SERMÃO PARTE I - PADRE ANTONIO VIEIRA

I

Hxc omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me.

Que ofereça o demônio mundos, e que peça adorações! Oh quanto temos que temer: oh quanto temos que imitar nas tentações do demônio! Ter que temer, e muito que temer, nas tentações do demônio, coisa é mui achada e mui sabida: mas ter nas tentações do demônio que imitar? Sim; porque somos taes os homens por uma parte, e é tal a força da verdade por outra, que as mesmas tentações do demônio, que nos servem de ruim, nos podem servir de exemplo. Estae commigo.

Toma o demônio pela mão a Christo, leva-o a um monte mais alto que essas nuvens, mostra-lhe d’alli os reinos, as cidades, as côrtes de todo mundo, e suas grandezas, e diz-lhe d’esta maneira: hxc omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me. A tal proposta? Vem cá demônio, sabes o que dizes, ou o que fazes? É possível que promete o demônio um mundo por uma só adoração? É possível que oferece o demônio um mundo por um só pecado? É possível que não lhe parece muito ao demônio dar um mundo só por uma alma? Não; porque a conhece, e só quem conhece as coisas, as sabe avaliar. Nós os homens, como nos governamos pelos sentidos corporaes, e a nossa alma é espiritual, não a conhecemos; e como não a conhecemos, não a estimamos, e por isso a damos tão barata. Porém o demônio, como é espírito, e a nossa alma também espírito, conhece muito bem o que ella é; e como a conhece, estima-a tanto, que do primeiro lanço oferece por uma alma o mundo todo; porque vale mais uma alma, que todo o mundo. Vêde se as tentações do demônio que nos servem de ruina, nos podem servir de exemplo. Aprendamos sequer do demônio a avaliar e a estimar nossas almas. Fique-nos, christãos, que vale mais uma alma que todo o mundo. E é tão manifesta verdade esta, que até o demônio, inimigo capital das almas, a não pode negar.

Mas já que o demônio nos dá doutrina , quero-lhe eu dar um quinau. Vem cá, demônio, outra vez. Tu sábio? Tu astuto? Tu tentador? Vae-te d’ahi, que não sabes tentar. Se tu queiras que Christo se ajoelhasse diante de ti, e souberas negociar, tu o renderas. Vae-lhes oferecer a Christo mundos? Oh que ignorância! Se quando lhe davas um mundo, lhe tiráras uma alma, logo o tinhas de joelhos a teus pés. Assim aconteceu. Quando Judas estava na Ceia, já o diabo estava em Judas;’’ Cum jam diabolôs misisset in cor, ut traderet e um Judas1. Vendo Christo que o demônio lhe levava aquella alma, põe-se de joelhos aos pés de Judas, para lhos lavar, e para o converter. Tá Senhor meu, repare no que fazeis; não vêdes que o demônio está assentado no coração de Judas? Não vedes que em Judas está revestido o demônio, e vós mesmo o dissestes: Unus ex vobis diabolys est? 2 Pois será bem que Christo esteja ajoelhado aos pés do demônio? Christo ajoelhado aos pés de Judas, assombro é, pasmo é; mas Christo ajoelhado, Christo de joelhos diante do diabo? Sim. Quando lhe oferecia o mundo, não o pode conseguir: tanto que lhe quis levar uma alma, logo o teve a seus pés. Para que acabemos de entender os homens cegos, que vale mais a alma de cada um de nós, que todo um mundo. As coisas estimam-se e avaliam-se pelo que custam. Que lhe custou a Christo uma alma, e que lhe custou o mundo? O mundo custou-lhe uma palavra: Ipse dirit, et facta sunt 3: uma alma custou-lhe a vida, e o sangue todo. Pois se o mundo custa uma só palavra de Deus, e a alma custa todo o sangue de Deus; julgae se vale mais uma alma, que todo o mundo. Assim o julga Christo e assim o não pode deixar de confessar o mesmo demônio. E só nós somos tão baixos estimadores de nossas almas, que lh’as vendemos pelo preço que vós sabeis.

Espantamo-nos que Judas vendesse a seu Mestre e a sua alma por trinta dinheiros; e quantos há que, andam rogando com ella ao demônio por menos de quinze! Os irmãos de José eram onze, e venderam-no por vinte dinheiros; sahiu-lhe por menos de dois dinheiros a cada um. Oh se consideramos bem os nadas, por que vendemos a nossa alma! Todas as vezes que um homem ofende a Deus mortalmente, vende a sua alma: venumdatus est, ut jacaret malum, diz a Escriptura da Achab 3. Eu, christãos, não quero agora, nem vos digo que não vendes a vossa alma, porque sei que haveis de vender só vos peço que, quando a venderdes, que a vendes a peso. Passe primeiro o que é uma alma, pesae primeiro o que vale e o que custou; e depois eu vos dou licença que a vendaes embora. Mas em que balanças de há-de pesar uma alma? Nas balanças do juízo humano não; porque são mui falsas: Mendacaes filii hominum in stateris. Pois em que balanças logo? Cuidaríeis que vos havia de dizer que nas balanças de S. Miguel, o Anjo, onde as almas se pesam? Não quero tanto: digo que as peseis nas balanças do mesmo demônio, e eu me dou por contente. Tomae as balanças do demônio na mão; ponde de uma parte o mundo todo, e da outra uma alma, e achareis que pesa mais a vossa alma, que todo o mundo. Hxe omnia tibi dabo, si eadens me: Tudo isto te darei, se me leres a tua alma. Não lhe atirou com menos bala a Christo, que com o mundo inteiro. Mas já que vos dou licença para vender, ponhamos este contrato do demônio em pratica, e vejamos se é bom partido.

Suponhamos primeiramente que o demônio no seu oferecimento falava verdade, e que podia e havia de dar o mundo; suponhamos mais que Christo não fosse Deus, senão um puro homem, e tão fraco, que pudesse e houvesse de cahir na tentação. Pergunto: se este homem recebesse o mundo todo, e ficasse senhor d’elle, e entregasse sua alma ao demônio, ficaria bom mercador? Faria bom negocio? O mesmo Christo e disse n’outra ocasião: Quid prodest homini si mundum universum lucretur: anima vero sua detrimentum patiatur? Que lhe aproveita ao homem ser senhor de todo o mundo, se tem a sua alma do captiveiro do demônio? Oh que divina consideração! Alexandre Magno, e Julio Cesar foram senhores do mundo; mas as suas almas agora estão ardendo no inferno, e arderão por toda a eternidade. Quem me dera agora perguntar a Julio Cesar e a Alexandre Magno, que lhes aproveitou haverem sido senhores do mundo, e se acharam que foi bom contrato dar a alma pelo adquirir. Alexandre, Julio, foi bom serdes senhores do mundo todo, e estardes agora onde estaes? Já que eles ne não podem responder, respondei-me vós. Pergunto: Tomareis agora algum de vós ser Alexandre Magno? Tomareis ser Julio Cesar? Deus nos livre. Como! Se foram senhores de todo o mundo? É verdade, mas perderam as suas almas. Oh cegueira! E para Alexandre, para Julio Cesar, parece-vos mau dar a alma por todo o mundo; e para nós parece-vos bom dar a alma pelo que não é mundo, nem tem de mundo o nome? Sabeis de que nasce tudo isto? De alta de consideração; de não tomardes o peso a vossa alma. Quid prodest homini? Que aproveitaria ao homem lucrar todo o mundo e perder-a a sua alma? Aut quam dabit homo commutationem pro anima sua? Oh que coisa há no mundo, pela qual se possa uma alma trocar?

Todas as coisas d’este mundo tem outra, por que se possam trocar. O descanço pela fazenda, a fazenda pela vida, a vida pela honra, a honra pela alma; só a alma não tem por que se trocar. E sendo que não há no mundo coisa tão grande, por que se possa trocar a alma, não há coisa no mundo tão pequena e tão vil, por que a não troquemos, e a não demos. Ouvi uma verdade de Seneca, que por ser de um gentio, folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini se ipso vilius: Não há coisa para comnosco mais vil, que nós mesmos. Revolvei a vossa casa, buscae a coisa mais vil de toda ella, e achareis que é vossa própria alma. Provo. Se vos querem comprar a casa, o canavial, o escravo, ou o cavalo, não lhe pondes um preço muito levantado, e não o vendeis muito bem vendido? Pois se a vossa casa, e tudo o que n’ella tendes, o não quereis dar, senão pelo que vale; a vossa alma, que vale mais que o mundo todo; a vossa alma, que custou tanto como o sangue de Jesus Christo, por que a haveis de vender tão vil e tão baixamente? Que vos fez, que vos desmereceu a triste alma? Não a tratareis sequer como o vosso escravo, e como o vosso cavalo? Se vos perguntam acaso, porque não vendeis a vossa fazenda por menos do que vale, dizeis que a não quereis queimar. E quereis queimar a vossa alma? Ainda mal, porque a haveis de queimar, e porque há-de arder eternamente.

Ora, christãos, não seja assim: aprendemos ao menos do demônio a estimar nossa alma. Vejamos o que o demônio hoje fez por uma alma alheia, para que nós nos corramos e confundamos do pouco que fazemos pelas própria. Vae-se o demônio ao deserto, está-se n’elle quarenta dias e quarenta noites, como se fora uma anacoreta; e em todo este tempo esteve vigiando, e espreitando ocasião, e tanto que a teve, não deixou pedra por mover para a conseguir. Vendo que não lhe sucedia, parte para Jerusalém, e sendo tão inimigo de Deus, vae-se ao Templo, para persuadir a Christo que se arrojasse do pinsculo: Mitte te deorsum: estuda livros, alega Escripturas, interpreta Psalmos: Scriptum est enim, quia angelis suis mandavit de te, et in manibus tollent te , ne forte offendas as lapidem pedem tuum. Resistindo também aqui, e vencido segunda vez o demônio, nem por isso desmaia: corre vales, atravessa montes, sobe ao mais alto de todos; e só por vêr se podia fazer cahir a Christo, não repara em dar de uma só vez o mundo todo. E que o demônio faça tudo isto por uma alma alheia; e que façamos nós tão pouco pela própria! Que se ponha o demônio quarenta dias em um deserto para me tentar; e que eu nos quarenta dias da Quaresma não tome um quarto de hora de retiro para lhe saber resistir! Que vigie o demônio e espreite todas as ocasiões para me condenar : e que deixe eu passar tantas de minha salvação; e ocasiões que uma vez perdidas, não se podem recuperar! Que vá o demônio ao Templo de Jerusalém distante tantas léguas, para me despenhar ao pecado; e que tendo eu a Igreja à porta, não me saiba ir metter em um canto d’ella, como o Publicano, para chorar meus pecados! Que o demônio para me persuadir estude e alegue os livros sagrados; e que eu não abra um só espiritual, para que Deus falle comigo, já que eu não sei falar com ele! Que o demônio vencido a primeira e segunda vez, insista, e não desmaie para me render; e que se comecei acaso alguma obra boa, a primeira dificuldade desista, e não tenha constância nem perseverança em nada! Que o demônio para me fazer cabir, desça vales, e subas montes; e que eu não dê um passo para me levantar, tendo dado tantos para me perder! Finalmente, que o demônio para grangear a minha alma não repare em dar no primeiro lanço o mundo todo; e que eu estime minha alma tão pouco, que bastem os mais vis interesses do mundo para a entregar ao demônio! Oh miséria! Oh cegueira!

A que diferente preço compra hoje o demônio as almas, do que oferecia por ellas antigamente! Já n’esta nossa terra vos digo eu! Nenhuma feira tem o demônio no mundo, onde lhe saiam mais baratas: no nosso Evangelho ofereceu todos os reinos do mundo por uma alma: no Maranhão não é necessário ao demônio tanta bolsa para comprar todas: não é necessário oferecer mundos: não é necessário oferecer reinos: não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar de pindoba, e dois tapuyas; e logo está adorando com ambos os joelhos: Si cadens adoraveris me. Oh que feira tão barata! Negro por alma; e mais negra ella que ele! Esse negro será teu escravo esses poucos dias que viver: e a tua alma será minha escrava por toda a eternidade enquanto Deus for Deus. Este é o contrato que o demônio faz convosco; e não só lh’o aceitaes, senão que lhe daes o vosso dinheiro em cima.

SERMÕES - OBRAS COMPLETAS DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA.

PADRE ANTONIO VIEIRA
Enviado por Pedro Prudêncio de Morais em 16/08/2012
Código do texto: T3833469
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