Os EUA e o Golpe de 64 no Brasil

 

No meu artigo anterior, publicado na última terça-feira, dia 2, Ditadura e tortura nunca mais, fiz um breve apanhado restrito ao âmbito nacional, destacando alguns aspectos civis e militares que contribuíram para o Golpe de 1964 no Brasil. Hoje, escrevo sobre o outro braço que gestou e desferiu o golpe: a participação decisiva dos Estados Unidos da América - EUA.

 

Em primeiro lugar, o golpe só saiu porque os EUA estavam por trás. E, no geral, o que os levou a ajudar na articulação e efetivação do golpe? Foi o clima político durante a Guerra-Fria, que separava os blocos liberal e comunista no período posterior à Segunda Guerra Mundial, o primeiro sob a liderança dos EUA e o segundo pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS. Por influência do embaixador do país no Brasil, Lincoln Gordon (1913 - 2009), o presidente John Kennedy (1917 - 1963), em 1962, autorizou a articulação, conforme comprovam documentos e gravações da época liberados no início dos anos 2.000 pelos EUA (vide o documentário O dia que durou 21 anos, de Camilo Tavares, 2012). Para tal, foi trazido da Itália para ser adido militar na embaixada no Brasil o general Vernon Walters (1917 - 2002), que muito conhecia os militares brasileiros por ter atuado com a FEB na Itália, principalmente com o marechal Castelo Branco (1897 - 1967), que se tornaria o primeiro presidente do golpe (Walters e Castelo Branco, na foto abaixo).

 

Para garantir o sucesso da conspiração, Gordon (foto acima, com o marechal Castelo Branco) solicitou que uma frota fosse enviada para o litoral brasileiro, para realizar uma ação armada contra tropas legalistas, caso o presidente João Goulart optasse por tal. Entretanto, o porta-aviões, os quatro contra-torpedeiros, os cruzadores e os navios-tanque receberam ordem de voltar quando a derrubada de João Goulart (1919 - 1976) se deu sem resistência, abortando a denominada Operação Brother Sam. Os estadunidenses, assim que reconheceram o governo militar, enviaram a conta com os custos da frota para estes, mas o embaixador Gordon interviu para que nada fosse ressarcido aos cofres dos EUA. Até um padre irlandês-estadunidense foi envolvido na ação, Patrick Peyton (1909 - 1992), que veio para participar da oposicionista Marcha da família com Deus pela liberdade, em São Paulo, em 18 de março de 1964, 14 dias antes do golpe que seria ironicamente consolidado em 1º de Abril.

 

O golpe militar brasileiro não foi um fato isolado da Guerra Fria na América Latina - AL -, eis que quase todos os países do continente passaram por situações análogas no período, sempre com um dos braços sendo os EUA visando impedir qualquer experiência de cunho socialista no "seu quintal", depois da Cuba de Fidel Castro (1926 - 2016) e Che Guevara (1928 - 1967). Só que os dois gaúchos que comandaram o Brasil nas últimas décadas, Getúlio Vargas (1882 - 1954) e João Goulart, eram estancieiros de São Borja, tão próximos do comunismo quanto Teixeirinha do heavy metal e Renato Portaluppi do Inter . Entretanto, eram tempos de paranoia política e ideológica, e o democrata Kennedy preferiu não arriscar. Somente no governo do também democrata Jimmy Carter (1924 - 99 anos), entre 1977 e 1981, é que os EUA influenciariam na abertura política na AL, o que fez a Ditadura Militar arrefecer no Brasil e preparou-se o terreno para a redemocratização, durante o governo do general João Figueiredo (1918 - 1999).

 

Em 2022, a articulação golpista militar tentada pelo ex-presidente de extrema-direita se deu em outro contexto mundial e gorou, mesmo que ele faça parte dos que invocam o fantasma do comunismo e da Guerra Fria no museu internacional da política, como o trumpismo estadunidense. Aliás, é pertinente pensar, caso o republicano Donald Trump tivesse vencido as últimas eleições no Estados Unidos, se a intentona golpista de 8 de janeiro de 2023 não teria recebido seu apoio? Inclusive foi feita no mesmo dia da presepada turmpista no Capitólio, que aconteceu um ano antes! Só que foi o democrata John Biden quem venceu...

 

Agora, com a Guerra da Ucrânia e a disputa geopolítica e comercial China x EUA, mesmo com a URSS não mais existindo e a Rússia sendo um país agora capitalista, paira num ar um novo clima político análogo à Guerra Fria, sem o medo do fantasma comunista, mas com uma nova ordem mundial que separa EUA e União Europeia dos BRICS - grupo que inicialmente unia apenas Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Isso, por um lado, é ruim para o Brasil em termos políticos, pois se torna um dos mariscos da história; por outro, economicamente, estava sendo bom, pois o Brasil tem muito mais perspectivas de crescimento econômico no mundo globalizado dentro dos BRICS do que na sua historicamente desvantajosa e predatória relação com EUA e Europa. Na política, o Brasil perde porque sempre foi um país neutro na diplomacia mundial, com boas relações em ambos os blocos, tanto com Rússia e China quanto com EUA e França, por exemplo. Se for obrigado a "tomar partido", perderá muito, o que pode até abrir espaço para uma nova conspiração estrangeira por aqui, dependendo de quem for o próximo presidente eleito na terra do Tio Sam.

 

Voltando para o Brasil do presente e finalizando esse artigo, vimos que além dos militares legalistas do Exército e da Aeronáutica, que se colocaram contra a versão 2022 do golpe, várias forças políticas liberais de centro e de direita, setores do Judiciário, grupos religiosos, midiáticos e empresariais se colocaram contra a reeleição do então presidente no segundo turno presidencial em 2022 e reagiram a intentona golpista em 2023. Não apenas o mundo, mas o Brasil não estava mais em 1964. Que nunca mais esteja.