Ver, julgar e agir {SERMO CXXXV]

VER, JULGAR E AGIR

Antônio Mesquita Galvão

Carmen Sílvia Machado Galvão

Examinem tudo e fiquem com o que é bom...(1Ts 5,21)

Dias atrás, ao escrever sobre o cinquentenário da Mater et Magistra, lembramos que o papa João XXIII, definiu como o melhor método para a formação nos princípios da justiça social aquele que depois foi consagrado pela Igreja latino-americana: conhecer a situação concreta (ver), examinar essa realidade à luz da Palavra e da doutrina da Igreja (julgar) e, por fim, agir "de acordo com as circunstâncias de tempo e de lugar” (MM, 236).

Lembrávamos ainda que o "papa buono”, neste mesmo parágrafo da encíclica definia tal método como ver, julgar, agir. Salientava que, segundo o papa, é necessário “que os jovens, não só conheçam esse método, mas o empreguem, concretamente, na medida do possível, a fim de que os princípios adquiridos não permaneçam para eles no campo das idéias abstratas, mas sejam traduzidos na prática” (MM, 237).

Ver, Julgar e Agir é um método que consiste em exercitar o senso crítico, que dá plena consciência aos nossos atos. Propõe-se, então, a ação fundamentada na reflexão auxiliada pela aplicação dos ensinamentos morais trazidos por Cristo. Este método permite que as pessoas tenham uma visão mais acurada da realidade, sem o fulcro de ranços ideológicos ou tradicionalismos anacrônicos.

Naquele artigo foi afirmado ainda que um dos sinais mais evidentes do inverno tenebroso da atual Igreja, especialmente aqui na América Latina, é o aborto progressivo deste método. Documentos recentes dos episcopados e das Igrejas locais revelam a intenção premeditada de enterrar definitivamente este precioso legado consagrado por um documento tão valioso do Magistério da Igreja.

O sepultamento do método ver-julgar-agir começa aqui na América Latina com as Conclusões de Santo Domingo, no início da década de 1990. Daí para cá os documentos oficiais foram abandonando-o progressivamente. O mais recente exemplo disso pode ser encontrado nas Diretrizes da ação evangelizadora da Igreja no Brasil, aprovadas em maio passado.

O abandono do método ver-julgar-agir revela a pendência clara da Igreja para a direita. Por se tornar cada vez mais conservadora e fundamentalista, ela rejeita todo método que possa criar nos cristãos e nas cristãs o espírito crítico e a capacidade de enxergar melhor a realidade e as causas de determinados problemas. Além disso, revela uma pobreza cada vez maior no campo teológico e um desconhecimento crescente da pedagogia bíblica. Embebida numa “nova evangelização” que nunca decolou, a Igreja da América Latina parece não saber lidar com os ministérios leigos e com a articulação destes no cumprimento do mandato de Jesus.

De fato, observando atentamente a tradição profética e a prática de Jesus, é possível perceber que o método utilizado não tem como ponto de partida a teologia, mas a realidade. Para propor a conversão, a mudança, tanto das pessoas como das estruturas sociais, os profetas e Jesus não partem de afirmações teológicas substanciais, mas do que está acontecendo. Após terem mostrado como se encontra a realidade, fazem o confronto com o que é considerado palavra de Deus e convidam a mudanças radicais, a reviravoltas. Não se trata de direita ou esquerda, mas de um tradicionalismo radical e conservador que fecha os olhos às realidades e aos clamores populares.

No que diz respeito aos profetas, os exemplos são numerosos e seria impossível falar de todos eles. Bastaria lembrar dois episódios que são bem emblemáticos do método usado pelos profetas. O primeiro é o caso do adultério de Davi (2Sm 12,1-14). O profeta Natan não chega até ele fazendo pregações teológicas ou recordando as normas da lei mosaica. Começa contando uma história que obriga o rei a dar de cara com a realidade e com a sua injustiça. Somente depois de o rei ter caído na real o profeta vai fazer a sua pregação teológica e convidá-lo a uma atitude de mudança. O outro episódio emblemático é a ação simbólica de Jeremias que se coloca na porta do Templo e começa a proclamar em voz alta a lista dos pecados do povo (Jr 7,1-28). Também ele não vai fazer uma pregação sobre os preceitos da Torá e nem tão pouco sobre quem é Javé. Começa sua ação levando o povo a perceber a realidade.

Se vamos para a práxis de Jesus, percebemos a mesma coisa. Ele não é um fariseu e nem um doutor da Lei, que vai fazendo elucubrações teológicas e citando textos bíblicos, dando aulas de teologia. De acordo com a maioria dos exegetas, Jesus não tinha grandes conhecimentos da Torá, uma vez que o estudo da Lei não acontecia no ambiente de Nazaré, onde ele viveu. O conhecimento bíblico de Jesus era mediano, próprio dos moradores da Galiléia que viviam distantes de Jerusalém, o centro teológico e cultual da época.

Jesus não sai pela Palestina fazendo discursos teológicos. Ele se insere no meio do povo e, a partir da contemplação da realidade, vai ajudando esse mesmo povo a perceber a presença amorosa de Deus. Não parte de Deus para chegar à realidade, mas parte da realidade para fazer as pessoas se darem conta do amor misericordioso do Pai. Começa falando de comida, de bebida, de roupa, das preocupações cotidianas, convidando os homens e as mulheres a contemplarem a erva do campo e os pássaros do céu (Mt 6,25-34), e, a partir do concreto, chegar até a providência divina e à centralidade do Reino de Deus e da sua justiça (Mt 6,33).

Em outras ocasiões, para explicar como a Palavra age nas pessoas, parte da vida concreta dos lavradores, do trabalho doméstico das mulheres (Mt 13). Para dizer como deve ser a conexão entre o discípulo e o Pai, parte da experiência dos trabalhadores na agricultura, que certamente eram maioria absoluta, senão a totalidade, dos seus ouvintes (Jo 15,1-6). Para explicar como é o seu cuidado e o cuidado do Pai para com as pessoas, fala da atividade do pastor, cuidador de ovelhas (Jo 10,1-21).

Portanto, Jesus não se preocupa em “partir de Deus”, como queriam os fariseus e os legalistas doutores da Lei, preocupados com as picuinhas religiosas e com as precisões teológicas. Jesus partia da vida real, concreta, do seu povo. Como bom pedagogo sabia que esse método funcionava realmente e possibilitava às pessoas compreenderem o que precisavam compreender para aderir à sua proposta de Reino de Deus. E os Evangelhos são unânimes em nos mostrar que o método de Jesus funcionou e que o povo entendeu plenamente a sua mensagem. “E uma grande multidão o escutava com gosto” (Mc 12,37).

A obsessão em querer “partir de Cristo” revela-se falsa e ideológica. Falsa porque se afasta da tradição bíblica e da intuição de grandes santos como João XXIII. Ideológica porque mostra claramente que por trás desse abandono está a intenção clara de não utilizar um método pastoral que eduque o povo de Deus, tornando-o sujeito de sua própria libertação.

Pretende-se que a fé cristã funcione como ópio e não como força libertadora e transformadora. Deixando de lado a realidade, ou camuflando-a com pseudo-afirmações teológicas, se esconde a verdade e não se permite a libertação que dela viria. A pregação e a evangelização se tornam “discurso lacunar”: muito palavreado para esconder aquilo que deveria ser realmente dito.

Infelizmente a atual hierarquia vai perdendo a sua condição profética e, por isso, perde também a sua capacidade de evangelizar a partir das situações concretas. O evangelho passa a ser uma abstração, um falatório que não encontra ressonância em lugar nenhum, porque não é anunciado dentro das condições reais das pessoas. E nesse contexto ressoa a palavra profética de Dom Oscar Romero, pronunciada no dia 18 de fevereiro de 1979:

Os fatos concretos, Deus não os despreza. Querer pregar sem referir-se à história em que se prega não é pregar o Evangelho. Muitos gostariam de uma pregação tão espiritualista que deixasse os pecadores como estão, que não dissesse nada aos idólatras, aos que estão de joelhos diante do dinheiro e do poder. Uma pregação que não denuncia as realidades pecaminosas, no seio das quais se faz a reflexão evangélica, não é Evangelho. Por causa disso, como amava repetir Dom Hélder, os atuais documentos eclesiásticos da América Latina voltam a ser “belas teorias sobre uma dura realidade”. Ou, como diz o escritor Hubert Lepargneur, “na prática a teoria é outra”.

Poucos dias atrás – conta o professor José Lisboa Moreira de Oliveira – encontrei um padre que acabava de chegar de sua primeira viagem à Europa. Visitou Roma e vários outros “lugares sagrados” europeus. Lá o método ver-julgar-agir nunca foi adotado pela Igreja. Mas esse padre estava aterrorizado com o que viu. Nas igrejas, nas missas, quase ninguém. Só algumas velhinhas arrastando-se com muita dificuldade. A missa tinha que terminar na hora exata, pois na hora marcada os filhos ou netos apareciam, mas apenas para buscar suas mães ou avós.

Isso não me assustou, pois, tendo estado por lá, já conhecia essa situação, a qual deve ter se agravado nos últimos anos. Porém, este é o futuro de uma Igreja que voltou a abandonar o cuidado com a realidade, que insiste em fazer discursos teológicos estéreis, completamente desconectados da situação real do povo. Esse é o futuro de uma igreja que não quer agir “de acordo com as circunstâncias de tempo e de lugar” (João XXIII).

Se não soubermos substituir “a santidade de reputação e de fachada pela santidade interior e real, as criaturas mais conscientes, que têm a maior sede de justiça, que são mais desconfiadas e reais, correm o risco de perder a fé” (Dom Helder Câmara). O modelo “VJA” que se tornou conhecido na realidade latino-americana, nasceu no seio da Ação Católica dos anos 50, na Bélgica, e encontrou um campo fértil para seu desenvolvimento na Igreja da América Latina.

Nos países latino-americanos, esse método foi recebendo novas características de acordo com as necessidades e compreensão teológico-pastoral. Foram acrescentados, por exemplo, os itens “celebrar” e “avaliar”. Em muitos lugares esse modelo é chamado de “método participativo”, colocando em destaque o aspecto “comunhão e participação”.

O método está ligado à maneira de ser Igreja, e ajuda no processo da pastoral de conjunto, fazendo ver “como comunidade”, julgar “como comunidade” e agir “como comunidade”. A Igreja, sem se preocupar com suspeitas alarmistas valeu-se do método para expressar sua prática de fé, especificar sua missão e fazer uma profunda reflexão teológica. Isso demonstra que o método faz ver com os olhos do Pai, julgar coerentemente segundo os ensinamentos e exemplos do Filho e da comunidade, e agir sob a influência do Espírito Santo. Bem trinitário.

VER

Mas não se trata de observar a realidade de modo passivo, trata-se de mergulhar na realidade, ou seja, inserir-se, encarnar-se, tendo como modelo Jesus Cristo, que encarnou-se, assumindo assim a vida humana, viveu a vida dos seres humanos sendo Deus, tomou sobre si as nossas fraquezas, limitações e problemas, ajudando-nos a superá-las.

JULGAR

Tem o sentido de iluminar, criticar, de confrontar a realidade à luz da ótica cristã, exigindo fidelidade a Deus e aos irmãos. Trata-se de analisar as causas e conseqüências dos fatos observados; questionar criticamente o que se vê; discernir o que está a serviço da vida ou da morte. Mas se exige três importantes critérios para se julgar de modo coerente: um bom conhecimento da realidade humana e social (ver); discernimento crítico à luz da fé; e intimidade com a Palavra de Deus (também uma leitura contextualizada, e não fundamentalista).

São também critérios importantes para a formação de opinião do julgar um bom conhecimento da doutrina da Igreja, a escuta da Palavra de Deus que se revela no hoje dos acontecimentos da história (espiritualidade e mística), humildade (estar sempre disposto a aprender algo novo), capacidade de superar preconceitos e mudar de opinião, e reconhecer que não estamos sempre certos, e que, embora nos aproximando da verdade, não somos donos dela. De forma resumida, são três os pontos de apoio para uma boa formação de opinião sobre o julgar: o bom senso, a Palavra de Deus na Bíblia e a Doutrina da Igreja.

AGIR

O agir é o momento de encaminhar uma ação transformadora da realidade constatada e critica da realidade ou situação. Quando falamos de AGIR não se fala de fazer coisas, mas estamos falando de uma mudança de atitude diante da vida, ou seja, uma transformação pessoal e integral, atingindo todos os níveis da pessoa, causando conseqüências diretas e indiretas na sociedade, comprometendo não só os indivíduos isolados da sociedade, mas toda a comunidade eclesial. Qual a condição para a implantação do método VJA: a existência de um ponderável senso crítico. Este tema está esmiuçado no livro “O senso crítico e o método ver-julgar-agir para pequenos grupos de base” - Jorge Boran, Ed. Loyola, 1978.

O tema do trabalho vem desmembrado em três partes: A primeira parte aborda questões como Qual é o lugar do Homem no mundo? A segunda parte explora o método ver, julgar e agir. A terceira parte busca a dimensão da fé, pistas para o despertar do senso crítico, como enfrentar o medo, o desânimo e a frustração; A utilização das experiências pastorais com o método ver, julgar e agir. Trabalha a revisão de vida, o planejamento e a ação transformadora.

Para o sucesso dessa reflexão há que se postular algumas mudanças no âmbito da Igreja. Do ponto prático essas mudanças possibilitaram o surgimento de uma Teologia de Libertação:

 A experiência da “ação católica” e seu método VER-JULGAR-AGIR. Esta pedagogia ajudou na busca de uma compreensão crítica da realidade e impulsionou uma ação transformadora.

 A realização do Concílio Vaticano II, entre 1962-1965 e a busca de diálogo da Igreja com o mundo moderno.

 A Segunda e a Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Medellín (1968) Colômbia, e em Puebla (1979) no México, ocorridas na vigência dos regimes militares.

 O florescimento das Comunidades Eclesiais de Base, que impulsionadas pela Conferência de Medellín e pela pedagogia da Ação Católica através do método VER-JULGAR-AGIR, lutavam pela transformação social.

O enfrentamento dos regimes militares por parte dos bispos, quer através das conferências episcopais nacionais, quer por bispos isolados, como Dom Hélder Câmara († 1999), Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom José Maria Pires, Dom Oscar Romero (†1985), Dom Antonio Batista Fragoso († 2006) entre outros.

O método VJA a partir da Teologia da Libertação, na América Latina, é indutivo e não parte da Revelação e da Tradição eclesial para fazer interpretações teológicas e aplicá-las à realidade, mas partem da interpretação da realidade da pobreza, exclusão e do compromisso com a libertação para fazer a reflexão teológica e convidar à ação transformadora desta mesma realidade. Ocorre também uma crítica à teologia moderna e sua pretensão de universalidade. Consideram esta teologia eurocêntrica e desconectada da realidade dos países periféricos.

“Para levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-se ordinariamente por três fases”, escreveu o Papa João XXIII (n. 236) na citada encíclica. Primeiro, o “estudo da situação” concreta; segundo, a “apreciação da mesma à luz dos do evangelho e diretrizes”; terceiro, o “exame e determinação do que se pode e deve fazer” para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: “ver, julgar e agir”, continuava.

Foi o cardeal Joseph Cardijn († 1967), fundador do movimento da Juventude Operária Cristã - JOC, que sugeriu ao Papa João que publicasse uma encíclica para marcar o 70º aniversário da histórica encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII. Quatorze meses depois, no dia 15 de maio de 1961, até Cardijn ficou surpreso quando o Papa João publicou a encíclica Mater et Magistra, que adotou especificamente o famoso método ver-julgar-agir que ele havia promovido durante toda a vida.

Ver, Julgar e Agir, como já foi dito aqui, é um método que permite que as pessoas tenham uma visão mais acurada da realidade. É pena que, no atual marasmo de uma Igreja “sentada”, mais litúrgica que profética, onde proliferam reuniões, “documentos” e tentativas de “leitura orante”, muitos conduzam o pensamento entre o ver e o julgar, deixando a práxis, o agir para depois.

Como ensina do mestre René Voillaume: “A oração deve procurar tornar-se uma atitude que se prolonga na ação”.