O Profeta Amós

O PROFETA AMÓS

Antônio Mesquita Galvão

O Senhor jurou pelo orgulho de Jacó:

Não esquecerei jamais nenhuma de suas ações! (8,7)

Amós nasceu em Técua, perto do Mar Morto, no século VIII a.C. Antes de ser chamado a profetizar, Amós criava gado e plantava sicômoros (figos selvagens) nos arredores de Jerusalém. Por causa do mau testemunho de alguns profetas, em especial os nebiim (falsos profetas) e os kohēn (sacerdotes) das cortes, a maioria deles venais. Ele não se intitula profeta, mas um homem da roça que faz profecias. A crítica a sacerdotes e falsos profetas é contundente e atual:

Eu subverti a alguns dentre vós, como subverti Sodoma e

Gomorra, e vós fostes como um tição arrebatado do incêndio,

contudo não vos convertestes a mim, diz o Senhor (4, 11).

Seu trabalho ocorreu entre os anos 760 e 750 a.C. no Reino do Norte, pró-ximo a Betel, durante o reinado de Jeroboão II (785-746/5 a.C.). Nesse tempo, de tribulações e idolatrias, em Judá reinou Ozias (780-740 a.C.). Trata-se de um nítido período de pré-exilio, tanto para Israel como para Judá.

Havia ali um sincretismo religioso e cultos a outros deuses que

manifestavam o descrédito e as infidelidades do povo a Javé. (cf.

Isidoro Mazzarolo, A Bíblia em suas mãos, EST, Porto Alegre,

1996).

Amós (âmayãh) é uma abreviatura de Amasá ou Amasias, “Javé ergue”. Pela qualidade de seu trabalho, há biblistas que chamam Amós de “o príncipe dos profetas”, enquanto outros dizem que sua produção literária sintetiza toda a profecia de Israel. As escolas bíblicas modernas recomendam, por ser Amós talvez o mais importante, que se comece a estudar os profetas a partir de seus textos . Ele foi o primeiro dos “profetas escritores”.

Os profetas – e essa práxis se estabelece a partir de Amós – se insurgiram contra as desigualdades gritantes que havia nas sociedades palestinas, tanto no sul como no norte. Diferentes dos antepassados, que dormiam em tendas no deserto, a sociedade atual era aburguesada, gostava de luxo, pouco se importando com a fraternidade, a ética e a moral da sociedade tribal. Ao invés da “autêntica procura de Deus”(cf. Am 5,4ss) eles só pensavam em conforto. Conforme ensina R. de Vaux,

Toda a crise, denunciada por Amós e seus contemporâneos, teve

início no tempo de Salomão, no qual foi organizado um poder

central, autoritário, assessorado por uma administração que

cobria o país inteiro (cf. 1Rs 4, 1-5; 9, 10-28). Poder-se-ia

retroceder até o tempo de Davi, que reuniu sob sua coroa não

só Israel e Judá, mas também todas as tribos israelitas, a

população cananéia e muitos estrangeiros que migraram para

Israel (in: Histoire ancienne d’Israel, EB, Paris, 1971).

Amós é considerado o instigador de uma nova forma de religião israelita, fundada mais na ética do que na nacionalidade, mais na fraternidade que no culto. O profeta de Técua seria, desta forma, o pai de monoteísmo moral, do qual o “sermão da montanha”, de Jesus Cristo, é o ápice. Para ele, o espiritual deve se traduzir em gestos concretos no social. Contra a ganância dos comerciantes, le-vanta-se Amós, naquela que é, quem sabe, a mais vigorosa denúncia do Antigo Testamento:

Ouvi, vós que esmagais o pobre e quereis eliminar os humildes

do país. Vós que di-zeis: “Quando passará a lua nova, para que

possamos vender o grão, e o sábado, para que possamos

oferecer o trigo, para diminuir a medida, aumentar o peso e fal-

sificar as balanças enganadoras, para comprar o indigente com

prata e o pobre por um par de sandálias, para vender até os

refugos do trigo?” O Senhor jurou pelo or-gulho de Jacó: Não

esquecerei jamais nenhuma de suas ações! (8, 4-7)

As interpelações de Javé, feitas pelos profetas, primeiro aos governantes e depois ao povo, baseadas nos códigos da Torá, demonstram que toda a sociedade é depositária da lei e responsável por sua aplicação. Todo indivíduo que faz parte da comunidade, primeiro tribal depois estatal, está implicado nessas obrigações. Pre-vendo a ruína da Samaria, capital de Israel, que iria ocorrer em 721 a.C. por obra dos Assírios (a de Judá viria em 597 a.C.), o profeta pergunta e, conhecendo a resposta, profetiza:

Quantos oprimidos há em seu meio? Não sabem agir com

retidão – oráculo do Se-nhor – os que amontoam opressão e

rapina nos palácios. Por isso assim diz o Se-nhor Deus: Um

inimigo cercará o país, arrancará de ti o poder e os teus

palácios serão saqueados (3, 9ss).

As referências à violência e à opressão contra os mais fracos, denotam que há uma gritante contradição entre a prática daquele povo e os mandamentos de Deus. Ele denuncia (3, 2; 9, 7) a interpretação equivocada que as pessoas dão à condição de “povo eleito”. Eleita é aquela, nação ou pessoa, que vive conforme a instrução de Deus. A violação do direito do ser humano, do fraco e do oprimido, provocará castigos (5, 2s) e banimentos:

Numa de suas fortes críticas contra as damas da corte, comparando-as às hierodulas, Amós chama-as de “vacas de Basã”. As vacas de Basã são sinal da a-ristocracia israelita, que lucra com a opressão, sente-se segura em sua própria montanha de prazer, bebe à vontade, a custa do prejuízo dos outros.

Ouvi esta palavra, vacas de Basã, que estais sobre o monte

da Samaria, opri-mindo os fracos, esmagando os pobres e

dizendo aos vossos maridos: “Trazei-nos o que beber!” O

Senhor Deus jurou por sua santidade: Sim, eis que virão dias

sobre vós, em que vos carregarão com ganchos e o que

sobrar de vós, com ar-pões. E saireis pelas brechas, uma

após a outra, e sereis tocadas em direção do Hermon –

oráculo do Senhor (4, 1ss).

Por hierodulas (hierós = sagrado + doulé = escravas) eram conhecidas as chamadas “prostitutas sagradas”, mulheres da sociedade que se prostituíam nos templos, de Canaã à Caldéia. Os autores ficam divididos ao afirmar, se a renda da prostituição era para elas, para o templo, dividida, ou se a prática era devida a alguma forma de crença, ou mera licenciosidade. A Bíblia combate a hierodulia, por sua feição de imoralidade (prostituição) e de idolatria (realizada nos templos pa-gãos). A mulher palestina, por sua característica tribal, era reservada e humilde, sempre submissa à autoridade do pai, do marido e, na viuvez, do filho mais velho ou do sogro.

Quando Davi e Salomão transformaram as cidades de Israel em regiões cosmopolitas, as mulheres foram as primeiras a “importar” costumes dos países vizinhos ou distantes. Foram abandonados os véus e as roupas escuras, dando lugar a jóias, roupas de seda, trajes provocantes, cosméticos e pinturas. Com isso também os costumes, principalmente nos palácios, se tornaram liberais, no tocante à moral (aventuras extraconjugais), à religião (adoção de outros deuses) e aos costumes (muitas mulheres da corte eram dadas à embriaguez). A elas, Amós compara às vacas de Basã, símbolo da superficialidade e do imperialismo estatal. Amós desempenhou importante função litúrgica. Seus oráculos de felicidade e de desgraça, faziam parte da celebração do Deus da Aliança, proclamando sucessi-vamente sua graça e seu julgamento.

No Antigo Testamento, a sedentarização estabeleceu um perverso divisor de águas. Uns enriquecem (os latifundiários, que exploravam grandes áreas) e outros permaneceram pobres (os pequenos criadores de gado miúdo). Os ricos proprietários cananeus que viviam na Palestina, através do poder econômico, tentaram (e conseguiram) subjugar e dominar muitos segmentos de empobrecidos que, endividados, foram obrigados a vender ou hipotecar tudo o que possuíam. Este é o tempo de desgraça anunciado:

Eles odeiam quem repreende à porta e detestam quem lhes

fala com sinceridade. Por isso: porque oprimem o indigente e

lhe cobram um imposto de trigo, construíram casas de pedra,

mas não habitarão nelas; plantarão esplêndidas vinhas, mas

não beberão o seu vinho. Pois conheço seus inúmeros delitos e

enormes pecados! Eles hostilizam o justo, aceitam suborno e

repelem os pobres à porta. Por isso, quem é sábio se cala

neste tempo, porque é um tempo de desgraça (5, 10-13).

O profeta Amós, com a coragem que lhe é peculiar, denuncia os desmandos do rei Jeroboão II, seus funcionários, latifundiários e as elites de Israel, o Reino do Norte. E os denuncia de forma veemente, como autores do mal que assola o povo, e responsáveis por todas as catástrofes que ainda estão por vir...

Deitados em leitos de marfim, estendidos em divãs, eles

comem cordeiros do reba-nho e novilhos do curral.

Improvisam ao som da harpa, como Davi, inventam ins-

trumentos de música. Bebem vinho em copos e se ungem

com o melhor dos óleos, mas não se preocupam com a ruína

de José. Por isso, agora, eles irão para o exílio na frente dos

deportados. Assim terminará a orgia dos voluptuosos (6, 4-7).

Em muitas passagens, o homem de Técua anuncia as duras punições que estão para cair - como efetivamente caíram - sobre Israel, a partir do rei, dos altos funcionários, das classes ricas e de todo o povo. No entanto, fica claro, que os males não acontecem gratuitamente, mas são decorrentes da infidelidade do povo e de seus governantes, legisladores e sacerdotes.

Por isso, assim diz o Senhor: “Tua mulher se prostituirá na cidade,

teus filhos e filhas cairão pela espada, tua terra será dividida a

cordel. Tu morrerás em uma terra impura e Israel será deportado

para longe de sua terra’” (7, 17).

No texto acima, há imagens características dos tempos de exílio que estão por vir: prostituição, filhos e filhas mortos pela espada., terra dividida, morte em terra estranha. Tudo vai desaguar no terror da deportação. A prostituição, em alguns casos foi real. Muitas mulheres israelitas foram transformadas em hierodulas ou foram tomadas como concubinas de oficiais invasores. Mas a prostituição mesmo, refere-se à “mudança de dono” em termos espirituais, ou seja, abandona-ram Javé para adorar os ídolos.

A extensão celebrativa e litúrgica de Amós, se po-deria dizer que perpassa os extremos de sua profecia. Ora ele denuncia a corrup-ção geral, capaz de atrair os mais violentos castigos, para, logo depois, referir-se à misericórdia de Deus, capaz de perdoar, resgatar e esquecer o mal cometido. De um lado, como Isaías (cf. 1, 20-20) e Oséias (6, 6) muitos dos seus oráculos criti-cam os cultos vazios de inspiração mística. Muito discurso e pouca solidariedade:

Odeio, desprezo vossas festas e não gosto de vossas

reuniões. Porque, se me ofere-ceis holocaustos, não me

agradam vossas oferendas e não olho para o sacrifício de

vossos animais cevados. Afasta de mim o ruído de teus

cantos, não quero ouvir o som de tuas harpas! Que o direito

corra como a água e a justiça como rio caudalo-so! (5, 21-

24)

No sentido inverso, o profeta também anuncia que, depois de passada a tormenta, que trará purificação e uma pedagogia especial, aqueles que se converte-rem a Javé, o resto, haverão de experimentar um tempo novo, de paz, fartura e reconstrução.

Eis que virão dias – oráculo do Senhor – nos quais quem

semeia estará próximo de quem colhe, quem pisa as uvas, de

quem planta; as montanhas destilarão mosto e todas as

colinas se derreterão. Mudarei a sorte de meu povo, Israel;

eles reconstru-irão as cidades devastadas e as habitarão,

plantarão vinhas e beberão o vinho, cul-tivarão pomares e

comerão os frutos. Eu os plantarei em sua terra e já não

serão arrancados da terra que lhes dei, diz o Senhor teu Deus

(9, 13ss).

A função profética, desde aquele tempo, até nossos dias, visa, especificamente, exortar toda a sociedade humana, a partir de governantes, sacerdotes, ma-gistrados, a trilhar o caminho do bem, seguir a lei de Deus, ser solidária.

Assim como profetas e estudiosos viram a gênese da crise no início da monarquia, com o desperdício, o autoritarismo e o desrespeito aos direitos dos mais fracos, igualmente hoje, cabe aos profetas - de todas as confissões - assim como os teólogos, cientistas, sociólogos, filósofos, psicólogos, políticos, descobrir em nossa história o ponto da ruptura social e religiosa, bem como os meios de recomposição.

A partir do século VIII a.C., diante da crise, o grupo de profetas chefiados por Amós, o primeiro dentre os ‘escritores’ movidos por um ideal muito elevado, profundamente chocados pelos abusos que se multiplicavam, pela degradação so-cial que se alastrava, dirigiram-se diretamente ao povo. Não se insurgiam contra as faltas individuais, mas condenavam o ‘sistema’, pelo menos a monarquia, os funcionários e os privilegiados.

Os profetas tinham na Torá, especialmente nos desvelos de Deus pelo povo fraco do Êxodo, a inspiração para sua pregação e produção literária. O ensinamento sócio-fraterno que se convencionou chamar de “Doutrina Social da Igreja” tem em Amós um dos seus pontos de partida.

Depois do período profético, Jesus, nos Evangelhos volta a falar nos oprimidos, famintos e desterrados, compadecendo-se deles, dando-lhes pão, saúde, vida... Posteriormente, no período da Patrística (séc. III-V d.C.) o assunto é vigorosamente retomado. A maioria das correntes libertárias que surgiram na Igreja do século XX têm no Êxodo, nos profetas e na teologia dos Pais da Igreja, um referencial e um paradigma. As chamadas Encíclicas Sociais (séc. XIX-XX) vêm completar o pensamento de anúncio e denúncia, instaurado a partir de Amós.

Amós foi o mais antigo profeta que fez o processo da vida social de seu povo. Oséias, Isaías e Miquéias, bem como seus sucessores, denunciaram, cada um por sua vez, os abusos dos quais os detentores do poder se tornavam culpados, com prejuízo dos membros mais fracos da nação. Viúvas, órfãos, estrangeiros, assala-riados, camponeses, devedores, todos aqueles cujos direitos corriam riscos de se-rem desconhecidos ou conculcados por uma sociedade que respeitava somente o poder e o lucro, e cujo estatuto, não só econômico, mas também político e cultural, e até religioso, era gravemente ameaçado, tinham nos profetas advogados convictos. A leitura dos escritos proféticos, e especialmente os clássicos (Isaías, Amós e Miquéias) é apaixonante, justamente porque faz um processo contra determina-dos fatos que não são só do passado, mas que ocorrem diuturnamente diante de nós, especialmente para quem vive – ou tenta viver – nas regiões do Terceiro Mundo.

O apóstolo Tiago, na era cristã, recebeu o nome de “o Amós do Novo Testa-mento” por sua teologia social, igualmente atualizada, e carregada de denúncias contra os que, desprezando a Deus, oprimem os fracos. Suas invectivas contra a-varentos, exploradores e aqueles que vivem uma fé alegórica, lembram o trabalho de Amós. Do ponto de vista de estudo, podemos dizer que o livro de Amós possui nove capítulos e 146 versículos. Seu esquema é dividido em quatro partes:

l. Profecia contra as nações (1,1 – 2, 16)

1.1 Subscrito e proclamação (1,1s);

1.2 Acusação contra as nações vizinhas (1,3 – 2,3);

1.3 Acusação contra Judá (2, 4s);

1.4 Acusação contra Israel (2,6-16).

2.Três discursos contra Israel (3, 1- 6,14)

2.1 Declaração de julgamento (3,1-15)

2.2 Corrupção em Israel (4,1-13)

2.3 Lamentações (5, 1 – 6, 14)

3. Cinco visões de Amós (7, 1 – 9,10)

3.1 Gafanhotos devoradores (7,1ss)

3.2 O fogo que consome (7, 4ss)

3.3 O prumo (7, 7ss)

3.4 O cesto de figos (8, 1-14)

3.5 O castigo implacável (9, 1-10).

4. Promessas de restauração (9, 11-15)

4.1 Levantando a tenda de Davi (11-12)

4.2 De novo a fartura (13-15).

A voz de Deus, como um leão que ruge, e que será ouvida em todo o Israel, é a mensagem central da obra. O toque do šofar (a trombeta) que prenunciava os cultos de idolatria, não é mais ouvido (os pecados) , mas a voz de Javé, pronunciada através de seus profetas (promessa de resgate), sempre será ouvida (cf. 3, 6-9).

Se ao ímpio é imposto “construir casas e não habitar nelas...” (5,11), a quem muda de vida, deixando de lado a opressão e o egoísmo, é permitido reconstruir as casas destruídas e nelas morar (9,14). O trecho final (vv. 11-15) é um apêndice, possivelmente do século IV a.C. Os vv. 13ss são a idealização de uma fartura que nunca se tornou realidade. A maioria dos biblistas interpreta-o sob a perspectiva escatológica do devir.

Trecho de um bloco ministrado no Curso de Formação de Catequistas do Vicariato de Canoas, em novembro de 2011. O autor é Biblista e Doutor em Teologia Moral. Possui 110 livros editados, entre eles “Os profetas de Israel”. Ed. O Recado, 2010. Pregador de retiros e assessor de cursos bíblicos e workshops de Teologia Popular.

Contatos: [51] 3472-2973 – 9814-9191 – E-mail: kerygma.amg@terra.com.br