As bem-aventuranças [SERMO CXXXVI]

AS BEM-AVENTURANÇAS

O caminho para a felicidade

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão

misericórdia

Um dos pontos altos do Novo Testamento é o discurso proferido por Jesus em Cafarnaum, às margens do Mar da Galiléia, conhecido como “sermão da montanha”. Qual a mensagem que Jesus quis transmitir ao povo nesse sermão? Sobre que tipo de alegria ele falou? Que esperança foi transmitida? A alegria prometida dependia do cumprimento de mais normas e regras? É salutar que o cristão conheça um pouco mais sobre este importante sermão que tem nas “bem-aventuranças” seu ponto alto.

Há várias teorias que tentam explicar o “sermão da montanha”. Para alguns estudiosos, de visão mística, o sermão é uma boa notícia, um “evangelho” exclusivo do Reino de Jesus. Outros o compreendem de uma forma mais acadêmica, em que o sermão apresenta princípios éticos e morais pertinentes a um reino messiânico a partir da antiga religião judaica. Os exegetas, geralmente fazem um comparativo entre a degradação moral do gênero humano e os princípios anunciados no sermão. Já ouvi gente comparando o sermão a uma “plataforma eleitoral”.

O evangelista Mateus reúne o ensinamento de Jesus em “cinco grandes discursos”, entre eles aquele, talvez o mais expressivo, que conhecemos como “As bem-aventuranças”, onde Jesus é apresentado como o novo Moisés, fundador do novo Povo de Deus. Ali é dada a sua lei, seus preceitos e suas promessas. O monte das bem-aventuranças é o eco e a plenitude do Monte Sinai.

As bem-aventuranças são instruções para a Igreja, que nelas deve reconhecer o seu modelo. São instruções para o seguimento, a cada um individualmente, ainda que de acordo com a pluralidade das vocações e dos diferentes modos de ver e viver a vida (Bento XVI. in: Jesus de Nazaré).

Igual aos mestres daquele tempo, Jesus se sentou na parte alta do monte, cercado pelos seus discípulos e pela multidão e começou a falar. Vendo Jesus a grande multidão subiu a uma colina, e se sentou (cf. Mt 5, 1); os seus discípulos aproximaram-se e ele passou a ensiná-los. Há muito tempo que o povo ouvia falar das bem-aventuranças prometidas desde as antigas Escrituras.

A situação agora era de opressão e miséria; injustiça e desesperança. A fama de Jesus havia criado uma expectativa na multidão, e quando ele falou sobre as bem-aventuranças, materializou-se a esperança dos ouvintes. Ano após ano os pais anunciavam aos filhos uma época de alegria plena, mais ainda não tinham experimentado essa alegria prometida por Deus.

O sermão da montanha iniciou-se com uma mensagem de alegria a um povo oprimido e sem esperança. Jesus apresenta uma esperança viva, porém, o discurso endurece logo em seguida. O povo esperava refrigério e segurança nesta vida. Esperavam um Messias que os libertasse da escravidão política. Penetrando no âmago do sermão da montanha, os especialistas em Sagradas Escrituras vêem nas bem-aventuranças uma autobiografia de Jesus, onde expõe as exigências do Reino, de corpo inteiro.

Ele se identifica com os pobres, com os que choram, com os mansos de caráter, com os injustiçados, com os que agem com misericórdia, com os que são puros de coração (e de atitudes) e com os perseguidos por causa da justiça. Os que agem desta forma, diz o Senhor, são makários (felizes, bem-aventurados, afortunados). Por conta disto, o Mestre chega a proclamar:

Disse estas coisas a vocês para que minha alegria esteja em vocês, e a alegria de vocês seja completa (Jo 15,11).

Jesus declara felizes aqueles que vivem de acordo com os preceitos do seu evangelho. Ele não só se vê nos rostos dos carentes, mas também orienta os discípulos a verem neles o rosto de Deus. Para orientar nossa reflexão, vamos buscar o texto das bem-aventuranças, do evangelho de Mateus. Aqui vamos utilizar a Bíblia Sagrada (Edição Pastoral, da Paulus).

1 Jesus viu as multidões, subiu à montanha e sentou-se. Os discípulos

se aproximaram

2 e Jesus começou a ensiná-los:

3 “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu.

4 Felizes os aflitos, porque serão consolados.

5 Felizes os mansos, porque possuirão a terra.

6 Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.

7 Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão

misericórdia.

8 Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.

9 Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos

de Deus.

10 Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles

é o Reino do Céu.

11 Felizes vocês se forem insultados e perseguidos, e se disserem

todo tipo de calúnia contra vocês, por causa de mim.

12 Fiquem alegres e contentes, porque será grande para vocês a

recompensa no céu. Do mesmo modo perseguiram os profetas que

vieram antes de vocês” (Mt 5,1-12).

É interessante notar que encontramos bem-aventuranças em Mateus (cap. 5) e em Lucas (cap. 6) este em escala mais reduzida. Diante das análises e de algumas contradições, ficam as questões: O sermão da montanha é um conjunto de normas e princípios de cunho ético e moral? É um estatuto do Reino de Cristo? É uma boa notícia? Ou somente uma tábua de exigências morais?

Basta praticar o que Jesus anunciou e o homem terá direito ao Reino dos céus? Ou se trata de um conjunto de texto bonitos, idealistas, que emocionam? Para compreendermos a mensagem de Jesus, é necessário observarmos alguns versículos do Antigo Testamento e a dinâmica do aprendizado da Escritura naquela época. Dentre vários livros destacamos:

Bem-aventurado tu, ó Israel! Quem é como tu? Um povo salvo pelo Senhor, o escudo do teu socorro, e a espada da tua majestade; por isso os teus inimigos te serão sujeitos, e tu pisarás sobre as suas alturas (Dt 33, 29).

1. Primeira bem-aventurança

Os pobres de Javé

Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu (v. 3).

Os mais antigos textos veterotestamentários dão conta do significativo carinho que o Pai dispensa a seus filhos, e em especial aos mais pobres, àqueles que não têm ninguém por si. Jesus inicia a proclamação de suas bem-aventuranças afirmando que felizes são os pobres, aqueles pobres de espírito, os mais simples, privados dos consolos materiais, aqueles abertos a receber o anúncio da boa notícia com coração de criança e espírito de pobre.

É curioso como o homem, por séculos afora, tem agregado juízos, como riqueza e felicidade, prestígio e alegria, não admitindo outras combinações a não ser estas. Considerando, sob esta ótica, felizes aqueles que têm, que possuem riquezas, poder, posições sociais e outras posses. O que se constata é que esse desejo de ter mais, de possuir mais, de gozar mais, na contramão das bem-aventuranças, não tem feito a felicidade do ser humano.

Há várias décadas, muitos segmentos da Igreja têm desenvolvido debates – a maioria deles improfícuos – a respeito das palavras de Jesus sobre os pobres de espírito. Uns dizem que pobres de espírito são os materialmente privados, os empobrecidos, os desempregados (ou subempregados), os que não ganham o suficiente para se manter, os que passam fome. Outras correntes defendem a idéia que a expressão pobres de (em) espírito dignifica simplicidade, desapego; até simploriedade. O fato é que, todo esse desencontro da interpretação não conseguiu minorar a pobreza nem promover a justiça social.

Se formos ao evangelho de Mateus, escrito originalmente em aramaico, vamos encontrar a expressão anawim que aponta para um sentido de despojado, pobre, miserável, mas também de pessoa simples. Já no evangelho de Lucas, escrito em grego, vamos encontrar o verbete ptoxói, que aponta para o sentido de pobre, materialmente falando.

Transposta a primeira barreira exegética, podemos concluir que a pobreza considerada por Jesus como requisito para a felicidade, pode ocorrer pela privação de coisas e bens materiais ou pela humildade e pela desconsideração das riquezas. É salutar nesse caso sabermos se nossos bens são coisas ou divindades. O que significa então a pobreza evangélica?

Vamos usar o método filosófico dos opostos. Tentaremos descobrir quem são os ricos de espírito para, no juízo oposto, chegarmos aos pobres de espírito. Certo? Ser rico de espírito é ter orgulho da casa que se tem, do nosso carro importado que está na garage, do cargo que se exerce, do título universitário que ostentamos (às vezes para encobrir nossa mediocridade), da roupa fashion que se veste, do dinheiro que se gasta, da beleza física, do nosso prestígio (muitas vezes comprado) etc. Se formos olhar bem, veremos que nosso mundo está cheio de “ricos de espírito”, de pessoas que não querem renunciar às suas idéias (nem sempre originais), nem tampouco deixar de lado suas práticas corretas ou ortodoxas, eticamente falando. Isto tudo afasta as pessoas da verdadeira virtude.

Também nas atividades de Igreja há muitos rico(a)s de espírito, que se iludem com a glória de suas atividades, o poder do seu cargo, a riqueza de seu guarda-roupa ou o acervo de sua cultura. São pessoas que destilam um orgulho humano a partir daquilo que fazem ou possuem, e que deveriam se constituir em um apostolado anônimo e serviçal. Ser pobre de espírito é desfrutar a liberdade; não há nada menos livre do que uma pessoa rica de espírito. A verdadeira pobreza de espírito, evangelicamente falando é uma condição para usufruir a liberdade. O Reino é uma república de cidadãos livres. O menor apego à tirania, às paixões e à ambição configura um cativeiro. A ambição é o último refúgio do fracasso.

O pobre de espírito é um simples, disponível a todo apelo que vem de Deus, despojando-se do seu eu para se filiar ao nós, sob as luzes do Vós. É despir-se de si mesmo sem apegar-se a nada. É permitir que o coração se esvazie de tudo que divide e escraviza, para preenchê-lo com a inefável presença de Deus. Ao contrário, o rico é um conservador; inimigo da novidade e das mudanças ele se apega à segurança que ele julga uma proteção contra as ameaças.

Sobre a pobreza, o papa João Paulo II discursando na Favela do Vidigal, no Rio de Janeiro (1979) afirmou “são igualmente bem-aventurados aqueles que, na medida da sua riqueza, não se cansam de repartir seus bens”. Quem possui bens, de acordo com a sua generosidade, pode se tornar um bem-aventurado, assim como, outra pessoa pode não merecer a beatitude, apesar de sua pobreza, se for avarento, egoísta e revoltado.

Ter espírito de pobre é ser liberto de qualquer orgulho, do desejo de ser elogiado e reconhecido, de ser alvo de distinções. O pobre de espírito é um humilde, e o humilde nunca se julga credor de direitos e honrarias.

No dia da tribulação o Senhor livrará aquele que cuidou do

necessitado (Sl 40,2).

2. Segunda bem-aventurança

Por quem chora Raquel?

Felizes os aflitos, porque serão consolados (v. 4).

As antigas Escrituras nos contam a história de Raquel que, do alto de uma colina viu seus filhos serem levados para o exílio, onde seriam assassinados. O profeta Jeremias (31,15) se refere ao pranto de Raquel como tipo de todo o sofrimento de Israel. O Novo Testamento relata (Mt 2,18) o massacre das crianças em Belém, assassinados pelo medo de Herodes de ser destronado por um “novo rei”. Ali também há uma menção às lágrimas de Raquel, através do choro anônimo daquelas mães que perderam seus filhos, cujo único pecado foi terem nascido sob o reinado ilegítimo do imperialismo de Herodes. As lágrimas dessas mulheres varam séculos, como um libelo contra a injustiça e a violência. O choro das mães de Belém impressionou tanto a Jesus que, nas primeiras referências ao Reino do Pai, ele se lembrou delas ao dizer

Felizes os aflitos, os que choram, porque serão consolados... (v. 4).

Quem haveria de consolar os que choram? Os que choram serão consolados por aquele que tem o Reino dos céus. É ele que enxugará todas as lágrimas! A resposta está em Isaias:

O espírito do Senhor Deus está sobre mim; porque o Senhor me ungiu, para pregar boas novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos presos; A apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os tristes (Is 61, 1- 2).

Jesus, em toda a sua vida pública, se emocionou com a aflição e as lágrimas dos que sofrem. Em Betânia, diante do lamento das irmãs de Lázaro (Jo 11,32-35); em Naim, ao contemplar o choro da viúva cujo filho acabara de morrer (Lc 7,13ss). Em todos estas narrativas, ele transformou morte em vida; dor em júbilo.

Nosso mundo hoje tem muitas Raquel que choram perdas irreparáveis. Na América Latina há uma infinidade de mães que deploram a morte, o desaparecimento, a mutilação, a desonra de seus filhos que tombaram sob as garras da opressão e do radicalismo das ditaduras.

Temos mães que choram pelos filhos desempregados, bóias-frias, migrantes que perambulam por aí, sem-terra, presos, explorados nas grandes cidades, marginalizados, confinados às periferias, esmagados pelos sistemas sociais injustos e excludentes. A vida seria por demais cruel se esse choro, essa aflição não tivesse uma compensação, um consolo espiritual. Os aflitos, os mansos, os que choram e no Senhor colocam sua esperança e a busca de seu consolo. Esses bem-aventurados jamais serão confundidos!

O sofrimento não faz parte do ser cristão. Deus não nos quer infelizes nem sofredores. O grande sofrimento que há no mundo é fruto da ação do maligno, que gera o egoísmo, a maldade e a divisão. Apesar de algo aderente à vida humana, o sofrimento não é acessório do cristianismo. A ninguém que tenha entregado a Deus suas penas, será negado o consolo.

Javé disse: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel” (Ex 3,7s).

As antigas profecias dão conta que os sofridos têm no Senhor sua inesgotável fonte de consolação:

Procurem a Javé, como todos os pobres e sofridos da terra que obedecem aos seus mandamentos; procurem a justiça, procurem a pobreza (Sf 2,3).

Se Deus interveio de forma tão eficaz, salvando seu povo das garras do faraó, que personifica a maldade e a opressão de todos os tempos. Ele igualmente vai enxugar nossas lágrimas, libertando-nos para a salvação.

Bem-aventurados são os aflitos, falou Jesus. Mas, é bom a gente refletir se não serão bem-aventurados também os que enxugam lágrimas. Não serão igualmente bem-aventurados aqueles que têm a preocupação de não fazerem os outros chorar? Há muitas pistas para a bem-aventurança...

3. Terceira bem-aventurança

Felizes os sofridos

Felizes os mansos, porque possuirão a terra (v. 5).

Já escutei ateus e agnósticos dizendo que o cristianismo é uma religião de masoquistas, tamanho o valor que dão ao sofrimento. É pena que quem diz estas coisas não conhece Jesus Cristo, o evangelho e o projeto do Pai. Deus não quer o sofrimento nem a morte, tanto assim que nos deu seu Filho para que por ele cheguemos ao bem total (cf. Jo 3,16).

Como afirma Dom Pedro Casaldáliga “Deus chama, por seu Filho a viver em comunhão com Ele. Fez com os homens, com cada homem, com a humanidade inteira, uma Aliança de amor. Deu-nos sua palavra e sua vida. Quer dar-nos também e para sempre a sua graça, felicidade aqui na terra e, progressivamente, de forma plena no céu” (in: Com Deus no meio do povo. Ed. Paulinas, 1985).

Quem são os sofridos? Como Jesus se refere a eles? Quais as promessas para resgatá-los?

Felizes os mansos, porque possuirão a terra (v.5).

Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (v. 6).

Ora, tudo isto nos conduz à clara convicção de que Deus não quer o sofrimento do homem e que, se existem males e afetos que nos sufocam, estes ocorrem por causa da maldade do ser humano, que teima em conduzir (eu até diria, na contramão) sua liberdade. O fato inconteste, porém, é que o mal existe, está aí, retratado diariamente nas páginas dos jornais, nos noticiários da tevê e ao nosso lado, convivendo com o cotidiano de nossa vida.

Olhando os sofridos, os mansos, os que não reagem às injustiças, no meio do povo simples de uma grande cidade, dependurados nos ônibus e nos trens de metrô, pedalando suas bicicletas ou dirigindo-se a pé para o trabalho, cabisbaixos, como que esmagados pela humilhação dos baixos salários que mal dão para alimentar uma pessoa e tem que ser repartido com quatro ou cinco. A gente enxerga esse sentimento...

Ao sairmos de um restaurante, fartos e satisfeitos, contemplamos a desesperança e a tristeza daqueles garotos lá fora, invejando nossos filhos e pedindo apenas um “troquinho”, na contrapartida de haverem cuidado de nosso carro. Esses são os sofridos... Enquanto muitos vão de carro para o trabalho, uma multidão de pobres, mansos, amigos de Cristo, vai a pé ou apertando-se dentro de um coletivo lotado, marmita debaixo do braço, tristeza nos olhos e amargura no coração. Quantas jovens às vezes precisam ceder às investidas de um patrão imoral, simplesmente porque necessita daquele trabalho e não pode correr o risco de perdê-lo, pois em geral têm uma família a sustentar. As antigas profecias dão conta que os sofridos têm no Senhor sua inesgotável fonte de consolação:

Procurem a Javé, como todos os pobres e sofridos da terra que obedecem aos seus mandamentos; procurem a justiça, procurem a pobreza (Sf 2,3).

São felizes aqueles que sofrem e depositam em Deus sua esperança. Não basta sofrer, não adianta ir atrás do sofrimento como fonte de bem-aventurança. Felizes, basicamente, são os que sofrem por causa da opressão, do egoísmo e da injustiça. Quem sofre por culpa de seus próprios erros, apatia, preguiça ou outros problemas, embora tenha sobre si a misericórdia de Deus (afinal ele faz nascer o sol sobre justos e injustos), mas não é um bem-aventurado, evangelicamente falando.

Os sofridos, segundo a promessa de Jesus, ganharão a terra como herança. Eu às vezes paro e fico me perguntando quando será que essa infinidade de migrantes, sem-terra, marginalizados irá possuir, efetivamente a sua terra. Eu bem sei que não será uma terra de pastagens e lavouras, mas a terra toda como símbolo da grande lavoura do Reino. É claro que Deus quer o homem feliz aqui, agora, nesta vida.

A Igreja – embora hoje tenha atenuado seu discurso – foi por muito tempo mal interpretada, acusada de socialista, justamente por se preocupar com o bem-estar da pessoa, enquanto gente. Infelizmente, a Igreja hoje, em muitos lugares assumiu uma postura mais litúrgica que profética; mais sacramentalista e menos engajada na luta contra as injustiças. Os que criticam a posição solidária da Igreja gostariam de vê-la enfurnada nas sacristias, executando uma religiosidade, alienada e alienante, descompromissada com o social. Deus quer o homem feliz e realizado nesta vida.

O apóstolo Pedro ao referir-se aos mansos de coração, não fala do homem natural, mas daquele homem que não conseguimos visualizar, aquele encoberto no coração, da pessoa regenerada, que possui um incorruptível traje de um espírito manso e quieto.

Mas o homem encoberto no coração; no incorruptível traje de um espírito manso e quieto, este é precioso diante de Deus (1Pd 3, 4).

4. Quarta bem-aventurança

Os que têm fome de justiça

Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão

saciados (v. 6).

Há muito tempo, mais de trinta anos, diariamente, às refeições, adotei em minha casa, entre outras orações a jaculatória “Senhor, daí pão a quem tem fome, e fome de justiça a quem tem pão”.

Sintomaticamente, Jesus dedica dois tópicos de suas bem-aventuranças à justiça: “Felizes os que têm fome e sede de justiça...” (v. 6) e “Felizes os perseguidos por causa da justiça...” (v. 10). Esses bem-aventurados, segundo as infalíveis promessas de Jesus, além de serem saciados em suas carências, tornar-se-ão cidadãos do Reino. O ser humano nasce com uma propensão natural para o bem, para o encontro e para a justiça.

Os graves problemas do mundo, as questões sociais e conjunturais vão tornando-o arredio, descontente, individualista, e tudo vai desembocar num ambiente que privilegia o egoísmo, que tem inspiração na práxis do maligno, de onde decorrem, invariavelmente, a opressão, a injustiça, a prepotência e a ganância.

Muitas crises do cotidiano, sociais, econômicas, políticas, familiares e até religiosas são fruto da ausência de justiça e de comunhão fraterna. Essas práticas geram revolta, manifestações e greves, perturbando a paz, a ordem e o progresso.

Os que buscam ardentemente a justiça haverão de encontrá-la pela palavra de Cristo. Vão alcançá-la porque a justiça nasce do coração puro, da alma simples e do desapego das coisas materiais.

O nosso povo, hoje em dia, especialmente na América Latina, por conta de muitos sistemas injustos, passa fome, sofre constrangimentos e não tem seus direitos respeitados. Sua fome se caracteriza pela privação de diversas coisas. Primeiro é a crise dos bens. Os ricos buscam saciar-se, sem olhar para os lados, desprezando o sofrimento dos outros. Com isto sobra menos farinha na panela do carente.

Ele é assaltado por diversos sobressaltos, como o desemprego, pelos problemas de saúde pública, educação e segurança, sem falar nas questões da habitação e pela exploração dos bancos e dos grandes conglomerados mercantis. Isto é um processo endêmico de injustiça que fere e maltrata.

Além da fome de bens sociais e morais, o povo carece de uma ponderável fome de justiça, onde os sistemas privilegiam a riqueza, o poder e a cultura elitizada, ignorando os clamores do pobre, do oprimido, do sem-terra, do analfabeto e do banido. Sobre essa opressão o texto do Antigo Testamento deixa bem clara a atitude de Javé:

Não faça sofrer aquele que tem fome, e não piore a situação de quem está em dificuldade. Não perturbe mais ainda a quem já está desesperado, e não se negue a dar alguma coisa ao necessitado. Não rejeite a súplica de um pobre, e não desvie do indigente o seu olhar. Não desvie o olhar daquele que pede alguma coisa para você, e não dê ocasião para que alguém o amaldiçoe, porque se uma pessoa amaldiçoa você com amargura, o Criador atenderá ao pedido dela (Eclo 4,2-6).

Não é cristã aquela mentalidade que privilegia a apatia e a atitude negadora, de que não adianta lutar, que não se vai conseguir nada, que vamos ficar malvistos, e que nada será capaz de reverter o quadro de injustiça. Não resolve chorar sobre o leite derramado. É preciso agir, é necessário influenciar, denunciar, transformar...

O que Jesus oferece através das bem-aventuranças vai além das perspectivas formais deste mundo. A missão de Jesus é resgatar os que sofrem as injustiças Todos estes elementos sofrem transformações ao longo do tempo, e difere de sociedade para sociedade. Os valores de hoje são totalmente diferentes dos valores de cem anos atrás. O caráter e a moral sofreram transformações e se adequou a sociedade moderna. Se a salvação estivesse apoiada nestas questões circunstanciais, qual seria o padrão correto de conduta nestes séculos de história da igreja?

Além da fome de pão e de justiça, o homem de hoje também padece de uma ponderável fome da palavra de Deus. Negar-lhe esse ”alimento” é cometer uma falta grave e uma injustiça sem precedentes. O profeta alerta para esse problema: “Naquele tempo o povo também sentirá fome da palavra de Deus” (cf. Am 8,11). Entre outras, não é essa fome que se constata hoje?

É certo que Deus irá saciar os oprimidos que clamam por justiça. Ele dará, no tempo oportuno, e de acordo com a sua misericórdia, a plenitude a todos que padecem dessa fome. Sobre os que promovem a justiça, aqueles que devotam suas vidas a esta causa, ele derramará suas bênçãos, graças e glórias. Àqueles que sofrem, perseguidos, injuriados e feridos, o Pai dará o mesmo direito derramado sobre todos aqueles que crêem em seu Cristo o poder de se tornarem seus filhos (cf. Jo 12; Mt 5,10).

5. Quinta bem-aventurança

Os misericordiosos

Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão

misericórdia (v. 7).

Cristo limpou a iniquidade de todos nós. É o conhecimento de sua Palavra que nos justifica. Ou seja, quando Paulo diz que a fé vem pelo ouvir e o ouvir pela palavra de Deus, nada mais é do que aprendermos com aquele que é manso e humilde de coração. Através do conhecimento adquirido vem a fé, e por meio da fé podemos agradar a Deus. Após adquirir vida através de Jesus, adquirimos um espírito manso, e nos tornamos misericordiosos.

Quando alude à misericórdia, se percebe que Jesus não estava se referindo à justiça que é administrada nos tribunais dos homens. A autêntica misericórdia é, por assim dizer, a fonte mais profunda da justiça. Na oração do Pai-Nosso-Pão-Nosso, isto fica bem claro: ser perdoado assim como nós perdoamos... Fica claro que vamos de receber de Deus o mesmo perdão e a misericórdia que exercitamos no encontro diário com os nossos irmãos. Só usando a misericórdia é que obteremos a suprema misericórdia do Pai.

Deus age sempre com profunda misericórdia, perdoando nossos pecados, relevando nossas dívidas, acolhendo, esquecendo, passando um pano para apagar as nossas faltas. A misericórdia divina é uma dádiva gratuita, um dom de Deus, sem jogo de palavras, sem qualquer contrapartida, a não ser nosso dever de sermos misericordiosos com o nosso próximo. Atos de amor e misericórdia vão desaguar invariavelmente na justiça que, por sua vez vai produzir a paz (cf. Is 32,17).

Nossa misericórdia com os irmãos, representada por atos da mais pura justiça, nos eleva a Cristo e nos torna seus bem-aventurados. Enquanto tantos tribunais que existem por aí, despejam injustiças e sentenças viciadas, o cristão, discípulo de Jesus deve se comprometer com a justiça, como um consciente ato de misericórdia.

Assim como Deus nos ama, também nós devemos nos amar uns aos outros. Ser misericordioso não é ser paternalista nem muito menos “bonzinho”, doador de esmolas ou promotor de campanhas sazonais. Mais do isto,misericordioso é aquele que se compromete com a justiça inspirada no amor solidário que produz paz nos corações dos filhos de Deus.

6. Sexta bem-aventurança

Pureza: a verdadeira virtude

Felizes os puros de coração, porque verão a Deus (v.8).

Em um mundo que presta cultos exagerados ao prazer, muita gente se constrange até em se revelar pura. As palavras de Jesus, na colina de Cafarnaum, ainda ribombam em nossos ouvidos, e em nossas consciências: Felizes os puros de coração porque verão a Deus (v. 8). A pureza de coração não se verifica apenas pela exclusão de pecados contra a castidade. A pureza autêntica e profunda nasce de uma íntima atitude de fidelidade a todos os valores que norteiam a vida humana na relação com seus semelhantes.

Somos puros na medida em que não pensamos o mal, seja em que circunstância for, a despeito de quaisquer aparências. Jesus alerta para o perigo da boca que revela aquilo que abarrota os porões de nosso coração. A pureza nasce de uma ascese moral, de uma atitude de expurgo de pensamentos, recordações e palavras de valores inferiores. Assim, evoluímos até criar espaços interiores que passam a ser ocupados por Deus.

Se, no entanto, o nosso coração ficar pesado pela intemperança, pela rapina, pela iniquidade e pela concupiscência, isto irá se revelar pelas nossas atitudes e se refletir pelo conjunto de nossas ações: pelos frutos se conhece a árvore (cf. Mt 12,33). Formar corações puros é dever e missão de todos, teólogos, bispos, pastores, catequistas e educadores. É preciso ensinar a todos as mais elementares regras de ética cristã e convivência social. Como ensina J. Orlandis

A pureza de vida não é imposta ao cristão apenas por um imperativo de honestidade natural ou de retidão de caráter, embora essas motivações tenham por si mesmas um valor muito alto (in: Bienaventuranzas. Navarra, 1982).

A razão decisiva e eficiente da pureza cristã é aquela que serviu de mote a São Paulo, quando advertiu aos cristãos de Corinto:

Alguém pagou alto preço pelo resgate de vocês. Portanto, glorifiquem a Deus no corpo de vocês (1Cor 6,20).

Por esta razão, nós cristãos somos como que “portadores de Deus”. Seria possível desejarmos um fundamento mais genuíno e enaltecedor da pureza cristã? O salmista, com a propriedade habitual, nos diz que os que têm confiança em Deus jamais serão confundidos, mas o Senhor levará a confusão a todos que, vivem uma vida de impureza (cf. Sl 24, 3s).

A pureza se torna, assim, a exigência sobre a verdadeira virtude, na medida em que modela nossos corações, a exemplo do coração de Jesus, puro cordeiro do Pai, que viveu todas as experiências humanas. Exceto o pecado. Ao contrário, o coração impuro vive imerso nas trevas da morte e envolve a pessoa humana na mais triste névoa da frustração, pois o coração do ser humano só se alegra quando está em Deus, e só pela pureza se encontra nele.

Quando o impuro deixar a impureza e voltar à vida reta,

tornará a viver (Ez 33,19).

No coração dos impuros há engano, porém os puros viverão

sempre na alegria (Pv 12,20).

Somos semeadores da pureza quando renunciamos a posturas falsas, ao cinismo e à malícia, ao orgulho e à vaidade, ao luxo e ao esbanjamento, à fraude e ao engodo, à sensualidade e à pornografia. Tornamo-nos semeadores da pureza toda vez que nos tornamos multiplicadores do evangelho, que ensina que só os puros verão a Deus.

7. Sétima bem-aventurança

Os artífices da paz

Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados

filhos de Deus (v.9).

Em outra lição de Jesus vemos que serão felizes aqueles que promovem a paz, e que esses pacificadores serão chamados filhos de Deus (cf. v.9). É incrível como a história da humanidade privilegia os feitos bélicos, os heróis militares, generais e grandes truculentos de todos os tempos. Há muito mais livros sobre Átila, Julio Cesar, Alexandre, Napoleão, Patton, Aníbal, do que sobre São Paulo, Gandhi, Madre Tereza, Martim Luther King ou João XXIII. Infelizmente, nosso mundo não sabe o que é paz. Buscam-na como trégua, como armistício provisório, mas nunca como grandeza permanente.

A paz é uma conquista! É difícil encontrá-la porque nós,

geralmente a procuramos entre as coisas sofisticadas, e ela é

simples; é buscada entre os valores onerosos e ela é gratuita

(A. M. Galvão. A conquista da paz. Ed. Paulus, 1986).

No mundo atual, a corrida armamentista das nações retrata o espírito de temor e de vingança que perpassa muitos corações. Essa belicosidade das instituições e das pessoas nos faz concluir que, em muitos casos, a paz é uma aparência, e funciona como um intervalo entre guerra e outra.

É preciso parar de uma vez com essa maldita fabricação de

armas! O mundo precisa aprender a fabricar a paz! (Dom

Helder Câmara. Missa dos Quilombos).

Os que promovem a paz, os pacificadores, no verdadeiro sentido do evangelho, não são aqueles que se escondem atrás de desculpas para validar covardia, mas aqueles que assumem, que “pegam o leão a unha”, com a finalidade de trazerem a paz para seu convívio, tornando, assim, a vida de todos mais segura, mais produtiva e geradora de mais crescimento.

O artífice da paz não é um medroso nem um pacifista alienado, mas um valente que elegeu corajosamente a paz como grandeza de sua vida, inspirado pelas palavras de Jesus Cristo:

Ah, se pelo menos neste dia você pudesse conhecer aquele

que pode lhe trazer a paz... (Lc 19,42).

Fazer a paz nos torna felizes, na medida em que nossa paz é fruto da justiça e esta do amor e da pureza dos corações. Os filhos de Deus são amantes da paz, porque nosso Deus é o Senhor da paz e não da guerra, dos confrontos, da discórdia e das desavenças. É sempre atual buscarmos a renovação de nossa vida. De um coração novo nasce a paz.

Corações novos só batem no peito de homens novos, pessoas novas, ou seja, cristãos de fato que, pela conversão interior, progressiva e comunicante, são semeadores da justiça e da paz, fazendo por merecer aquele admirável prêmio de serem chamados “filhos de Deus” e, por conseguinte irmãos de nosso Senhor Jesus Cristo.

O homem pacífico nunca vai perder nada em sua vida. Ao contrário, torna-se um bem-aventurado de Deus. Para fazer jus a essa bem-aventurança é necessário um gesto de acolhida, abrir os braços, mostrar o coração, desarmar-se. O profeta ressalta essa maravilha dos tempos do Messias:

Então ele julgará as nações e será o árbitro de povos numerosos. De suas espadas eles fabricarão enxadas, e de suas lanças farão foices. Nenhuma nação pegará em armas contra outra, e ninguém mais vai se treinar para a guerra (Is 2,4).

A paz dos cristãos, entretanto, não é a paz dos cemitérios ou dos sítios distantes. Não! É a paz inquieta dos que lutam pela melhoria do padrão de vida dos seus irmãos, pela unidade das famílias, pela conversão e consagração do mundo a Cristo. A paz dos cristãos é um lutar sempre, com as armas do amor, da justiça e da reconciliação.

Os pacíficos, os pacificadores, enfim os que se comprometem com a instauração da paz no seio da sociedade humana, merecem o título concedido por Cristo: são chamados de bem-aventurados.

Tornar-se um artífice da paz é diferente de ser um expectador ou um usuário dela. É ir mais além... É devotar sua vida à implantação da paz e até sacrificá-la se esse sacrifício for exigido. A gente começa a ser um bem-aventurado filho de Deus, de fato, quando começa a dar espaços para a paz crescer.

8. Oitava bem-aventurança

Felizes os perseguidos por causa da justiça

Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu. Felizes vocês, se forem insultados e perseguidos, e se disserem todo tipo de calúnia contra vocês, por causa de mim. Fiquem alegres e contentes, porque será grande para vocês a recompensa no céu. Do mesmo modo perseguiram os profetas que vieram antes de vocês (vv. 10ss).

Jesus encerra de forma categórica e contundente seu discurso das bem-aventuranças. Aqui eu recordo um fato triste. Em uma cidade onde morei, no interior do Rio Grande do Sul, um bispo, hoje emérito (aposentado) teve a coragem de denunciar a opressão do latifúndio e a marginalização dos colonos pobres, sem terra para plantar.

As forças dos poderosos, apoiadas pela banda informal do Judiciário, pela mídia e outros segmentos da sociedade (inclusive alguns membros da Igreja) se organizaram para defender suas posições. O bispo, como um bem-aventurado, ficou sozinho, cercado por um pequeno número de amigos fiéis. O prelado foi ameaçado, abandonado por pessoas que antes frequentavam sua casa, e pouca gente, pouca gente mesmo, teve a coragem de estar ao seu lado naqueles momentos críticos. Ele foi perseguido, detratado e injuriado.

Seu crime? Queria justiça; defendia os humildes. Suas armas? Sua palavra e a força do evangelho de Jesus. Hoje, na aposentadoria, ele continua corajosamente residindo na cidade. Seus perseguidores, os que não morreram, saíram de lá, cada um seguindo um destino diverso e inglório.

No passado, no início do cristianismo, os cristãos eram perseguidos e mortos pelo crime de seguir a Jesus. Muita gente foi jogada às feras e sacrificada nas arenas de Roma.

Hoje, pela denúncia contra a opressão, somos perseguidos e marginalizados, muitos até assassinados, como Dom Oscar Romero (Arcebispo de El Salvador, morto em 1980), Camilo Torres (padre colombiano, morto em 1966), Luis Espinal (teólogo espanhol, morto na Bolívia em 1980); Margarida Alves (líder sindical na Paraíba, assassinada em 1983), Padre Josimo Tavares (no Maranhão, morto em 1986), Padre João Bosco Penido Burnier (assassinado em 1976, na cidade de Goiânia quando intercedia por duas mulheres camponesas, indevidamente presas pela PM). Todos tombaram sob o gume da intransigência e do radicalismo da repressão. Gestos assim, perfilados à dinâmica do evangelho de Jesus continuam acontecendo todos os dias em nosso país e continente.

Os perseguidos por causa do evangelho e sua justiça são os bem-aventurados que se encontram no coração do Pai e estão frente-a-frente com Jesus Cristo, nosso Salvador e Libertador.

Vocês que temem ao Senhor, confiem na misericórdia dele, e não se desviem, para não caírem. Vocês que temem ao Senhor, confiem nele, que não lhes negará a recompensa de vocês. Vocês que temem ao Senhor, esperem dele os benefícios, a felicidade eterna e a misericórdia (Eclo 2,7ss).

Toda a pregação no Novo Testamento dá conta de diversas passagens em que Jesus chama de felizes aqueles que ouvem sua palavra e a colocam em prática, fazendo a vontade do Pai que está nos céus. Os novos bem-aventurados de hoje são aqueles que se perfilam ao que é preconizado pelo projeto de Deus e se deixam iluminar pela luz do sermão de Cafarnaum, renunciando às fantasias do mundo para se entregar ao Cristo.

Nessa conformidade, felizes são os que crêem e transformam essa fé em obras ardentes de fraternidade, inspiradas pelo Espírito Santo. Jesus finaliza o discurso das bem-aventuranças afirmando que “...foi assim que perseguiram aos profetas que precederam a vocês... (v.12b).

Com isto o Mestre quer dizer que, aos que se atiram corajosamente à missão de serem seus novos profetas, estão reservadas muitas dores e muitas incompreensões,mas neles será devida, também, a recompensa reservada aos profetas do Senhor:

Antes de formar você no ventre de sua mãe, eu o conheci; antes que você fosse dado à luz, eu o consagrei, para fazer de você profeta das nações (Jr 1,5).

O ser profeta, missão essencial do cristão atrai uma série de incompreensões, mas traz como recompensa o cumprimento das promessas do Senhor. Feliz o cristão que se dispõe a seguir as bem-aventuranças de Cristo. Feliz antes aquele que conhece a vontade do Pai e a pratica (cf. Mt 12,50). Lutar contra a apatia, o egoísmo e a acomodação converte-se em um movimento de cura e libertação. Para que nos tornemos bem-aventurados é preciso que o Espírito Santo nos ilumine na direção dessa transformação.

Concluindo...

Depois de tudo que vimos e ouvimos, não se torna difícil concluir que as bem-aventuranças são um retrato de corpo inteiro da espiritualidade que Jesus propõe aos que se dispõem a segui-lo. As pessoas ao ouvirem a expressão: “Felizes...”, logo fizeram conexão com algumas das citações das antigas Escrituras: “Será que ele comentará um dos Provérbios? Será que ele vai citar os Salmos? A abordagem dele será extraída de qual passagem da lei?”

O contexto das bem-aventuranças é um tema recorrente que prendeu a atenção dos ouvintes de Jesus e em nossos dias ainda cria expectativa nos leitores. Afinal, quem não quer ser considerado um bem-aventurado? Quando Jesus fala que “felizes são os pobres...” a mensagem toca o coração dos ouvintes. Esta seria uma mensagem inesquecível, pois tocou a emoção do povo: “Será uma revolução social? É agora que alcançaremos a hegemonia política e a paz prometida?”.

É curioso como o homem, por séculos afora, tem agregado juízos, como riqueza e felicidade, prestígio e alegria, não admitindo outras combinações a não ser estas. Considerando, sob esta ótica, felizes aqueles que têm, que possuem riquezas, poder, posições sociais e outras posses.

Nas bem-aventuranças Jesus revela a si próprio, ao Deus uno e trino e – ao mesmo tempo – o mistério do Reino dos céus O homem é bem-aventurado quando alcança a filiação divina. As condições necessárias para que o homem seja verdadeiramente misericordioso só é possível àquele que Deus recebe por filho. Observem o que Jesus ensinou nas bem-aventuranças contidas em Lucas:

Levantando os olhos para os discípulos, Jesus disse: “Felizes de vocês, os pobres, porque o Reino de Deus lhes pertence. Felizes de vocês que agora têm fome, porque serão saciados. Felizes de vocês que agora choram, porque hão de rir. Felizes de vocês se os homens os odeiam, se os expulsam, os insultam e amaldiçoam o nome de vocês, por causa do Filho do Homem. Alegrem-se nesse dia, pulem de alegria, pois será grande a recompensa de vocês no céu, porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas (Lc 6,20-23).

Indo mais adiante, Jesus invectivou os injustos e os que não praticam a partilha e a misericórdia:

Mas, ai de vocês, os ricos, porque já têm a sua consolação! Ai de vocês, que agora têm fartura, porque vão passar fome! Ai de vocês, que agora riem, porque vão ficar aflitos e irão chorar! Ai de vocês, se todos os elogiam, porque era assim que os antepassados deles tratavam os falsos profetas (vv. 24-26).

Assim como é bem-aventurado o pobre, também a ele se assemelha quem se compadece do seu sofrimento, quem abre o coração aos explorados, que se solidariza com os oprimidos e injustiçados. Essa relação de finalidade da vida humana é a grande lição que Deus nos dá.

Se o pobre é bem-aventurado nós também podemos sê-lo: basta falar a língua dele, compreender seu drama de vida, sendo mais justo, sincero e amigo. Ninguém é alguma coisa sozinho. Só Deus basta a si mesmo; e mesmo assim, em muitas coisas ele prefere contar com nosso trabalho e recompensar a atenção que dispensamos aos nossos irmãos. Esta talvez seja a maior e mais contundente lição das bem-aventuranças...

No dia da tribulação o Senhor livrará aquele que cuidou do

necessitado (Sl 40,2).

Este texto faz parte de uma pregação realizada em um retiro de religiosos na cidade de Campo Grande, MS, no mês de março 2011. O autor é Doutor em Teologia Moral, Filósofo e Escritor. Publicou mais de cem livros, no Brasil e Exterior, entre eles “O sermão da montanha. Uma proposta de Vida Nova”. Ed. Santuário, 1992. Pregador de retiros de espiritualidade e assessor de workshops de teologia, liturgia e filosofia.