O poder de Deus

O PODER DE DEUS

Eu não me envergonho do evangelho,

porque é o poder de Deus para a salvação

de todo aquele que crê (Rm 1,16).

As antigas narrativas sobre a força divina são impressionantes. No Antigo Testamento, a imagem do fogo era o símbolo da presença e do poder de Deus, tanto no auxílio do povo de Deus quanto na punição dos transgressores. Em Ex 13,21 lemos que o fogo ia à frente do povo, na travessia do deserto, apontando o caminho a ser percorrido. Hoje se pode afirmar que são sinais de poder de Deus: a) sua Palavra (Jr 23,29); b) seu Espírito (At 2,3) c) a criação e suas obras. São esses sinais que revelam poder de criar, consumir, destruir e modificar. Na antiguidade, os Patriarcas do Antigo Testamento erigiam altares, em geral de pedra, para que, sobre eles, se manifestasse o poder e a glória de Deus. No altar era derramado o Espírito de Deus em forma de fogo. Era a base da fé do povo. A vida cristã se torna um altar quando preparamos um lugar para o Senhor penetrar em nossos corações e assim dirigir nossas vidas pelo caminho do bem.

Toquem a trombeta em Sião; dêem o alarme no meu santo

monte. Tremam todos os moradores do país, pois o Dia de

Javé está chegando e já está perto. Será dia de trevas e

escuridão, dia de nuvens e de negrume. Como o escurecer,

estende-se sobre os montes um povo numeroso e forte; nunca

houve povo igual a esse e nunca mais haverá por muitas

gerações. Diante dele vai um fogo que devora; atrás dele uma

chama que incendeia. Diante dele a terra é um jardim do

paraíso; atrás dele é um deserto arrasado. Nada se salva (Jl

2,1-3).

No tocante ao poder de Deus, observa-se que desde a mais remota antiguidade ele sempre escolheu locais, como que altares, para manifestar a sua glória e à sua majestade. Há alguns pré-requisitos, certos procedimentos para que Deus venha ao nosso altar:

1. Não basta ter um altar/vida; o crente deve estar preparado

(cf. 1Rs18,1); como está o altar da nossa vida? Está

preparado para receber o fogo do poder de Deus? Ou, quem

sabe, falta limpeza ou restauração? Alguns querem

esse “fogo” depois de uma hora de missa, culto, ou três dias

de retiro? E a metánoia (mudança de vida)? Se não

mudarmos, se não nos convertermos, o fogo de Deus

certamente não fará morada em nós!

2. O que se coloca sobre o altar? Devemos expor sacrifícios

voluntários (Lv 1,3) que exprimam nossos desejos de

conversão:

• oferta queimada

entrega total (cf. 1Ts 5,23) – toda a vida, bens,

ideais – a gente quer o poder de Deus, mas não

entrega tudo (animal inteiro e não apenas alguns

pedaços);

• cereais e manjares Lv 2

com sal (sabor e fidelidade) e sem fermento (mistura,

falsidade, usura) 2Cor 6,14-18; Mt 6,24;

• ofertas pacíficas – Lv 3

metade para Deus – gratidão pela bênção; renovar a

comunhão com Deus;

a outra metade para comer – refeição com amigos

(sentido de comunhão familiar). Cabe perguntar: como

está a nosso ágape, a comunhão fraterna?

(At 2,3; 4,31).

Não poderemos ter um correto conceito de Deus, se não pensarmos nele como onipotente, enfim, o Todo-poderoso que tudo pode e que de tudo é capaz. O salmista não cansou de proclamar que “o poder pertence a Deus” (Sl 62,11) para todo o sempre. A expressão “livra-nos” (no grego rissai) que encontramos na oração do Pai-Nosso sugere a necessidade de se invocar o poder de Deus nos perigos da vida. “O espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26,41); mas Deus “é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós” (Ef 3,20). Poder (os gregos falam em exousia) é usado também como um nome de Deus. São sinônimos. "... o Filho do homem assentado à direita do poder de Deus, e vindo sobre as nuvens do céu". (cf. Mc14:62), isto é, à direita de Deus. Deus e poder são tão inseparáveis que são juízos recíprocos e convergentes. Há que identificar o poder de Deus na criação, na preservação e no governo do mundo.

O poder de Deus é tão significativo que é capaz de nos salvar e resgatar nas piores circunstâncias da vida sejam morais, pessoais, afetivas, espirituais e financeiras. Sobre isto São Paulo afirmou “é quando estou fraco que aí me torno forte...”, pelo poder de Deus. Nas situações de pecado também se manifesta o poder de Deus que, em Cristo venceu o diabo e a morte. Na carta de São Paulo aos efésios o apóstolo debate vários assuntos, entre eles a soberania divina, o poder na redenção, a maturidade espiritual, etc. Na mesma carta ele se refere à “armadura de Deus” como um ajutório onde os cristãos vão buscar auxílio contra as ciladas do diabo (cf. Ef 6). Esse poder é infinitamente superior a tudo quanto possamos imaginar ou desejar (cf. Ef 3,20). Assim, quando São Paulo recomenda que nos fortaleçamos no poder do Senhor (cf. Fl 4,13) ele recomenda que tomemos posse de tudo que já recebemos através de Cristo. É o apóstolo que ensina que “se Deus está a nosso favor, quem será contra nós?” (Rm 8,31). Quem se atreverá a enfrentar o poder de Deus? Para fazer parte desse poder urge que se combata o bom combate e se guarde a fé (cf. 2Tm 4,7) tomando o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus (cf. Ef 6,17).

O poder de Deus não existe apenas para os fracos, para os vulneráveis, para os dependentes ou para os viciados. Todos nós somos fracos, de uma forma ou de outra. A força que aparentamos é apenas a máscara da fraqueza que queremos encobrir de nós mesmos e dos outros. Todos nós existimos pelo poder Deus. Tudo o que existe veio à existência pelo poder de Deus. E é por esse mesmo poder que continuamos a respirar a cada dia, nos movimentando nesta vida, correndo atrás de nossos projetos.. Em todas as culturas e em todos os sistemas religiosos, o poder é um atributo essencial da divindade. A fé cristã, por exemplo, se fundamenta através de um auto-de-fé, o primeiro artigo da revelação bíblica: “Creio em Deus-Pai, Todo-poderoso, criador do céu e da terra...”. Esta fórmula indica três aspectos da onipotência de Deus: ela é universal: Deus criou tudo (cf. Gn 1,1; Jo 1,3); é amorosa, pois Deus é o Pai que está nos céus (cf. Mt 6,9); misteriosa, já que só a fé pode distingui-la em suas manifestações, por vezes desconcertantes, e abrir-se à sua ação salvadora (cf. 1Cor 1,18; 2Cor 12,9s). A manifestação de Deus se desdobra no decorrer de toda a história da salvação.

É sabido, e quem tem fé não duvida que Deus manifesta seu poder através de suas intervenções no decorrer da história humana. Nos relatos referentes à vida dos patriarcas, esse poder se revela com soberania: a Deus nada é impossível (cf. Gn 18,14). Em todo tempo e lugar ele pode fazer o bem aos seus eleitos. protegendo-os e agindo em favor deles. Foi com esse Deus Todo-poderoso que Jacó teve que lutar . No final da luta, Deus o abençoa e lhe impõe o nome de “Israel” (cf. Gn 32,27-30), nome de que o povo eleito será portador, como um sinal de aliança. A partir dali a força de Israel estaria na invocação e no socorro de Deus que ele escolheu (cf. Sl 20,2.8ss; 44,5-9; 124,8). É esse Deus Todo-poderoso, por sua mão forte (Ex 3,19) e seu braço estendido (cf. Dt 4,34) que iria libertar o povo no episódio do Êxodo. É, a partir daí que Javé, o Deus de Israel se revela como o único Todo-poderoso no céu e na terra (cf. Dt 4,32-38). Ora, se o Deus de Israel é Todo-poderoso no céu e na terra, é porque ele é criador de todas as coisas visíveis e invisíveis (cf. Gn 3,24); nada, portanto lhe é impossível (cf. Jr 32,17) e ele dispõe de sua obra como lhe apraz (cf. Jr 27,5), criação que perdura por todo o sempre, realizada pelo poder de sua palavra e de seu sopro (cf. Sl 33,6.9).

Procurem Javé e seu poder e busquem sempre a sua face

(Sl 105,4).

Abraão teve confiança e fé no poder de Deus, e por isso lhe foi concedido ser o pai da multidão dos crentes (cf. Gn 22,16ss). É igualmente o caso de Judite, por cuja mão o Todo-poderoso revela seu senhoria (cf. Jt 9,12s), porque ela deu a Israel o exemplo de uma confiança e de uma submissão incondicional. Como deixar de confiar naquele cuja palavra tudo pode? (cf. Est 4,17; Sb 18,15). Esse poder é infinitamente sábio na sua obra de criação, controle e governo do mundo (cf. Sb 8,1). O crente, aquele que realmente tem fé, se converte em adorador e colaborador do Todo-poderoso, do qual ele não é apenas criatura, mas também imagem (cf. Gn 1,26ss). Apesar disto, desde o princípio as potências do mal escravizaram o homem, predispondo-o à ruptura com o seu criador. O começo do Livro do Gênesis desnuda os efeitos do desejo de poder que fez (e faz) o homem se levantar contra Deus. O pecado de Babel, contido naquele estágio mitológico do Antigo Testamento, é da mesma natureza do pecado de Adão: os homens pretendiam atingir o céu prescindindo do poder de Deus. Na continuidade, aqueles que desconhecem o Todo-poderoso que os criou, adoram deuses que eles mesmos criaram e que não resolvem nada e são incapazes de solucionar as questões mais elementares da vida humana. Perfilados ao poder de Deus, os profetas como modelo da fidelidade bíblica não cansaram de denunciar e zombar dos ídolos e sua impotência (cf. Is 44,17; Jr 10,3ss).

A história do êxodo (cf. Ex 13,3) relata como o Todo-poderoso liberta o povo hebreu, libertando-o das garras do imperialismo do faraó do Egito. Essa libertação é tipo de todas as outras, guardada permanentemente na lembrança do povo hebreu (e também dos cristãos) como demonstração do poder de Deus. A partir do Novo Testamento o poder de Deus se manifesta também em Jesus e no Espírito Santo. Nas Igrejas bizantinas da Ásia (Grécia, Turquia e bloco eslavo) é comum se ver as clássicas representações de Jesus, em ícones e afrescos, como “pantokrator” (Todo-poderoso). Os dons que manifestam o poder de Deus “são capacidades extraordinárias concedidas pelo Senhor à sua Igreja” para que esta aja sobrenaturalmente na proclamação do Evangelho. São também chamados dons de ação, pois operam na área física, material. Os dons que fazem parte desse grupo são a fé, a capacidade de realizar milagres e os dons de curar.

Quando o Filho do homem vier em glória e poder sobre as

nuvens... (Mt 26,64)

Todo o poder me foi dado... (Mt 28,19).

Longe de usar o poder para sua própria glória, Jesus – para fugir de um messianismo temporal – prefere que toda a glória seja concedida ao Pai. Essa humildade é a fonte da exousia de Jesus, em que ele demonstra seu poder ao curar doentes, expulsar demônios, perdoar pecados e restituir vida aos mortos. Afirma também seu poder em dar e tomar a vida (cf. Jo 10,10.18). É com o poder de Deus que Jesus é elevado para atrair todos a ele (cf. Jo 8,28) e destronar as potências do mal (cf. Cl 2,15). É por isso que

Deus o exaltou grandemente, e lhe deu o Nome que está acima

de qualquer outro nome; para que, ao nome de Jesus, se dobre

todo joelho no céu, na terra e sob a terra; e toda língua

confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai

(Fl 2,9ss).

O poder do Espírito Santo se manifesta naqueles que crêem no Filho, a partir da encarnação (cf. Lc 1,27.48s) quando o logos divino se faz carne. A encarnação é obra do Altíssimo, a cujo poder nada é impossível (cf. Mt 1,20). Na Igreja nascente, é o poder do Alto que vai revestir o grupo dos discípulos, capacitando-os para a tarefa de se tornarem “testemunhas” do Ressuscitado, até os confins da terra (cf. At 1,8). O poder do Espírito derramado a partir de Pentecostes (cf. At 2,4) é o dom que Cristo ressuscitado confere à sua Igreja, manifestando seu poder de Salvador (2, 32-36). No discurso escatológico, os evangelistas falam da parusia, a vinda definitiva de Jesus, em poder e glória, para, entre sinais fantásticos, reunir a todos para a etapa final.

Naqueles dias, depois da tribulação, o sol vai ficar escuro, a lua

não brilhará mais, as estrelas começarão a cair do céu, e os

poderes do espaço ficarão abalados. Então, eles verão o Filho

do Homem vindo sobre as nuvens com grande poder e glória. Ele

enviará os anjos dos quatro cantos da terra, e reunirá as

pessoas que Deus escolheu, do extremo da terra ao extremo do

céu (Mc 13,24-27).

No Apocalipse se vê o coro dos eleitos cantando louvores ao Deus Todo-poderoso, cujo trono é partilhado com o Cordeiro e que irá fazer novas todas as coisas (cf. 21,1.5). Ora, só quem tem um poder sem limites, quem é Todo-poderoso é capaz de renovar tudo, como o faz, de uma maneira admirável, o nosso Deus, Uno e Trino. A ele a glória e o poder para sempre (Ap 1,5s). No terreno da nossa humanidade, o maior atestado de poder reside, não em dominar ou oprimir os outros, mas em nos colocarmos a serviço. O próprio Jesus ensinou que Grande é quem serve!

Reflexão de abertura em um encontro de jovens evangelizadores, em Recife (PE), março de 2011. O autor é Filósofo, Biblista, Doutor em Teologia Moral e pregador de retiros de espiritualidade.