Em Espírito e Verdade [SERMO CXLV]

EM ESPÍRITO E VERDADE

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Porque são estes os adoradores que o Pai procura (Jo 4,24).

Ao falar na água viva, Jesus discorre, pela primeira vez, a respeito do dom de Deus. A água-viva, para a samaritana ainda significava a água pura que brota de uma fonte. O dom de Deus seria, para ela, apenas a natureza fazendo brotar aquela água tão boa. Para Jesus é a verdade e a graça, que ele dará aos que nele crerem (cf. Jo 7,37s; Ap 21, 6; 22, 17).

Ah, se conhecesses o dom de Deus... (v. 10).

Era certo que a mulher desconhecia o dom e a graça de Deus. Aqui Jesus escancara a revelação de sua missão messiânica. Até então ele não havia se reve-lado com tanta clareza, usando metáforas e falando por parábolas. A água viva oferecida à samaritana é a graça, o dom de Deus, é aquela amizade divina que su-planta todo o preconceito e toda a discriminação. O amor de Deus, gratuitamente oferecido, é uma fonte fresca, pura e inesgotável de uma água que lava e mata a sede para sempre. Essa água miraculosa que Jesus coloca à disposição da samari-tana é o dom que Deus oferece, em Cristo, à humanidade, pelo Espírito Santo.

Se alguém tiver sede venha a mim e beba. Quem crê em mim,

como diz a Escritura, do seu interior correrão rios de água

viva (Jo 7, 37s).

Jesus não desdenha da água do poço (bens materiais). No entanto, afirma ser capaz de oferecer uma água melhor (bens espirituais). A primeira água mata momentaneamente a sede. A “água viva” arranca a secura de nossa vida, de nossa alma, para sempre. Jesus oferece essa troca. A samaritana ainda não estava en-tendendo... Jesus fez-se humilde. Embora viesse trazer a salvação, dar-nos de be-ber a água da vida eterna, ele chega pedindo:

Dá-me de beber! (v. 7)

Ele pede como um pobre, um último. Pediu a Maria um sim de acolhimento; a João, o batismo; aos verdadeiros discípulos, o seguimento. Sobre a vitalidade perene desse manancial, anunciou o profeta:

O Senhor te guiará continuamente e nas regiões áridas te

saciará; renovará teu vigor, e serás como um jardim bem

regado, um manancial, cujas águas jamais se estancam (Is

58, 11).

Procurando uma utilidade prática, a mulher pede a água, desconhecendo ainda sua verdadeira essência. Da ironia e da reserva ela passa à intimidade. Ago-ra é ela que, passando por cima de sua animosidade contra os judeus, pede a á-gua, embora ainda não alcance todo o seu significado.

Se conhecesses o dom de Deus... (v. 10).

Nesse aspecto, conhecer o verdadeiro dom de Deus implica em reconhecer o enviado e recebê-lo condignamente:

Se conhecesses o dom de Deus... tu lhe pedirias e ele te

daria a água viva... (v. 10).

Jesus, através de palavras bem colocadas, começa a delinear o caminho da salvação:

quem beber a água... (a salvação)

que eu lhe der... (possibilidade imediata, o dom)

não terá sede... (ele mata nossa sede do

Absoluto, de justiça, verdade e amor)

fonte que jorra... (o termo da vida humana é

a eternidade)

vida eterna... (conhecer a Deus para viver na sua

verdade)

Para os judeus, a lei era um dom de Deus. Superior à Lei, Jesus Cristo reve-la-se o dom do Pai. Para o evangelista João, a revelação da Verdade assume de vez o lugar da lei (1,17). Conhecer o dom de Deus é conhecer a Jesus.

...tu lhe pedirias e ele te daria...

O Pai, em sua generosidade, sempre está disposto a dar aos seus filhos a-quilo que eles pedem:

Peçam e será dado a vocês; busquem e acharão; batam e

será aberto a vocês, pois quem pede, recebe; quem

procura, acha; e a quem bate, se abre (Mt 7, 7).

No Antigo Testamento, a água é símbolo de vida e salvação. Tanto no dilúvio como na passagem do Mar Vermelho, encontra-se a figura do resgate dos justos, através da água. No aspecto material é uma riqueza, comparável à salvação.

Senhor, dá-me dessa água... (v. 15).

A mulher elabora uma inversão no diálogo. Antes Jesus pediu água a ela. Agora é a samaritana que lhe pede a água viva. Antes ela era arrogante, agora humilde. Mesmo que ainda sob o enfoque material, ela agora pede a água

para que eu não sinta mais sede nem precise vir buscar

água (v. 15b).

Começa a acontecer agora como que uma troca. Instauram-se os tempos do Messias. É a troca da água de Jacó, insuficiente (o Antigo Testamento) pela água de Jesus, abundante, (o Novo Testamento). O Reino dos céus, que Jesus veio i-naugurar, começava a se revelar. Ele começa aqui e se completa na eternidade. É o Reino de Deus, que se instaura para a salvação dos homens. A água que brotou miraculosamente da rocha em Massa e Meriba (cf. Ex 17, 3-7) é sinal do dom de Deus, da água viva que Jesus agora oferece, gratuitamente, a todos.

O diálogo de Jesus com a samaritana revela, de forma implícita, a destina-ção universal da salvação que ele veio trazer aos homens. Embora estivesse esta-belecendo um aprendizado progressivo, a mulher ainda não intuíra totalmente o sentido da água viva. Jesus precisava lhe dar um sinal. É bom dizer que Jesus sempre teve sede. Na cruz, algumas de suas últimas palavras, antes de morrer, foram

Tenho sede! (Jo 19, 28).

Sim, ele tinha muita sede. Sede de amar e ser amado, de nos salvar, cada vez mais. Nesse diálogo com a mulher ele se revela sabedor de detalhes que ela julgava guardados. Atordoada pela descoberta de seus segredos mais íntimos, a mulher samaritana tenta desconversar, buscando uma escapatória para fugir do conhecer-se. Como tantos de nós, hoje em dia, ela procura usar o recurso intelec-tual para não render-se a Deus. Ela tem medo de se entregar... Por incrível que pareça, as tentações de Deus, às vezes, são mais assustadoras que as do diabo, pois tornam descoberto todo o nosso íntimo. Ela busca escapar pela tangente:

Nossos pais adoraram a Deus neste monte e vocês dizem

que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar (v. 20).

Era o que Jesus queria! A samaritana foi direto ao assunto. Agora ela começava a discutir teologia com ele. Ao dizer que “nossos pais adoraram...” ela reflete sobre a polêmica entre judeus e samaritanos, onde o verdadeiro culto a Deus só podia ser feito no templo, em Jerusalém, conforme a reforma deuteronomista de Esdras, no século VII a.C. Nessa diferença existente entre judeus e samaritanos quanto ao local de culto, começava a grande revelação de Jesus:

Mulher, acredite em mim. Está chegando a hora, em que

não adora-rão o Pai, nem sobre esta montanha nem em

Jerusalém. Vocês adoram o que não conhecem, nós

adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos

judeus. Mas está chegando a hora, e é agora, em que os

verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e

verdade. Porque são estes os adoradores que o Pai

procura. Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem

adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4,21-24).

Trata-se de grande lição do cristianismo universal, que não mais ficará res-trito a lugares de culto, mas a todo o universo, templo onde Deus reina. A expres-são “vem a hora...” coloca toda a situação na iminência de um fato novo (morte e ressurreição de Jesus), real e escatológico, quando serão abolidos os locais fixos de culto, e o Filho de Deus será glorificado a partir do coração das pessoas. Esta reflexão encaminha aos versículos 23 e 24.

Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros

adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade...

Os verdadeiros adoradores são os fiéis de todos os tempos, conscientes, que amam a Deus e seguem o seu Cordeiro. São aqueles que crêem e são batizados (cf. Mc 16, 16), e por essas duas atitudes obtêm a salvação. Aqui desponta a dicoto-mia entre religião e espiritualidade. A religião é formal, presa a ritos e dogmas, e-xercidos por uma hierarquia dominadora. A espiritualidade, pelo contrário, aponta para o mistério da relação amorosa que existe entre Deus e o ser humano.

Adorar em espírito e verdade é ir além daquelas práticas dos antigos judeus, que professavam uma fé superficial, dentro de uma religião alegórica, tradicional. Adorar em espírito é relacionar-se com Deus sob o eficaz influxo do Espírito Santo. Só o Espírito possibilita essa adoração. No ato de adorar o crente reconhece a ma-jestade e o senhorio de Deus. Nas Escrituras, vemos que o Espírito de Deus move as pessoas. Assim, ele igualmente move os crentes, no sentido de adorar filialmen-te ao Pai. Os verdadeiros adoradores, aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito Santo, são os renascidos da água e do espírito (cf. Jo 3, 5). A verdade aparece sempre associada à atividade do Espírito:

Eu pedirei ao Pai, e ele dará a vocês outro Paráclito, que

estará com vocês para sem-pre. Ele é o Espírito da

verdade, que o mundo não pode receber porque não o vê

nem o conhece. Vocês o conhecem porque ele permanece

com vocês e está em vocês (Jo 14, 16s).

Adorar em verdade é amar a Deus com pureza de espírito, atitude de busca filial e coerência de vida. Adoramos a Deus com o íntimo de nosso espírito, porque ele é espírito. Amando assim, aproximamos nosso espírito do dele. Igualmente amamos em verdade porque Deus é verdade. A adoração brota de um coração ple-no de fé e de amor. Quem tenta adorar preso à racionalidade da matéria ou do in-telecto, pratica um arremedo de atitude filial. Quem ama e tem fé adora. É a ado-ração sem fingimento, máscara nem interesse. A presença de Deus a partir de ago-ra alarga os limites dos templos e dos altos montes. O templo agora é o coração (cf. 1Cor 3,17). Ao escutar as palavras de Jesus, a mulher brada:

Agora vejo que és um profeta! (v. 19).

A partir desse agora, quando Jesus desnuda sua vida e mostra-lhe o verda-deiro caminho, ela passa a enxergar a verdade. Abrem-se aos poucos os seus o-lhos.

A mulher disse a Jesus: “Eu sei que o Messias, que se

chama Cristo, está para vir. Quando vier, ele nos fará

saber todas as coisas” (v. 25).

Os olhos abertos da mulher levam-na a concluir, sem dúvidas, que o Messi-as esperado está ali, na frente dela. Ela tem medo de perguntar diretamente. Je-sus sente a ansiedade de seu coração e lhe diz:

Sou eu, que falo contigo! (v. 26).

Trata-se da primeira revelação direta de Jesus. É uma informação perfeita, sem metáforas. Ele permitiu que a mulher lhe arrancasse o segredo. Ela permite que ele transforme em graça sua vida miserável. Nisso ela vai à cidade. Deixa o cântaro no chão, por certo derramando a água da fonte. A água viva agora é mais importante...

Venham ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não

será ele o Cristo? Eles saíram da cidade e foram até onde

estava Jesus (vv. 29-30).

Vejam como a metodologia de Jesus é desconcertante: a boa notícia é a-nunciada pelos lábios de uma mulher, quem sabe considerada pouco virtuosa, filha de um povo discriminado. Ela conduz seus conterrâneos a Jesus, para um encontro pessoal. Retorna à fonte, trazendo consigo uma legião de sedentos... Dizem que os antigos rabinos eram contra o ensino da religião às mulheres. A-inda bem que Jesus não estudou na escola deles... Ali o Mestre demonstra o perfil dos novos adoradores.

O que é adoração? Poderíamos dizer que é uma honra que se presta a Deus, em virtude do que Deus é e do que significa para aqueles que o adoram. É salutar enfatizar que só se deve adorar a Deus. A palavra hebraica que mais se usa para “adoração” no Antigo Testamento significa “inclinar-se” (cf. Gn 18,2). O verbete grego que geralmente se utiliza no Novo Testamento é proskyneo, e sig-nifica “prestar honra”, normalmente aplicado a Deus. Está claro que é dever de cada criatura inteligente adorar a Deus. Os anjos o adoram (Ne 9,6), assim co-mo os seus santos. Nos evangelhos os homens são chamados a dar glória a Deus e a adorá-lo (cf. Ap 14,7). A partir daí, tudo que há sobre a terra é chama-do a essa adoração (cf. Sf 2,11; Zc 14,16; Sl 86,9);

Porém, enquanto os anjos honram a Deus segundo a verdade, porque sa-bem quem ele é, os homens também devem procurar conhecê-lo e adorá-lo, não apenas exteriormente, através de alguma religião, mas com aquela espirituali-dade que enche o coração, uma honra que procede dos sentimentos de amor e da fé. Esta revelação é um assunto pessoal - “A quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27b).

Portanto, todo aquele que tem este conhecimento, o tem recebido do Filho. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse nos fez conhecer o Pai. E, depois de ter cumprido a sua obra, introduziu os que são seus na mesma relação que ele próprio goza com o Pai:

Subo para meu Pai e Pai de vocês (Jo 20,17).

O culto de Israel era terreno, natural, desempenhado em um lugar defini-do geograficamente: um magnífico templo em Jerusalém e um alto monte (Gari-zin) na Samaria. Era um culto regulamentado até aos mínimos detalhes e no qual um homem, vestido com trajes luxuosos e acompanhado de música mara-vilhosa, podia trazer o mais elevado e o melhor que a terra tinha para dar. Mas nada nisso era espiritual. Não havia a menor obrigação de um sacerdote, cantor ou ofertante, ter de nascer de novo. E isso fora assim instituído pelo próprio Deus, pois se tratava do culto prestado por um povo terrestre a um Deus que ainda não se havia revelado a eles.

Todavia, na cruz, Deus acabou com o homem natural. Nós, os servos, que cremos no Senhor Jesus, já morremos com Cristo (cf. Rm 6,8). Espera-se que andemos segundo a nova vida que o Espírito Santo operou em nós por meio do novo nascimento no batismo. O Espírito Santo que habita em nós é a força divi-na que nos habilita para o seu cumprimento. Desta forma, a nossa adoração deve ser espiritual, acompanhada de uma vida reta capaz de produzir os frutos do Espírito.

Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros

adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade;

porque o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é Es-

pírito, e importa que os que o adoram, o adorem em

espírito e verdade (Jo 4.23s).

Aqui encontramos o verdadeiro caráter da adoração cristã. Não é um ritu-al, a formalidade de uma cerimônia religiosa. Esta harmonia com o que Deus é pressupõe que Deus foi completamente revelado. Nenhum incrédulo pode ado-rar desta maneira! Pois é somente por meio do novo nascimento que temos re-cebido a nova vida, que a Bíblia chama “espírito”.

O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do

Espírito é espírito (Jo 3,6; cf. Rm 8,16).

A adoração é espiritual. É a típica atitude que subjaz da espiritualidade do novo homem, e está em harmonia com o que Deus é. Em perfeita harmonia com o que já foi mencionado, não nos é fornecida nenhuma forma ou cerimônia para a nossa adoração.

Isso é tanto mais notável se lembramos que entre os israelitas tudo estava regulado até nos mínimos pormenores. Nem sequer conhecemos as palavras com as quais o Senhor deu graças na instituição da Ceia. Não temos descrição de um apóstolo partindo o pão. Não conhecemos um hino sequer que a Igreja cantava nos dias dos apóstolos. Não temos nenhum livro com salmos cristãos. Temos e devemos adorar a Deus pura e simplesmente pelo Espírito (Fl 3.3). Mas a adoração não deve ser somente em espírito, mas também em verdade.

O que é a verdade?, perguntou Pilatos. Ele não sabia que aquele que tinha diante de si e que levava uma coroa de espinhos era a mais pura expressão da verdade. A verdade é o que Deus tem revelado de Si mesmo. E foi o Filho quem O revelou.

Em certo sentido Israel também havia adorado em verdade, visto que o seu culto concordava com o que, naquele tempo, já tinha sido revelado acerca de Deus. Mas agora Deus foi perfeitamente revelado, pois foi manifestado na carne, esteve na terra e por graça infinita podemos conhecê-Lo .

E sabemos que já o Filho de Deus é vindo, e nos deu

entendimento para conhe-cermos o que é verdadeiro

(1Jo 5,20).

Decerto há um crescimento no conhecimento da verdade. E o Espírito de Deus atua em nós para nos conduzir a essa verdade. É óbvio que o desenvolvi-mento será diferente de uma pessoa pára outra, porém a diferença será infini-tamente pequena em comparação com a medida entre um homem natural (que não nasceu de novo) e o mais jovem dos servos.

Por meio do novo nascimento recebemos uma vida que é espírito, e pela qual nos tornamos competentes para conhecer a Deus. Trata-se da irrupção da espiritualidade em nós. É a natureza divina (2Pd 1,4). Nesta nova vida opera o Espírito Santo que habita em nós e nos capacita, o qual também é a força divina que põe esta nova vida em contato com o próprio Deus (Jo 4.14).

Vocês tem a unção do Espírito Santo, e sabem tudo. Não

escrevi porque não soubessem a verdade, mas porque vocês

sabem, e porque nenhuma mentira vem da verdade (1Jo 2,20s).

Portanto, podemos nos aproximar de Deus nosso Pai, pelo poder do Espí-rito Santo, que põe nossa vida em contato com a dele. Nós o vemos e desfruta-mos dele. Este é o cerne da verdadeira espiritualidade.

Seria possível contemplar a Deus tal como Ele é, sem ficar maravilhados e sem ficar desejosos de lhe dizer isto? Todo o filho de Deus que não ficou passivo ante as bênçãos recebidas, mas que elevou os seus olhos ao próprio Doador, sabe, por experiência, que isso é impossível. A glória do Pai, do Filho e do Espí-rito Santo é tão grande que os nossos corações são demasiado pequenos para dar perfeita conta do que dela vemos.

Somos ainda menos capazes de expressar essa glória apenas em palavras. Mas adoramos em espírito e, portanto a nossa adoração consiste nos sentimentos espirituais que sobem de nossos corações em conjunto com palavras e atos voluntários diante de Deus.

Não há dúvidas de que cada servo deve adorar pessoalmente. Como é pos-sível contemplar a obra do Senhor Jesus, o amor e a graça do Pai e o poder do Espírito Santo sem dar-lhes graças e louvores? Isto é algo que todos nós, os fi-lhos de Deus, temos em comum.

A adoração é o primeiro ato de espiritualidade cristã. Adorar ao Senhor é ser capaz de reconhecê-lo como Deus, como o Criador e o Salvador, o Senhor e o Mes-tre de tudo o que existe, o Amor infinito e misericordioso. "Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele prestarás culto" (Lc 4,8), diz Jesus, citando o livro do Deuteronô-mio (6,13). Adoramos a Deus reconhecendo seu senhorio sobre as nossas vidas, louvando-o e exaltando-o para sempre, confessando com gratidão que ele fez gran-des coisas e santo é o seu nome.

Aqui encontramos o caráter da adoração cristã. Não é um ritual, ou formali-dade de uma cerimônia religiosa. Está em harmonia com o que Deus é, com todos os seus atributos. Há em Deus vários atributos morais que são:

Ele é onipresente. Ele está presente em todos os lugares a um só tempo. O salmista afirma que, não importa para onde formos, Deus está ali (cf. Sl 139). Ele é onisciente, e sabe todas as coisas. É onipotente, é o Todo-poderoso e detém a au-toridade total sobre todas as coisas e sobre todas as criaturas. Ele é eterno.

Nunca houve nem haverá um tempo, nem no passado nem no futuro, em que Deus não existisse ou que não existirá. Ele é imutável, Ele é inalterável nos seus atributos, nas suas perfeições e nos seus propósitos para os seres humanos. Ele é perfeito e santo; é absolutamente isento de pecados e perfeitamente justo. Ele é trino e uno: é um só Deus, manifesto em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo.

Cada Pessoa é plenamente divina, igual às duas outras; mas não são três deuses, e sim um só Deus. Os atributos morais são: Ele é bom, é amor, é miseri-cordioso, é compassivo, é paciente, é verdade, é fiel, é justo. Nenhum incrédulo, quem não tiver fé não pode adorá-lo. Pois é somente por meio do novo nascimento que temos recebido a nova vida. A adoração é espiritual, é segundo o novo homem, e está em harmonia com o que Deus é. Antes de subir ao céu, Jesus havia dito:

Quando vier o Espírito da Verdade, ele conduzirá vocês à

verdade plena, pois não fa-lará de si mesmo. Ele me glorificará

porque receberá do que é meu e lhes anunciará. Tudo que o

Pai tem é meu (Jo 16,13s).

Ora, adorar a Deus em Espírito é descobrir o rosto e o coração do Pai em Je-sus, é glorificar Jesus, é adorar Jesus! O Espírito nos dá testemunho de Jesus e a ele nos atrai para, finalmente, através dele, conduzir-nos ao Pai. É o Espírito quem nos convence de que Jesus está vivo e nos faz entrar em contato com ele com um coração cheio de unção amorosa:

Então, eu pedirei ao Pai, e ele dará a vocês outro Advogado,

para que permaneça com vocês para sempre. Ele é o Espírito

da Verdade, que o mundo não pode aco-lher, porque não o

vê, nem o conhece. Vocês o conhecem, porque ele mora

com vo-cês, e estará com vocês. Eu não deixarei vocês

órfãos, mas voltarei para vocês. Mais um pouco, e o mundo

não me verá, mas vocês me verão, porque eu vivo, e

também vocês viverão. Nesse dia, vocês conhecerão que eu

estou em meu Pai, vocês em mim, e eu em vocês (Jo 14,16-

20).

Eis aqui uma experiência impressionante. Enquanto o mundo não conhece Jesus, não o reconhece como o vivente, nós podemos realmente experimentá-lo vivo, atuante, íntimo nosso! Basta pensar na experiência palpitante da oração: ninguém de nós pensa que entra em contato com um personagem do passado, um morto, presente somente na nossa memória e no nosso sentimento. Não é essa a nossa experiência com Cristo! Experimentamo-lo vivo e adorável; por isso o ama-mos e o adoramos!

Somente no Espírito Santo tal experiência é possível. O que Jesus nos pro-meteu, ao nos dar o Espírito, é algo maravilhoso: nós experimentamos realmente que nosso Salvador está vivo, e não só: o próprio Espírito que ele nos dá faz-nos viver a vida de Jesus: “Eu vivo e vocês viverão!” Não somos nós que “vivificamos” Jesus no nosso coração e na nossa memória, mas é Jesus vivo quem, no Espírito, nos vivifica e nos une a ele, fazendo-nos amá-lo e adorá-lo em Espírito e Verdade!

E nesse ninho de adoração, nesse gostoso e inenarrável aconchego de amor, sen-timos, no Espírito, que Jesus está no Pai e nós em Jesus e Jesus em nós. A adora-ção se torna comunhão, torna-se bendita fusão de amor, antecipação da doçura do céu!

Onde fazer tal experiência do Espírito que nos joga no Coração de Jesus? Qual é esse espaço bendito, esse ninho de adoração criado e aquecido pelo Espíri-to? É a Igreja-comunidade, Corpo de Cristo; é ela o ambiente por excelência do Espírito, o Templo vivificado e sustentado pelo Espírito do Ressuscitado. É na Igre-ja que o Espírito nos faz realmente experimentar Jesus vivo, Jesus inteiro, Jesus real. O Espírito nos faz provar um Jesus vivo e atuante em todos os âmbitos da vida da Igreja, mas principalmente em três realidades:

(1) na Palavra proclamada. É pela unção do Santo Espírito que a inspira, que a Palavra de Deus, que dá sempre testemunho do Senhor Jesus, é uma Pala-vra viva e eficaz, que nos questiona, nos coloca em crise, nos consola, nos alegra, nos ilumina e nos cura. Essa Palavra denuncia o nosso pecado e nos anuncia a salvação. Quando a ouvimos, não pensamos que estamos escutando um velho tex-to, vindo da poeira do passado, mas uma Palavra viva e atual que é dirigida a cada um de nós com força e suavidade. Ora, esta experiência somente pode acontecer no Espírito Santo. Ele inspirou a Escritura, inspira e unge quem a proclama e ins-pira e unge o coração de quem a escuta.

(2) nos Sacramentos celebrados. O que a Palavra proclama eficazmente na força do Espírito, os Sacramentos realizam, pois a Palavra de Deus, ungida pelo Espírito Criador, faz acontecer concretamente o que ela anuncia. Um cristianismo somente de proclamação da Palavra, sem a celebração dos Sacramentos, é um cristianismo capenga, mutilado. Pois bem, é nos sacramentos que o Pai nos dá a vida do seu Filho morto e ressuscitado, tornando-o presente na nossa vida. Ora, isso acontece pela ação do Espírito: ele é a própria vida de Jesus, o Ressuscitado no Espírito (cf. At 2,32; 1Pd 3,18s). Assim, em cada sacramento, recebemos o Es-pírito do Ressuscitado que nos vai transfigurando em Cristo Jesus, vai nos unindo ao Senhor! Em cada sacramento o Espírito é dado com um efeito diferente na nos-sa vida, mas sempre para nos unir a Jesus, fazendo dele nosso Senhor e Deus, amável e adorável. Os sacramentos são o alimento da nossa espiritualidade.

(3) na Comunidade que escuta e celebra. Finalmente, o Espírito está presente na comunidade, que é a Igreja: o Espírito nos une num só Corpo, o Corpo de Cris-to! É no Espírito de Cristo que, mesmo na diversidade de dons, carismas, ministé-rios, opiniões e mentalidades, a Igreja permanece unida na escuta da Palavra, na celebração dos Sacramentos e na proclamação da mesma fé em torno dos mesmos pastores. O Espírito gera unidade e diversidade, unidade do Corpo de Cristo na diversidade dos membros. Ungindo a Comunidade dos discípulos, o Espírito faz dela lugar de paz e reconciliação, de caridade e acolhimento, sinal e antecipação do Reino de Deus.

Nesses três âmbitos – Palavra, Sacramentos e Comunidade – o Espírito nos inunda da doçura de Jesus, de modo que tudo se torna admiração, gratidão, obe-diência, abandono em Deus, confiança no Senhor, entrega, esperança... Tudo se torna Vida eterna, que faz os cristãos, pessoalmente e como Comunidade, celebra-rem um verdadeiro culto espiritual, isto é, um culto no Espírito, na adoração ao Senhor Jesus, reconhecido no mais profundo de nós como Deus.

Então, experimentamos que “o Espírito socorre a nossa

fraqueza... e o próprio Espírito intercede por nós com

gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe

qual o desejo do Espírito” (Rm 8,26s).

Em outras palavras: experimentando Jesus vivo e soberano na Palavra, nos Sacramentos e na doçura da convivência fraterna, somos tomados de doce admi-ração e ação de graças, que levam a uma atitude espiritual de profundo reconhe-cimento e adoração ao Senhor, o Espírito nos faz adoradores de Jesus! Uma ado-ração que brota do interior, das fontes mais profundas do nosso coração.

Resumo de um retiro espiritual ministrado pelo autor a um grupo de religiosos em São Paulo, em março de 2008.