O Dom Quixote à Brasileira

Não nos surpreendem porque Miguel de Cervantes Saavedra foi considerado o maior escritor da literatura espanhola. Nascido em Acalá de Henares, província de Madrid em 1547, morreu na capital em 1616. Cervantes, em 1570, alistou-se nas tropas pontifícias para lutar contra os turcos que ameaçavam a Europa. Na batalha de Lepando perdeu a mão esquerda. Cervantes mostrou-se corajoso e obstinado e seu nome correu o vasto império espanhol como sinônimo de bravura e dedicação. Escreveu magnificamente Dom Quixote de La Mancha, considerado o primeiro romance moderno, pois não se trata de uma narrativa medieval, mas o desenlace de um conflito entre duas épocas que se sucedem, o feudalismo e o capitalismo. Obra memorável, que ultrapassa o transcendentalismo não somente nas letras espanholas, mas em todo universo ocidental e porque não dizer do mundo, já que fora traduzido para mais de 40 línguas.

Certa vez o escritor russo Fiodor Dostoiévski declarou que, “Nada existe de mais profundo e poderoso no mundo inteiro do que essa peça de ficção”. Dom Quixote foi uma obra tão poderosa que fez um redemoinho no mundo social e político, sempre alinhavado aos traços do inconsciente coletivo.

E qual nação não teve um Dom Quixote como líder? A síndrome do personagem capitular de Cervantes, chamado de atores quixotescos, sempre esteve presente na vida social, militar e política ao longo da História das nações. Seria impossível descrever tantas aberrações.

Tomemos como exemplo líderes, que em sua arrogância e autossuficiência se tornaram tão vislumbrados pelo poder que acabaram repetindo as mesmas epopeias desastrosas “num lugar de La Mancha" em que Cervantes sequer queria lembrar. Talvez estivesse escrevendo sobre o mundo.

Erros crassos sempre são cometidos pelos políticos e líderes militares, tanto que o termo "crasso" se deve a um dos três ocupantes do triunvirato romano Marco Licínio Crasso. Enquanto, magistralmente, César conquistou a Gália (França) e Pompeu dominou a Hispânia, Crasso com sua frustração e soberba, fixou em conquistar os Partos, povo persa cujo império ocupava, na época, boa parte do Oriente Médio - Irã, Iraque, Armênia e outros. Com sete legiões, composta de 50 mil soldados, decidiu compulsivamente atacar pelo deserto buscando atalho. Confiou demais na superioridade de suas tropas e ignorou as táticas militares romanas, cortou caminho por um vale estreito, de pouca visibilidade. As saídas do vale, então, foram ocupadas pelos partos e o exército romano foi dizimado e todas as 50 mil almas de Júpiter, incluindo Crasso, viraram pó.

Separados por apenas um século, Napoleão e Hitler cometem o mesmo erro ao invadir a Rússia. Mussolini queria reestabelecer o Império Romano na Itália. Ambos em completo delírio.

No Brasil, D. Pedro II convidou o advogado e político Gaspar da Silveira Martins, desafeto de Marechal Deodoro, para compor o Conselho de Estado, mesmo com a turbulência dos movimentos republicanos antes de 1889. Embora não muito evocado pelos cientistas políticos e historiadores, a nomeação daquele advogado foi como o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austríaco, que deu início ao primeiro conflito mundial. Talvez fato de somenos importância mas que levou de imediato a deflagração do golpe militar, que culminou com a proclamação da República, mas o que importa na narrativa é o arquétipo quixotesco de D. Pedro II.

Washington Luís foi deposto por romper o compromisso com Minas e tentar fazer sucessor paulista, Júlio Prestes, tentando em vão tornar hegemônico seu estado

Jânio Quadros renunciou alegando que, “Forças terríveis ou ocultas levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam", sua tentativa de golpe foi para dentro da mós, pois Jânio não contava com o vento da sagacidade de José Maria Alkmin e a agilidade da engrenagem política de um Moura Andrade em acatar a carta de renúncia e declarar vaga a Presidência.

Impossível enumerar tantas alucinações ao longo da escalada do homem na vida social, econômica, política e no militarismo, mas vale a pena transcrever o diálogo entre Dom Quixote e seu fiel escudeiro:

(...) Vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes todas as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra e bom serviço faz a Deus que tira tão má raça da face da terra.

-Quais gigantes? – disse Sancho Pança.

- Aqueles que ali vês – respondeu o amo -, de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.

- Olhe bem Vossa Mercê – disse o escudeiro -, que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e o que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.

-Bem se vê – respondeu Dom Quixote – que não andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha. (...)

O dilema de Dom Quixote não é uma fake news direcionada ao seu fiel companheiro, já que o protagonista realmente age com convicção de que tem à sua frente uma batalha sangrenta e, em seu imaginário seria melhor enfrentar algo tão ameaçador partindo para batalha em completo delírio: “Não fujais, covardes e vis criaturas; é só um cavaleiro o que vos investe.”

Os atuais chefes militares tupiniquins da reserva e da ativa, políticos fisiologistas e aqueles inebriados por um falso “mito” lutam em delírio contra algo que não existe e sugerem que a crise brasileira estaria fora do alcance de uma solução civil e institucional, trazendo pânico e a insegurança numa democracia que ainda ingere leite materno.

Lutar contra o comunismo no Brasil é tão delirante quanto lutar contra moinhos de ventos.

Não há nada de quixotesco nos intelectuais conservadores brasileiros, mas a má-fé, e de fato, Sartre tinha razão ao afirmar em em seu" O Ser e o Nada" que, a essência da mentira, de fato, implica que o mentiroso esteja completamente a par da verdade que esconde.

Nessa Terra de Santa Cruz, sem a consciência de um Sancho Pança, nosso Dom Quixote governa com seu exército imaginário e sua luta delirante, com consequências desastrosas, pois será ele lançado para dentro da mós da história que e o triturará até virar pó e depois levado pelo vento do tempo num lugar chamado “De La Mancha”, que ao contrário de Cervantes, quero sempre me lembrar.

* Marco Antônio Pinto

Da Academia Divinopolitana de Letras

Cadeira nº 12. - Maio de 2022.

Marco Antônio Pinto
Enviado por Marco Antônio Pinto em 24/05/2022
Reeditado em 17/06/2022
Código do texto: T7523249
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