MOISÉS EM NOVA IORQUE

Persisto em escrever sobre a bíblia por motivo de fortes divergências sobre a religiosidade de meus alunos e amigos religiosos, que insistem em seguir a bíblia literalmente, visto que discordamos sobre algumas passagens bíblicas que julgo necessitar de reflexões mais profundas.

Quero salientar que não me interessa abalar a fé do ilustríssimo leitor, tão pouco depreciar qualquer religião, tendo em vista que também tenho minhas convicções.

Já escrevi que a bíblia sagrada é o conjunto de livros que descreve a longa experiência religiosa do povo de Israel. É o registro de várias pessoas, realizado em diversos lugares, em contextos diversos. Para ler a bíblia adequadamente é necessário ter um grau de discernimento, conhecimento e principalmente se abster do pensamento “dogmático”, ou seja, se abster das “verdades absolutas”. Em síntese, entender a bíblia é tarefa complexa, sendo assim, nunca leia a bíblia “ao pé da letra”.

Cada livro bíblico tem um gênero literário. Assim, por exemplo, os salmos são poesia; Jó é um longo poema semelhante a nossa literatura de cordel; Êxodo é uma epopéia; Cântico dos Cânticos é uma coleção de poemas de amor; Ester e Jonas são pequenas novelas entre outros gêneros.

Em 2005, o jornalista judeu nova-iorquino A.J. Jacobs decidiu seguir a bíblia ao pé da letra por quase quatrocentos dias. Deparou-se com situações bizarras por ter se tornado um “fundamentalista máximo”. Esta insanidade resultou no livro The Year of Living Biblically (O Ano em Que Vivi Biblicamente).

No decorrer dos dias Jacobs foi se transformando numa espécie de Moisés a peregrinar pelas ruas de Nova Iork. Não mais aparou a barba (Levítico, 19:27), usou azeite como condicionador capilar e passou a vestir uma túnica branca (Eclesiastes, 9:8). Julie, a esposa de Jacobs, descontente com o novo visual do marido não gostou das novas regras, visto que deixou de tocar a esposa durante o período menstrual (Levítico, 15:19) e precisou comprar um banquinho portátil, haja vista que a impureza da mulher menstruada se transmite para onde ela repousar o traseiro.

Quanto a ordem bíblica para apedrejar adúlteros (Levítico, 20:10) , Jacobs encontrou um jeito para obedecer à lei divina sem ofender as leis mundanas.

Como a Bíblia não especifica o tamanho das pedras, Jacobs encheu o bolso com minúsculos pedregulhos e foi à procura de uma adúltera. Desta maneira o que deveria ser a parte mais difícil da tarefa se tornou fácil.

Hoje, percebemos que muita gente teria que ser morta ou passar por situações vexatórias se fosse seguir a Bíblia “ao pé da letra” de maneira fundamentalista; mas fica evidente que isso não pode ser feito. Então a Bíblia errou? É evidente que não. O escritor narrou o contexto do seu tempo; hoje não são permitidas estas situações à luz da verdade e do bom senso.

Fico decepcionado quando me deparo com religiosos fundamentalistas que seguem certos “mandamentos bíblicos” obsoletos e fora de contexto.

O motivo de haver várias denominações religiosas ou várias placas de igrejas se justifica pelo fato de a bíblia ser ampla e complexa, visto que cada líder religioso justifica suas convicções fazendo uso de “passagens bíblicas” específicas. Todo religioso atribui garantias para suas convicções calcadas por textos bíblicos. Eu nunca ouvi um religioso afirmar: A minha igreja é a errada. Ou seja, todos estão certos, provando suas certezas biblicamente.

Os membros da religião Testemunha de Jeová, por exemplo, diante da interpretação que fazem das passagens bíblicas dos Livros de Gênesis (9:3); Levítico (17:10), Atos (15:19-21) dentre outras, recusam-se a se submeter a tratamentos médicos ou cirúrgicos que incluam transfusões de sangue. Na impossibilidade de se valerem de tratamentos alternativos, negam-se a receber transfusões, mesmo que isso possa levá-los à morte.

“Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. 4 Somente a carne com a sua alma -- seu sangue -- não deveis comer.” (Gênesis, 9:3-4)

"Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado [da vida]." (Levítico 17:10-14)

Os “sabatistas” (adventistas, Judeus etc) diante da interpretação que fazem dos diversos textos bíblicos, e, principalmente no mandamento da lei mosaica, a Igreja Adventista do Sétimo dia tem como um de seus principais ensinamentos a observância da guarda do sábado. Segundo eles, o sábado foi instituído desde a criação do mundo, quando Deus, tendo acabado sua obra, descansou, abençoando e santificando o sétimo dia.

"Santificai os meus sábados, pois servirão de sinal entre mim e vós, para que saibas que eu sou o senhor, vosso Deus". (Ezequiel 20:20).

“Estando, pois, os filhos de Israel no deserto, acharam um homem apanhando lenha no dia de sábado. E os que o acharam apanhando lenha o trouxeram a Moisés e a Arão, e a toda a congregação. E o puseram em guarda; porquanto ainda não estava declarado o que se lhe devia fazer. Disse, pois, o SENHOR a Moisés: ‘Certamente morrerá aquele homem; toda a congregação o apedrejará fora do arraial’. Então toda a congregação o tirou para fora do arraial, e o apedrejaram, e ele morreu, como o SENHOR ordenara a Moisés”. (Números 15:32-36)

Contrariando esta idéia, no livro de Colossenses, dentre outros livros bíblicos, o apóstolo Paulo diz: “Não sejais julgados pelo comer, beber, dias de festa e nem pelos sábados”. (2 : 16).

Portanto os dois argumentos têm inúmeros respaldos bíblicos em suas convicções.

Minha querida vovó, que Deus a tenha, frequentava a igreja Congregação Cristã no Brasil e afirmava que a (CCB) era o único caminho da salvação, pois muitas são as Concubinas (outras igrejas), mas só uma é a Esposa. Falava isto embasada em (Cantares 6:8-9) “Sessenta são as rainhas, e oitenta as concubinas, e as virgens sem número. Mas uma só é a minha pomba.” Cresci ouvindo isto e “ai de quem” não concordasse com ela.

Estas simples discordâncias de interpretações bíblicas podem causar grandes malefícios ao religioso, no caso da transfusão de sangue, por exemplo.

Outro malefício se refere às “ofertas” (dinheiro), haja vista que proliferam instituições inescrupulosas que fazem usos de argumentos bíblicos para se beneficiarem.

“Honra ao Senhor com os teus bens, e com as primícias de toda a tua renda.” (Provérbios 3:9)

“Também todos os dízimos da terra, quer dos cereais, quer do fruto das árvores, pertencem ao senhor; santos são ao Senhor.” Levítico 27:30

“Roubará o homem a Deus? Todavia vós me roubais, e dizeis: Em que te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas alçadas.” Malaquias 3:8

Ao fazer um estudo mais amplo sobre o dízimo na Bíblia, percebemos que nunca está relacionado a dinheiro. O dízimo sempre está relacionado a alimentos, produção agro-pecuária. Algumas taxas para o “templo” só eram aceitas em forma de dinheiro (Êxodo 30:14-16 e 38:24-31). O dinheiro era utilizado para comprar sepulturas (Gênesis 23:15-16). O dinheiro era usado para comprar bois para serem oferecidos em sacrifícios (o que se trata de outra loucura contextualizada, II Samuel (24:24)).

Fica evidente que não se deve interpretar a Bíblia como uma simples receita de bolo. Interpretada de modo literal torna-se completamente contrária a muitas descobertas da ciência atual, levando o crente a negar a ciência e a ciência a zombar da fé, entre outros males.

Como já afirmei em outros artigos, a interpretação ao “pé da letra” destes trechos bíblicos pode suscitar a ira, descrença e descrédito em relação a Deus; porém fica evidente que “Deus” é uma coisa, o que escreveram sobre ele é outra.

Professor Jeferson Albrecht
Enviado por Professor Jeferson Albrecht em 16/05/2012
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