O profeta Amós

O PROFETA AMÓS

Segundo algumas escolas bíblicas, junto com Isaias e Jeremias, Amós está entre os maiores profetas do Antigo Testamento. Amós nasceu em Técua, perto do Mar Morto, no século VIII a.C. Antes de ser chamado a profetizar, Amós criava gado e plantava sicômoros (figos silvestres) nos arredores de Jerusalém. Por causa do mau testemunho de alguns, em especial os nebiim (profetas) e os kohēn (sacerdotes) das cortes, ele não se intitula profeta, mas um homem da roça que faz profecias. A crítica a sacerdotes e falsos profetas é contundente e atual:

Eu subverti a alguns dentre vós, como subverti Sodoma e

Gomorra, e vós fostes como um tição arrebatado do incêndio,

contudo não vos convertestes a mim (cf. 4,11), diz o Senhor

(Texto traduzido da Bíblia Hebraica de Sttutgart).

Seu trabalho ocorreu entre os anos 760 e 750 a.C. no Reino do Norte, próximo a Betel, durante o reinado de Jeroboão II (785-746/5 a.C.). Nesse tempo, de tribulações e idolatrias, em Judá reinou Ozias (780-740 a.C.). Trata-se de um nítido período de pré-exilio, tanto para Israel como para Judá. Havia ali um sincretismo religioso e cultos a outros deuses que manifestavam o descrédito e as infidelidades do povo a Javé.

Amós (âmayãh) é uma abreviatura de Amasá ou Amasias, “Javé ergue”. Pela qualidade de seu trabalho, há biblistas que chamam Amós de “o príncipe dos profetas”, enquanto outros dizem que sua produção literária sintetiza toda a profecia de Israel. As escolas bíblicas modernas recomendam, por ser Amós talvez o mais importante, que se comece a estudar os profetas a partir de seus textos. Ele foi o primeiro dos “escritores”.

Os profetas – e essa práxis se estabelece a partir de Amós – se insurgiram contra as desigualdades gritantes que havia nas sociedades palestinas, tanto no sul como no norte. Diferentes dos antepassados, que dormiam em tendas no deserto, a sociedade atual era aburguesada, gostava de luxo, pouco se importando com a fraternidade, a ética e a moral da sociedade tribal. Ao invés da “autêntica procura de Deus” (cf. Am 5,4ss) eles só pensavam em conforto. Toda a crise, denunciada por Amós e seus contemporâneos, teve início no tempo de Salomão, no qual foi organizado um poder central, autoritário, assessorado por uma administração que cobria o país inteiro (cf. 1Rs 4, 1-5; 9, 10-28).

Poder-se-ia retroceder até o tempo de Davi, que reuniu sob sua coroa não só Israel e Judá, mas também todas as tribos israelitas, a população cananéia e muitos estrangeiros que migraram para Israel. Contra a ganância dos comerciantes, levanta-se Amós, naquela que é, quem sabe, a mais vigorosa denúncia do Antigo Testamento:

Ouvi, vós que esmagais o pobre e quereis eliminar os humildes do país. Vós que dizeis: “Quando passará a lua nova, para que possamos vender o grão, e o sábado, para que possamos oferecer o trigo, para diminuir a medida, aumentar o peso e falsificar as balanças enganadoras, para comprar o indigente com prata e o pobre por um par de sandálias, para vender até os refugos do trigo?” O Senhor jurou pelo orgulho de Jacó: Não esquecerei jamais nenhuma de suas ações! (8, 4-7)

As interpelações de Javé, feitas pelos profetas, primeiro aos governantes e depois ao povo, baseadas nos códigos da Torá, demonstram que toda a sociedade é depositária da lei e responsável por sua aplicação. Todo indivíduo que faz parte da comunidade, primeiro tribal depois estatal, está implicado nessas obrigações. Prevendo a ruína da Samaria, capital de Israel, que iria ocorrer em 721 a.C. por obra dos Assírios (a de Judá viria em 597 a.C.), o profeta pergunta e, conhecendo a resposta, profetiza:

Quantos oprimidos há em seu meio? Não sabem agir com retidão – oráculo do Senhor – os que amontoam opressão e rapina nos palácios. Por isso assim diz o Senhor Deus: Um inimigo cercará o país, arrancará de ti o poder e os teus palácios serão saqueados (3, 9ss).

As referências à violência e à opressão contra os mais fracos, denotam que há uma gritante contradição entre a prática daquele povo e os mandamentos de Deus. Ele denuncia (3, 2; 9, 7) a interpretação equivocada que as pessoas dão à condição de “povo eleito”. Eleita é aquela, nação ou pessoa, que vive conforme a instrução de Deus. A violação do direito do ser humano, do fraco e do oprimido, provocará castigos (5, 2s) e banimentos. Numa de suas fortes críticas contra as damas da corte, comparando-as às hierodulas, Amós chama-as de ‘vacas de Basã’. As vacas de Basã são sinal da aristocracia israelita, que lucra com a opressão, sente-se segura em sua própria montanha de prazer, bebe à vontade, à custa do prejuízo dos outros.

Ouvi esta palavra, vacas de Basã, que estais sobre o monte

da Samaria, oprimindo os fracos, esmagando os pobres e

dizendo aos vossos maridos: “Trazei-nos o que beber!” O

enhor Deus jurou por sua santidade: Sim, eis que virão dias

sobre vós, em que vos carregarão com ganchos e o que

sobrar de vós, com arpões. E saireis pelas brechas, uma após

a outra, e sereis tocadas em direção do Hermon – oráculo do

Senhor (4, 1ss).

Por hierodulas (hierós = sagrado + doulé = escravas) eram conhecidas as chamadas “prostitutas sagradas”, mulheres da sociedade que se prostituíam nos templos, de Canaã à Caldéia. Os autores ficam divididos ao afirmar, se a renda da prostituição era para elas, para o templo, ou dividida, ou se a prática era devida a alguma forma de crença, ou mera licenciosidade. A Bíblia combate a hierodulia, por sua feição de imoralidade (prostituição) e de idolatria (realizada nos templos pagãos). A mulher palestina, por sua característica tribal, era reservada e humilde, sempre submissa à autoridade do pai, do marido e, na viuvez, do filho mais velho ou do sogro. Quando Davi e Salomão transformaram as cidades de Israel em regiões cosmopolitas, as mulheres foram as primeiras a “importar” costumes dos países vizinhos ou distantes. Foram abandonados os véus e as roupas escuras, dando lugar a jóias, roupas de seda, trajes provocantes, cosméticos e pinturas.

Com isso também os costumes, principalmente nos palácios, se tornaram liberais, no tocante à moral (aventuras extraconjugais), à religião (adoção de outros deuses) e aos costumes (muitas mulheres da corte eram dadas à embriaguez). A elas, Amós compara às vacas de Basã, símbolo da superficialidade e do imperialismo estatal. No Antigo Testamento, a sedentarização estabeleceu um perverso divisor de águas. Uns enriquecem (os latifundiários, que exploravam grandes áreas) e outros permaneceram pobres (os pequenos criadores de gado miúdo). Os ricos proprietários cananeus que viviam na Palestina, através do poder econômico, tentaram (e conseguiram) subjugar e dominar muitos segmentos de empobrecidos que, endividados, foram obrigados a vender ou hipotecar tudo o que possuíam. Este é o tempo de desgraça anunciado:

Eles odeiam quem repreende à porta e detestam quem lhes

fala com sinceridade. Por isso: porque oprimem o indigente e

lhe cobram um imposto de trigo, construíram casas de pedra,

mas não habitarão nelas; plantarão esplêndidas vinhas, mas

não beberão o seu vinho. Pois conheço seus inúmeros delitos

e enormes pecados! Eles hostilizam o justo, aceitam suborno e

repelem os pobres à porta. Por isso, quem é sábio se cala

neste tempo, porque é um tempo de desgraça (5, 10-13).

O profeta Amós, com a coragem que lhe é peculiar, denuncia os desmandos do rei Jeroboão II, seus funcionários, latifundiários e as elites de Israel, o Reino do Norte. E os denuncia de forma veemente, como autores do mal que assola o povo, e responsáveis por todas as catástrofes que ainda estão por vir...

Deitados em leitos de marfim, estendidos em divãs, eles comem

cordeiros do rebanho e novilhos do curral. Improvisam ao som

da harpa, como Davi, inventam instrumentos de música. Bebem

vinho em copos e se ungem com o melhor dos óleos, mas não

se preocupam com a ruína de José. Por isso, agora, eles irão

para o exílio na frente dos deportados. Assim terminará a orgia

dos voluptuosos (6, 4-7).

Em muitas passagens, o nabi de Técua anuncia as duras punições que estão para cair - como efetivamente caíram - sobre Israel, a partir do rei, dos altos funcionários, das classes ricas e de todo o povo. No entanto, fica claro, que os males não acontecem gratuitamente, mas são decorrentes da infidelidade do povo e de seus governantes, legisladores e sacerdotes.

Por isso, assim diz o Senhor: ‘Tua mulher se prostituirá na

cidade, teus filhos e filhas cairão pela espada, tua terra será

dividida a cordel. Tu morrerás em uma terra impura e Israel

será deportado para longe de sua terra’ (7, 17).

No texto acima, há imagens características dos tempos de exílio

que estão por vi: prostituição, filhos e filhas mortos pela espada., terra dividida, morte em terra estranha. Tudo vai desaguar no terror da deportação. A prostituição, em alguns casos foi real. Muitas mulheres israelitas foram transformadas em hierodulas ou foram tomadas como concubinas de oficiais invasores. Mas a prostituição mesmo, refere-se à “mudança de dono” em termos espirituais, ou seja, abandonaram Javé para adorar os ídolos. A extensão celebrativa, litúrgica, se poderia dizer, de Amós, perpassa os extremos de sua profecia. Ora ele denuncia a corrupção geral, capaz de atrair os mais violentos castigos, para, logo depois, referir-se à misericórdia de Deus, capaz de perdoar, resgatar e esquecer o mal cometido. De um lado, como Isaías (cf. 1, 20-20) e Oséias (6, 6) muitos dos seus oráculos criticam os cultos vazios de inspiração mística. Muito discurso e pouca solidariedade:

Odeio, desprezo vossas festas e não gosto de vossas reuniões.

Porque, se me ofereceis holocaustos, não me agradam vossas

oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais

cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, não quero ouvir

o som de tuas harpas! Que o direito corra como a água e a

justiça como rio caudaloso! (5, 21-24)

No sentido inverso, o profeta também anuncia que, depois de passada a tormenta, que trará purificação e uma pedagogia especial, aqueles que se converterem a Javé, o resto, haverão de experimentar um tempo novo, de paz, fartura e reconstrução.

Eis que virão dias – oráculo do Senhor – nos quais quem semeia

estará próximo de quem colhe, quem pisa as uvas, de quem

planta; as montanhas destilarão mosto e todas as colinas se

derreterão. Mudarei a sorte de meu povo, Israel; eles

reconstruirão as cidades devastadas e as habitarão, plantarão

vinhas e beberão o vinho, cultivarão pomares e comerão os

frutos. Eu os plantarei em sua terra e já não serão arrancados da

terra que lhes dei, diz o Senhor teu Deus (9, 13ss).

A função profética, desde aquele tempo, até nossos dias, visa, especificamente, exortar toda a sociedade humana, a partir de governantes, sacerdotes, magistrados, a trilhar o caminho do bem, seguir a lei de Deus, ser solidária. Assim como profetas e estudiosos viram a gênese da crise no início da monarquia, com o desperdício, o autoritarismo e o desrespeito aos direitos dos mais fracos, igualmente hoje, cabe aos profetas - de todas as confissões - assim como os teólogos, cientistas, sociólogos, filósofos, psicólogos, políticos, descobrir em nossa história o ponto da ruptura social e religiosa, bem como os meios de recomposição.

Os profetas tinham na Torá, especialmente nos desvelos de Deus pelo povo fraco do Êxodo, a inspiração para sua pregação e produção literária. O ensinamento sócio-fraterno que se convencionou chamar de “Doutrina Social da Igreja” tem em Amós um dos seus pontos de partida. Depois do período profético, Jesus, nos Evangelhos volta a falar nos oprimidos, famintos e desterrados, compadecendo-se deles, dando-lhes pão, saúde, vida... Posteriormente, no período da Patrística (séc. III-V d.C.) o assunto é vigorosamente retomado. A maioria das correntes libertárias que surgiram na Igreja do século XX têm no Êxodo, nos profetas e na teologia dos Pais da Igreja, um referencial e um paradigma. As chamadas Encíclicas Sociais (séc. XIX-XX) vêm completar o pensamento de anúncio e denúncia, instaurado a partir de Amós. Amós foi o mais antigo profeta que fez o processo da vida social de seu povo.

Oséias, Isaías e Miquéias, bem como seus sucessores, denunciaram, cada um por sua vez, os abusos dos quais os detentores do poder se tornavam culpados, com prejuízo dos membros mais fracos da nação. Viúvas, órfãos, estrangeiros, assalariados, camponeses, devedores, todos aqueles cujos direitos corriam riscos de serem desconhecidos ou conculcados por uma sociedade que respeitava somente o poder e o lucro, e cujo estatuto, não só econômico, mas também político e cultural, e até religioso, era gravemente ameaçado, tinham nos profetas advogados convictos

O apóstolo Tiago, na era cristã, recebeu o nome de “o Amós do Novo Testamento” por sua teologia social, igualmente atualizada, e carregada de denúncias contra os que, desprezando a Deus, oprimem os fracos. Suas invectivas contra avarentos, exploradores e aqueles que vivem uma fé alegórica, lembram o trabalho de Amós. Do ponto de vista de estudo, podemos informar que o livro de Amós possui nove capítulos e 146 versículos.

A voz de Deus, como um leão que ruge, e que será ouvida em todo o Israel, é a mensagem central da obra. O toque do šofar (a trombeta) que prenunciava os cultos de idolatria, não é mais ouvido (os pecados), mas a voz de Javé, pronunciada através de seus profetas (promessa de resgate), sempre será ouvida (cf. 3, 6-9). Se ao ímpio é dado “construir casas e não habitar nelas...” (5, 11), a quem muda de vida, deixando de lado a opressão, é permitido reconstruir as casas destruídas e nelas morar (9, 14).

O trecho final (vv. 11-15) é um apêndice, possivelmente do século IV a.C. Os vv. 13ss são a idealização de uma fartura que nunca se tornou realidade. A maioria dos biblistas interpreta-o sob a perspectiva escatológica do devir.