VIOLÊNCIA É COISA DE VIADINHO: um texto sobre socialismo libertário e ultraviolência queer

1. INTRODUÇÃO

Não existe um consenso nas esquerdas quanto ao uso da violência como uma tática revolucionária. Essa abordagem é revisada várias vezes em Marx e Engels que ora afirmam o levante brutal da classe oprimida como inevitável e ora afirmam a possibilidade de uma revolução pacífica - ao que parece, as esquerdas se acomodaram com a segunda possibilidade de revolução -.

Gramsci em consonância com Marx e Engels afirma que existem duas formas de chegar à revolução do proletariado: pela voz do consenso ou pela voz da coerção. A voz do consenso é aquela defendida, por exemplo, pelo Partido Comunista Brasileiro, que tem como tática a criação de uma frente ampla das esquerdas e a movimentação das massas através da conscientização de classes e da organização política que visa uma revolução sem a necessidade do uso de violência; a voz da coerção, por sua vez, foi utilizada diversas vezes ao longo da história das esquerdas, Marighella é um exemplo louvável do PCB, mas sobre esse assunto esse texto visa dialogar mais especificamente sobre o movimento Bash Back! (“revide!” em inglês): um movimento anarcoqueer de ultraviolência.

Esse texto surgiu a partir da minha dúvida particular sobre a visão socialista do uso da violência como forma de resistência política, bem como a partir de um incômodo sobre colocações de Judith Butler sobre o tema, o que vou fazer aqui, a partir das minhas leituras e do meu entendimento é defender o uso da violência como uma forma legítima de resistência e demonstrar a relação que existe entre as lutas socialistas e as lutas lgbtQia+ - visto que possuem momentos de aproximação e distanciamento - tendo como referencial o livro e o movimento Bash Back! lido sob uma ótica marxista heterodoxa.

2. QUANDO VIOLÊNCIA É A RESPOSTA

Na entrevista com Linn da Quebrada e Jup do Bairro, Judith Butler é questionada se a passividade cabe ao movimento queer, elu, por sua vez, defende o que chama de uma “raiva criativa”. Segundo Butler, não podemos ser passivos ou coniventes com a opressão, isso não nos convém, devemos saber canalizar a nossa raiva em formas criativas de existir e resistir à opressão, mas não necessariamente através do uso da violência.

A violência é a arma “deles” do homem hétero branco jovem e de classe média ou alta, não nos cabe utilizar as armas de nossos opressores… ou será que cabe? Nós precisamos saber revidar, desaprender a dar a “cara a tapa” para aprender a dar o “tapa” propriamente dito. Quando transgredir se mostra insuficiente é necessário agredir. É isso o que Bash Back faz, afinal, BB! é: “[…] uma proposta de propagação de práticas libertárias e ações diretas, pela expansão de uma rede antihierárquica de levantes descentralizados, composto por táticas múltiplas de antiopressão e antiassimilação” (VÁRIOS AUTORES, p. 19).

O que vamos fazer enquanto o corpo queer é criminalizado pelo estado ou quando seu extermínio é legítimado pelo sistema hetero-cis-monogâmico? O que fazer diante da violência? Simplesmente se ocupar com formas criativas de existência e revoluções moleculares? A verdade é que a existência queer bem como todas as existências lgbtqia+ estão em uma luta de vida ou morte. É cristão e ingênuo demais afirmar que a violência é dispensável quando estamos falando em sobreviver no capitalismo branco e logofalocêntrico.

Nesse sentido é preciso fazer, como BB! faz, uma crítica do marxismo: ele não dá conta do proletário queer. Ele não dá conta do conatus queer. E quando falamos em violência, não basta revidar contra um agressor em específico, trata-se de uma violência contra o sistema que legitima e incentiva a violência contra grupos específicos e determinados (negros, mulheres e minorias sexuais e de gênero). É preciso uma violência sistemática contra o (cis)tema. Nesse sentido, uma existência (e resistência) minoritária não se dá de maneira dissociada com as resistências socialistas. Precisamos lembrar do que é o queer? Queer é

um território de tensão, definido contra a narrativa dominante do patriarcado branco-héteromonogâmico, mas é também uma afinidade com todas as pessoas que são marginalizadas, outrificadas e oprimidas. Queer é anormalidade, estranheza, perigo. Queer envolve nossa sexualidade e nosso gênero, mas muito mais. É nosso desejo e fantasias e mais ainda. Queer é a coesão de tudo que está em conflito com o mundo heterossexual e capitalista. Queer é a rejeição total do regime do Normal (VÁRIOS AUTORES, p. 24).

O extermínio, genocídio, silenciamento e aniquilação das existências minoritárias é fundamental para a manutenção do poder do Estado burguês e do capitalismo. Capitalismo não é sobre o acúmulo individual de capital, é sobre impedir a criação de uma subjetividade coletiva que ameace a sua hegemonia produtiva e ideológica, dessa forma ele sublinha seus inimigos declarados: a sapatão, a bicha, as “travas”, os não-bináries, o pobre, o preto… quando Preciado defende a coalização de uma “Multidão Queer” ele não está falando apenas de uma serialidade de pessoas unidas numericamente, ele está falando de uma subjetividade coletiva que seja transgressora, subversiva e revolucionária: esse é o grande paradigma da esquerda do século XXI (re)criar uma subjetividade coletiva capaz de se revoltar contra o seu estado de opressão.

3. EXISTÊNCIA QUEER: RESISTÊNCIA SOCIALISTA.

É justamente nesse sentido que o queer e o socialismo libertário encontram um ponto em comum: o sujeito político queer é uma “identidade anindêntica” isso é: o (anarco)queer não possui identidade e a nada é idêntico, pelo contrário, muitas vezes critica e se distancia da política identitária da esquerda LGBTIA+ pois entende que as identidades podem ser facilmente capturadas pela lógica maquínica do capitalismo, apesar da potência dessas comunidades enquanto locais seguros de apoio mútuo, é preciso saber criticar sua tendência reformista e antipolítica.

Essa é outra grande questão: a esquerda LGBTQIA+ majoritariamente se posiciona como uma esquerda reformista: acredita na revolução social através de reformas políticas gradativas que modificariam o estatuto opressor do Estado, porém é preciso atentar para o fato de que ocupar cadeiras no plenário não basta, visto que a máquina estatal foi construída por e sobretudo para o homem branco rico e opressor tratando-se de sua principal ferramenta de violência e opressão contra as multidões queer: pela democracia econômica podemos mudar uma lei ou outra mas nunca mudaremos o caráter imperialista, genocida e opressor do Estado burguês. Explodir o capitalismo de dentro para fora não faz sentido porque nós (as minorias) somos o “fora” do capitalismo, não devemos ser coniventes com nada do que o capitalismo é ou representa, devemos explodí-lo de fora para dentro: invadindo, ocupando, incendiando, é isso o que Bash Back! faz.

A violência simbólica é imprescindível, a produção epistêmica e cultural socialista e lgbtQia+ ocupa um lugar privilegiado na produção das condições necessárias para a revolução do proletariado, criticar o capitalismo heteronormativo é ser subversivo e transgressor, é contestar violentamente um regime de sentidos ideologicamente instituídos que colabora com a manutenção do poder pela classe dominante. A violência simbólica - isso é: produção cultural e epistemológica posicionada contra a cultura e epistemologias da opressão - é necessária, mas se nos ocuparmos apenas de reformismo, violência simbólica e microrrevoluções nada mais seremos do que hipsters paz e amor. É preciso relembrar: Mahatma Ghandi foi só um e ele morreu assassinado.

4. REVOLUÇÃO SEM GÊNERO

É claro, aqui não se defende o uso irrestrito da violência, mas busca-se demonstrar que a violência muitas vezes é necessária. Precisamos também fazer uma crítica a BB! e seu uso não-sistematizado da violência, o que auxiliou a dissolução do movimento. O que define a necessidade de um revide violento é a análise material e histórico-dialética das condições em que aquele partido ou grupo se encontra bem como as condições para seu uso sistemático e eficiente: não se trata da violência pela violência, se trata em afirmar que não podemos apanhar calados e de que é legítimo revidar. A violência é sim a principal arma do opressor e a violência simbólica tem sido a nossa principal arma, mas precisamos saber usar todas as armas possíveis na luta de classes, o que não significa o seu uso irrefletido: precisamos de uma violência organizada e consciente, mais uma vez as palavras de Lenin se fazem assertivas: a organização política é a principal arma do proletariado na luta de classes.

BB! demonstra a potência da tática da ação direta necessária para uma esquerda revolucionária que busca abolir os sistemas de opressão, essa tática precisa estar sempre fundamentada: é preciso saber empunhar as armas da crítica para saber fazer a crítica das armas. Ultimamente nenhuma de nossas armas tem surtido efeito: estamos difusos quanto a como utilizar as armas da crítica (a violência simbólica) e não sabemos fazer o uso crítico das armas. BB! é um exemplo de resistência e demonstra como existir enquanto um corpo queer coincide com a luta socialista: a opressão de raça, gênero, classe e sexualidade é feita pela mesma classe dominante: os inimigos são os mesmos. Todas as maneiras criticamente fundamentadas de revidar são legítimas, Bash Back! Demonstrou que o terror não é uma ferramenta de uso exclusivo dos opressores: violência é coisa de viadinho.

No entanto, mais do que saber onde Bash Back acertou é preciso saber aonde errou e o que levou a sua dissolução, esse exercício vale para todas as esquerdas: afinal, a que se deve o fracasso sistemático do socialismo do século XXI? Porque somos incapazes de criar uma subjetividade coletiva capaz de uma emancipação revolucionária? A resposta parece nublada, mas pistas sobre as novas formas de organização política das esquerdas revolucionárias podem ser encontradas se olharmos mais de perto o surgimento de movimentos das novas esquerdas como Bash Back! e da insurgência de teorias como as aceleracionistas, queer e xenofeministas. Existe uma aposta que o novo sujeito revolucionário esbarra na “lésbica-ciborgue” do feminismo especulativo de Wittig-Haraway, uma coisa é certa: a nossa revolução será sem gênero.

5. ALGUMAS REFERÊNCIAS

CANAL Brasil. Judith Butler debate os problemas de gênero com Linn da Quebrada e Jup do Bairro | Transmissão, YouTube, 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=DMge3Uc9sUs>.

FERNANDES, Pedro Araújo. A VIOLÊNCIA REVOLUCIONÀRIA EM MARX E ENGELS. IESP-UERJ, 2019. Disponível em: <https://www.niepmarx.blog.br/MM/MM2019/AnaisMM2019/MC44/MC444.pdf>.

FERREIRA, Camila Daltro. RESENHA de Bash Back! Ultraviolência queer: antologia de ensaios. Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, v. 9, n. 2, 2021. Disponível em: <https://www.revistas.uneb.br/index.php/grauzero/article/view/12363/9121>.

PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos" anormais". Revista Estudos Feministas, v. 19, p. 11-20, 2011. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ref/a/yvLQcj4mxkL9kr9RMhxHdwk/#&gt>.

RIBEIRO, Marcos Vinícius. O DEBATE MARXISTA SOBRE O PAPEL DA VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA. XXIX Simpósio Nacional de História, Brasília, 2017, 978-85-98711-18-8. Disponível em: <https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1502664144_ARQUIVO_texto_completo.pdf>.

VÁRIOS AUTORES. Bash Back! Ultraviolência queer: antologia de ensaios. Trad. Beatriz Regina Barboza, Emanuela Carla Siqueira, Julia do Nascimento. São Paulo, SP: crocodilo; n-1 edições, 2020.