A Flor - ameaças a Democracia

A Flor

Alexandre Santos*

Ela era linda, delicada e repleta de encantos que maravilhavam a todos.

Nascera há muito tempo, filha de muitas vontades e de muitos sonhos, dos quais, os mais bonitos talvez fossem a liberdade, a paz, a esperança, o bem estar e a alegria. Quem a observava com atenção tinha razões para imaginar que ela era fruto da mistura de muitas coisas muito boas, das quais [ela] retirara a melhor parte para fazer a si mesma. Esta, talvez, fosse a razão de ter e não ter, ao mesmo tempo, todas as cores, todos os credos, todas as raças, todas as artes, todas as gnoses, todas as agnoses.

Ela não viera ao mundo num repente. Não. Ela nasceu aos poucos, dando forma às ideias e ideais de muitos, lutando contra inimigos poderosos, revolucionando costumes, trazendo o novo que virou velho e voltou a se renovar, vencendo resistências, driblando obstáculos, convivendo com adversidades e cooptando adversários, congelando inimigos e suspendendo rivais, vezes recuando, vezes avançando, atraindo adeptos, se recuperando de golpes rudes incorporando nuances, perfumes e sabores ao longo dos tempos.

Por tudo isto e muito mais, ela era cobiçada pela maioria. Aliás, só uns poucos admitiam abertamente não desejá-la e, mesmo estes, faziam questão de elogiar os seus dotes. De fato, de tão bonita, além daqueles que, por pura inveja, queriam se parecer com ela - e, para isso, alteravam as descrições que dela faziam, chegando a deturpar o seu modo de ser e viver -, a maioria queria e dizia querer a sua companhia. Entre estes, uns a queriam por amor sincero e outros [a queriam] por interesse vil, com o objetivo de usar a sua imagem [a imagem dela] para parecer aquilo que, de fato, não era e, assim, iludir as pessoas. Vale dizer que nem todos a queriam de verdade. Isto acontecia, especialmente com aqueles que ojerizavam o tipo de convívio por ela estabelecido com tantos quantos a quisessem e, também, com aqueles que, por uma razão ou outra, preferiam a supremacia de uns sobre os outros. De qualquer forma, como a ninguém interessava ser associado à rejeição de valores como pureza e bondade, todos (até mesmo aqueles que no íntimo a repudiavam), com um ou outro eventual reparo, publicamente a endeusavam. De fato, segundo a voz geral, sufocando os defeitos que pudesse apresentar com uma miríade de qualidades, de todas, ela era a melhor.

Embora nunca conseguisse, sempre tentava satisfazer a todos. Talvez por ser amorosa, generosa, tolerante, carinhosa, paciente e gentil, como se fosse, ao mesmo tempo, mãe, avó, irmã, esposa, amante e amiga, ela tinha a capacidade de considerar e respeitar o jeito de ser de cada um, se esforçando para, sempre que possível, atender aquilo que todos queriam. Muitas vezes, claro, os interesses se chocavam e, como mediadora firme e implacável, sem desrespeitar a opinião das minorias, especialmente daquelas mais frágeis (e que, por isso mesmo, mereciam maior atenção), fazia valer o interesse da maioria, o quê muitas vezes lhe valera a injusta acusação de prepotência.

Na realidade, ela era muitas em uma só, sem ser volúvel ou cair na promiscuidade, podia satisfazer a todos e a qualquer um que a quisesse, se dando a todos, mesmo àqueles pouco sinceros. De fato, de coração generoso, ela conseguia amar a todos e se deixava amar por todos, reservando a todos e a cada um, a possibilidade de desfrutá-la por inteiro. De qualquer forma, ao contrário do que alguns pudessem pensar ela não era permissiva. Pelo contrário. Ela era uma para cada caso. Aliás, a multivalência da sua natureza a deixava ser, conforme a situação, mais suave, mais carinhosa, mais austera ou mais severa, reservando beijos apaixonados e sorrisos angelicais para os amigos e tempos de paz e punhos fechados, patas pesadas e garras afiadas para os inimigos e tempos de guerra.

Por toda a vida, ela sempre despertou invejas (sem suportar a alegria trazida por ela, muitos a solapavam apenas para roubar-lhe o sorriso) e enfrentou muitos perigos.

Às vezes, sem poder tê-la, embusteiros moldavam coisas que diziam ser ela, passando a viver ilusões insatisfatórias. Às vezes, querendo-a só para si - fosse por ciúmes da atenção que ela dava a todos ou por mero preconceito dos 'outros' -, desdenhando a sua natureza 'dada', de 'ser de todos', egoístas tentavam apartá-la dos demais para tê-la com exclusividade. Na realidade, por si só, qualquer restrição ao seu abraço, sorriso ou carinho representa um grande risco à sua existência, pois, em detalhes que os brutos nunca demonstram saber ou ligar, se deixar de ser de todos, ela deixa de ser ela e morre, passando a ser uma corruptela de si própria. Ainda assim, muitas vezes, de caso pensado ou maldade calculada, mesmo sabendo da possibilidade de vir a matá-la, egoístas agem como se não houvesse outros no mundo e tentam mutilar a essência do seu modo de ser. Na realidade, de tão agredida, se não fossem amantes apaixonados e a sua capacidade de regeneração, ela já teria desaparecido, sendo definitivamente substituída por alguma impostora.

Além destes perigos, ela enfrentava muitos outros.

Alguns, inclusive, decorrentes da sua própria natureza. Por ser muito pura, por exemplo, havia o permanente risco de ela ser contaminada por algum parceiro, vizinho ou, mesmo, infiltrado, cujos eventuais pecados poderiam até comprometer a sua existência. Com efeito, com a pureza das vestais, ela não resistia certos vícios, como a corrupção, a manipulação, a injustiça, a fome e, sobretudo, o egoísmo.

Por milagre de Deus, ela jamais envelhecia. Pelo contrário. Com o passar do tempo, ao invés de perder encantos e criar rugas, ela perdia arestas e, conforme a situação, incorporava formatos, parecendo ficar mais graciosa. De qualquer forma, independentemente do tempo já vivido, ela era sempre tenra e, como uma flor em constante desabrochar, [sempre] frágil e sujeita a ameaças.

Esta condição era mais grave quando das mudanças e metamorfoses. De fato, embora atenda à gênese de melhor satisfazer aos seus, as transmutações implicam em muito perigo, pois criam a chance de atuação de vis manipuladores.

De fato, no embalo das mudanças naturais, forças oportunistas procuravam interferir na evolução do seu formato original, aproveitando a situação para tentar moldá-la aos seus próprios interesses [interesses deles, das forças manipuladoras], num processo tão complexo que, quando concluído, costumava deixá-la diferente a tal ponto que ela passa a não parecer consigo mesma. Estes ajustes radicais de formato refletem não apenas o poder, mas, principalmente, a sinceridade e as intenções das forças que interferem nas mudanças.

Na banda ocidental, por exemplo, dizendo querer protegê-la, brutos manipulam o processo de forma tão profunda que chega a mexer na essência dela, sufocando e inibindo conceitos importantes como liberdade, alegria e bem estar, modificando-a ao ponto de ela passar a não ser ela própria (e, portanto, matando-a), fazendo surgir em seu lugar uma sósia barata - uma usurpadora que, embora, atenda pelo seu nome, não tem as suas características e, ao invés de se dar a todos como ela, passa a obedecer a poucos, tendo-os como senhores e não como parceiros e amantes. Vale dizer que, fruto de sofisticados processos de manipulação, embora tenha poucas semelhanças e afinidades com ela, a usurpadora ocupa-lhe o lugar como se fosse seu e, se não fossem as discriminações aos preteridos e os favorecimentos aos seus mentores, poucos perceberiam o embuste.

Nada disto, no entanto, consegue sepultar a existência dela.

Quando os brutos pensam-na morta e comemoram a supremacia das impostoras criadas para substituí-la, surge um fio de vida pelo qual ela sempre ressurge das cinzas para retomar a jornada de paz e alegria e atormentar os manipuladores. De fato, mesmo nos casos em que, parecendo totalmente subjugada, como um avatar da usurpação, ela não é mais ela própria, seus amantes apaixonados lutam contra a manipulação e contra os manipuladores, numa luta que, ao custo de muito sangue e lágrimas, sempre termina por desmascarar e destronar a fraude e resgatá-la das masmorras dos poderosos, regenerando a Luz, a Paz, a Alegria e a Esperança.

Viva a Democracia!!!

(*) Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural