontraremos muitos nesta condição.

Não tenho dúvida que o principal motivo do ódio à esquerda, não é por corrupção, autoritarismo, coletivismo ou algo assim ( coisas encontradas na direita em suas diversas matizes), mas por tomarem como verdadeira e real a ideologia dominante.

Nesta, as políticas de inclusão e redução de desigualdades são desnecessárias, por sobrecarregar o Estado e atenuar a competição (liberalismo) ou/e intervir na ordem "natural" das coisas (conservadorismo).

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 11/01/2020
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