FÉ TAMBÉM É DÚVIDA

E conhecerão a verdade e a verdade os libertará". João

8.32

Vivo inquieto; reconheço minhas dúvidas. Sinto que as respostas

estereotipadas, e supostamente hegemônicas da religião, perdem

fôlego

dentro de mim. Ávido por saber, leio o que se escreve sobre Deus,

sobre a saga humana e sobre a estupidez das lágrimas de

crianças que

morrem de forma ainda mais estúpida pelo mundo. O meu labor

pessoal e

minha busca frenética de entender os porquês, repousam sobre

alguns

pressupostos.

Creio na realidade transcendental bem como em nossa capacidade,

divinamente inspirada, de nos revoltar contra as tragédias e de

acolher a felicidade que nos sobrevêm indiscriminadamente.

Acredito

que fomos dotados da coragem virtuosa de questionar e que podemos

distinguir a verdade da realidade. Aceito a tradição

aristotélica de

que a verdade é, muitas vezes, um processo de adequação da

nossa

razão às coisas. Assim, entendo que precisamos nos rebelar

contra

toda forma de dominação. Repulso os que ousam negar a sede

transcendental na humanidade. Confio no ideal libertário que

mobiliza

os construtores da história.

Creio que não devo amansar-me amedrontado pelo dogmatismo

religioso

que promove estagnação. Não espero achar-me, um dia,

petrificado

pelas conclusões alheias. Odeio imaginar que, por temer o novo,

virarei um fanático intransigente e arrogante.

Creio que não posso acolher a idéia de ser mais um elo na longa

sucessão dos pensadores cristãos que apequenaram o conhecimento

de

Deus. A teologia já se submeteu como vassala ideológica dos

poderosos. Assim, rejeito essa teologia ilusória que se presta

à

manutenção de privilégios e obscurecimento da razão.

Creio que preciso afastar-me da mentalidade de gueto dos

evangélicos.

Porém, meu distanciamento deve almejar uma maior aproximação

com a

vida. Creio na possibilidade de recuperar a paixão pela vida,

transformar a existência numa aventura empolgante e reconquistar

os

processos que se perderam pela inércia das doutrinas prontas.

Creio que Deus quer nos ver desenvolvendo uma fé impregnada de

responsabilidade. Permaneço convicto de que Ele deseja nos ajudar

a

ser responsáveis, responder por nossos atos e não fugir de suas

conseqüências. Concordo com o pensador existencialista Gabriel

Marcel

que afirmou: "O homem livre é o que pode prometer e pode

trair". Sigo

convicto de que o pensamento teológico deve nos manter cientes de

que

a transgressão da lei é sempre possível, mesmo a não

codificada, mas

que nós mesmos escolhemos respeitar.

Creio que não posso alicerçar minhas convicções unicamente

sobre o

senso comum. Rejeitarei os cabrestos impostos pela tradição e pelo

fundamentalismo acrítico. Quero manter viva dentro de mim a chama

da

Reforma Protestante que se opôs ao dogmatismo; reivindicarei a

possibilidade da dúvida. Quero ser um protestante que não se

apavora

com a mentalidade analítica. Abdico a religião infantilizadora.

Sinto-me crescentemente estranho àqueles que se contentam em

repetir

as conclusões dos outros. Reconheço-os como profetas

patéticos;

esforçados em impedir que usemos nossa mente para evitar a

alienação.

Aceito os argumentos filosóficos de Maria Lúcia Aranha de que o

uso

da palavra alienação representa um perigo em todos os sentidos:

"No

sentido jurídico, perde-se a posse de um bem; para a psiquiatria,

o

alienado mental é aquele que perde a dimensão de si na

relação com os

outros; pela idolatria, perde-se a autonomia; segundo a concepção

de

Rousseau, povo não deve perder o poder; a pessoa alienada perde a

compreensão do mundo em que vive e torna-se alheia a segmentos

importantes da realidade em que se acha inserida".

Creio em minha vocação e eleição cristãs, portanto, não

me acomodarei

ao imobilismo reacionário "alojado na comodidade das verdades

absolutas". Ouço na revelação bíblica o convite para

perseguir o

infinito, lá onde nunca se perde o espanto. Portanto, não

evitarei

maravilhar-me diante do Mistério, único jeito para ser livre.

Soli Deo Gloria.