SEPARAMOS O CORPO DA ALMA

SEPARAMOS O CORPO DA ALMA

Senhores meus, separemos o precioso do vil: separemos como “São Paulo ao homem do vestido, ao senhor do escravo, ao morador da casa, ao preso do cárcere, ao tesouro do barro, enfim ao corpo da alma: entenderemos todos, e diga-se cada um a si mesmo. Eu sou a minha alma; este é o nobre, o limpo, o heroico e verdadeiro conhecimento de si mesmo. Se com verdade me dizem que sou pó, porque meu corpo foi em Adão, e há de ser pó na sepultura, ainda que de presente o não seja; por que não direi eu com igual e maior verdade, que sou alma, porque o fui porque o hei de ser, e porque o sou? Separemos logo o precioso do vil; e vivemos como almas separadas. As nossas almas todos sabem que têm dois estados, um nesta vida de alma unida ao corpo, outro depois da morte, que é e se chama de alma separada. Este segundo estado é muito mais perfeito; porque, livre a alma dos embaraços e dependências do corpo, obra com outras espécies, com outra luz, com outra liberdade, com outra nobreza; enfim, como desatada e descarregada daquele peso e daquela vil companhia, que sempre a faz tirar ao baixo; se a morte há de fazer por fora esta separação, por que a não faremos nós por vontade? Por que não fará a razão desde logo, o que a morte há de fazer depois? oh que vida. Oh que obras seriam as nossas tão outras do que são. Por que nos parece que faziam os santos obras tão maravilhosas, senão porque viviam como almas separadas, unidas ao corpo, mas independentes dos corpo. Por isso eram neles tão heroicas, tão fidalgas, e tão limpas as ações, que em nós são tão cheias, ou totalmente de lodo. Ou quando menos de pé.

Eu não pretendo negar ao pó a piedade e o útil de seu conhecimento, só quero que nos estimemos pela parte mais nobre, para que também o sejam as nossas obras, pois são filhas (como dissemos) da estimação e conceito que cada um faz de si mesmo.

Do corpo foi principio e é fim, o pó, da alma foi principio e é fim Deus; e como as obras nascem de seus princípios e caminham seus fins, só obrará heroicamente, quem trouxer diante dos seus olhos do seu conhecimento, não o vil principio e o fim de seu corpo, se não o principio e fim altíssimo de sua alma as maiores e mais heroicas obras, que jamais se abram no mundo fora as de Cristo; e entre todas as obras de Cristo naquela última batalha, só é desarmado, contra o mundo, contra a morte, contra o pecado, contra o inferno; e só, e despido o venceu em um dia, trinfou gloriosamente de tudo; mas com que conhecimento capitão em um tão estranho e dificultoso conflito? Sabemos que o seu principio e o seu fim era Deus.

Almas, alma, vivei como almas se conhecem que a alma é racional, governe a razão, e não o apetite: se conheceis que é imortal, despreze tudo aquilo que morre e acaba: se conheceis que é celeste, pisai e metei debaixo dos pés tudo o que é terra. Finalmente, se conheceis que é divina, amai, servi louvai e aspirai só a DEUS.

Esse texto foi extraído do Primeiro Discurso do Pe. Antônio Vieira, sobre as Cinco Pedras da Funda de Davi, publicados em sua obra – Os Sermões VI, XIV, pág. 202 e segs. O título encimado é uma adaptação, inspirado no próprio texto transcrito. Cada discurso corresponde a uma pedra de Davi. E por isso, o Pe. Vieira termina nestes termos, o seu Primeiro Discurso: “e esta é a primeira pedra de nosso Davi; mas se ela não basta, ainda lhe ficam no surrão outras quatro”.

Antonio de Vieira
Enviado por Pedro Prudêncio de Morais em 25/10/2012
Código do texto: T3951722
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