Carolas e/ou ingênuos

Carolas e/ou ingênuos

Publicado no Blog Diário do Poder, Brasília-DF, em 04/04/2024

Nem uma coisa nem outra. Hoje cerca de um bilhão e meio de pessoas são cristãs. O Cristianismo se espalhou pelo Ocidente tornando-se o fundamento de referência intelectual das atuais sociedades democráticas. Cientistas sociais apontam esse fato como determinante na formação da Civilização Ocidental, que aconteceu, inicial e principalmente, na Europa cristã: “a Europa tem sangue cristão”, (F. Braudel). Somos herdeiros dessa cultura milenar. Os princípios da fé cristã, queiramos ou não, condicionam poderosamente, o nosso viver.

É verdade que as Igrejas Cristãs, atualmente, são comunidades de fé decadentes, resultado da pouca consistência da formação intelectual dos seus membros, o que inibe a ação evangelizadora no desafiador mundo atual, que rotula, muitas vezes de forma debochada, ser a fé cristã conservadora e retrógada. A mensagem de fraternidade e amor, que distingue o Cristianismo, do ponto de vista sociológico, como uma bem sucedida experiência de convivência humana, passa a ser um valor descartável.

Já se percebe como que um cansaço do Ocidente, favorecendo a migração do dinamismo do progresso humano para o Oriente, a mesma região que absorveu, no último século, muito das ciências, tecnologias, sistemas jurídicos e demais manifestações culturais das sociedades Ocidentais, inclusive os conceitos de Liberdade, de Democracia e dos Direitos Humanos. Os valores morais do Cristianismo estão disseminados por todo o planeta. Pode-se não gostar, mas não há como discordar desta afirmação.

Ao mesmo tempo em que os povos cresceram e as sociedades se desenvolveram, a adesão aos valores morais do Cristianismo decresce de forma acentuada. Sem a inspiração primeira, de fundo moral, as sociedades do mundo Ocidental começam a experimentar uma desaceleração da solidariedade e a predominância crescente do individualismo egoísta, fazendo crescer o distanciamento entre ricos e pobres, favorecendo a dominação política e econômica da classe dirigente.

Os povos, os eleitorados, precisam ter clareza na necessidade de crença num objetivo comum. Naturalmente aflora como ideal coletivo a construção de um mundo justo e solidário. Não basta afirmar essas aspirações, é preciso vivencia-las no exercício da Democracia pela prática da política partidária, que à luz dos princípios morais globais apresenta, por intermédio dos seus representantes, propostas concretas para os problemas específicos do momento. Exigências, como o atendimento ao direito à uma vida digna, começam a surgir em todo o planeta, em contestações politicamente ainda desestruturadas, cada vez mais fortes e frequentes.

Cinco bilhões de pessoas são pobres. Trinta e três milhões de brasileiros passam fome. A Democracia não resolveu a questão da miséria. O liberal capitalismo desconhece a questão moral da injusta distribuição da riqueza gerada, convivendo bem com a pobreza, cada vez mais afastada, fisicamente, para a periferia dos centros urbanos.

Não adianta elaborar planos de desenvolvimento ou de reformas Institucionais para o melhor funcionamento da Democracia e a eliminação da miséria, se os povos não estiverem unidos, solidaria e entusiasticamente, em torno do objetivo da promoção do bem comum.

A classe dominante sempre soube, claramente, o que quer: o poder político e econômico. Assim, com essa perspectiva, prospera e impede as necessárias alterações, nas estruturas sociais e políticas, que permitiriam o acesso da população aos bens e serviços necessários à uma vida digna. A ganância e o desejo de poder são as variáveis mais importantes a serem modificadas: uma difícil tarefa a ser empreendida sem a colaboração das Igrejas Cristãs Históricas, com sua pregação evangélica, como fizeram exitosamente no passado.

O desmerecimento maldoso de reflexões como esta, como sendo algo produto da mente de carolas ou de ingênuos incompetentes, só fará aprofundar a crise social com o aumento da injusta distribuição da riqueza gerada, do desemprego, da miséria, da violência e da crise climática. Os povos precisam voltar a debater, politicamente, as raízes dos problemas que os afligem e a votar conscientemente as alternativas que lhes são apresentadas.

A ideologia do “politicamente correto” atemoriza. Ser considerado conservador ou retrógado inibe a maioria das pessoas a se rebelarem contra os modernismos que já estão, praticamente, dirigindo o pensamento e as estruturas que dominam e oprimem as populações.

A humanidade corre o risco de desaparecer se nada for feito agora, unindo os povos em torno de um objetivo comum, muito mais fruto da pregação da tradição judaico/cristã, do que resultado de propostas políticas e econômicas pontuais e falhas, para a solução sempre parcial dos problemas, mutáveis e interdependentes, da repartição da riqueza, da geração de empregos, do atendimento das necessidades básicas dos povos e da contenção da crise climática. O principal objetivo a ser conquistado é as sociedades serem majoritariamente constituídas por pessoas que reconheçam e acreditem na decisiva importância da solidariedade e da compaixão, na construção da História.

Eurico de Andrade Neves Borba, 83, ex professor da PUC RIO, ex Presidente do IBGE, é do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, mora em Ana Rech, Caxias do Sul. eanbrs@uol.com.br