A graça de Deus - Carta 057

A GRAÇA DE DEUS

Nós vivemos em uma era bastante conturbada de nossa civilização, onde verdade e mentira se sucedem e confundem, como fruto do mal, do Maligno, do mau uso das ciências e das religiões (aí englobadas as tradicionais, as seitas, os cultos pagãos, etc.). Lamentavelmente, os mass media ao invés de ajudar, só atrapalham, semeando confusão, discórdia e sectarismo.

Também inflete negativamente sobre o bem-estar da humanidade, o materialismo desregrado, a posse dos bens e das estruturas de domínio, indo tudo desembocar em violência, desamor, ódio, guerras, perda dos referenciais éticos e das normas mais elementares de convívio e paz. Surgem-nos, insistentemente, duas questões prioritárias: diante de tanta mentira, como agradar ao Deus-Verdade? Como viver na sua amizade?

As contingências da vida atual colocaram preço em tudo. Assim, as pessoas estão cobrando pelo amor, taxando a virtude, estipulando condições à ética, utilizando conceitos morais como moeda de troca, em incríveis e inverossímeis barganhas. Isso sem contar na relativização da fé. Nada mais se dá “de graça”, tudo é cobrado. Há tempos, escutei um humorista falar que a única coisa que ainda se ganhava de graça era o ar, assim mesmo tinha que ser devolvido em seguida. A grande verdade é que a gratuidade, a benevolência, o serviço desinteressado, são coisas que praticamente foram banidas de nosso modelo social.

Já ouvi um político, que se dizia cristão, dizer, para exemplificar que não dava “colher de chá” a ninguém, que “maná só no deserto”. Já pensaram se Deus cobrasse pelo maná que gratuitamente deu ao povo faminto? Outro, um religioso da alta hierarquia eclesial, para explicitar que as coisas com ele não tinham facilidade, afirmou que “eu sou como mandacaru: não dou sombra nem encosto”. O mandacaru, como todos sabem, é uma planta, tipo cactos, das regiões áridas, fina, alta e cheia de espinhos. O fato é que ninguém dá nada de graça. Todos esperam sempre a contrapartida. Ou, ganhar mais do que costumam dar. No nosso modelo de sociedade, as pessoas sempre buscam levar vantagem em tudo.

Bem antes da teologia cristã, os sábios judeus já procuravam elaborar formulações referentes àquela amizade que Deus lhes oferecia, de certo modo ainda obscurecida pela “teologia do medo”, em que as autoridades religiosas, na busca de poder sobre os crentes, pintavam a divindade com cores assustadoras, para exprimir que só elas tinham o poder da mediação, capaz de “amansar” a fúria de Deus. Mesmo assim, muitos chegaram à conclusão que Deus era gratuidade, misericórdia e fidelidade permanente (cf. Ex 34, 6). Sua ação passou a ser vista, especialmente através da produção profética, como pastor (cf. Jr 31, 10), pai (cf. Is 63, 16) e até mãe (cf. Os 11, 1-4).

Também é dito que Deus dá (idéia de dom, coisa gratuita), a terra (cf. Gn 12, 7), os frutos (1, 11), a força (cf. Dt 8, 18), o entendimento (cf. Sl 119, 34) e a vitória (cf. Sl 144, 10). Essa ação dadivosa de Deus é cantada pelo salmista, num gesto de louvor, em um “cântico novo” (cf. Sl 98, 1). O grande dom (seu Espírito) é anunciado por Ezequiel como uma transformação que o Senhor haverá de derramar (cf. Sl 73, 21-28; Ez 36, 22-32; 37, 1-15; Jl 3, 1 – 4, 2).

Para os cristãos, a palavra graça significa algo semelhante a dom, presente, oferta gratuita e generosa que o Pai, pelo Filho, dá à humanidade. Nesse aspecto, a Graça divina atinge sua plenitude em Jesus (cf. Rm 8, 32). Conhecer essa relação é saber como Deus age e, necessariamente, conhecê-lo (cf. Tt 2, 11). São Paulo ensina que todos os dons colocados por Deus à disposição da humanidade, são gratuitos, e assim sendo, graças (cf. Rm 12, 6). O homem é livre, como diz o apóstolo, para responder à Graça, acolhendo o dom de Deus, obedientemente (cf. Rm 15, 15; 2Cor 4, 1). O crente que recebe a graça, se conscientiza que o Pai o fez graça, e deste modo “rende graças” ao Deus da vida (cf. Cl 3, 13; 1Cor 1, 4-7; 2Cor 4, 15). Paulo se torna apóstolo, chamado pela “graça de Deus”, para anunciar o Filho aos gentios (cf. Gl 1, 15s).

Foi através de S. Paulo que entrou no Novo Testamento a palavra graça (cháris) como veículo articulador da novidade cristã. No corpus paulinum ela ocorre centenas de vezes nos mais variados sentidos: benevolência (2Cor 8, 1), amabilidade (Cl 4, 6), dom (Rm 12, 6; Ef 4, 7), ação de graças (1Cor 10, 30) etc. A idéia do apóstolo é abrangente, mas sempre se concentrando em um significado fundamental: o dom do Pai em Jesus Cristo, cujo amor gratuito e misericordioso penetram o homem, salvando-o, libertando-o de sua perdição e transformando-o em uma nova criatura (2Cor 5, 17; Gl 6, 15).

Na reflexão sobre a graça esta concernida a descoberta do dom de Deus. Na iniciativa da criação, Deus-Pai revela-se como o grande doador. A vida, os alimentos, a natureza, tudo é dom gratuito do Criador. Nesse particular, criação, vida e salvação são juízos convergentes e práticas integrantes do projeto amoroso do Pai, que preparou todos os passos da nossa salvação. Na raiz de todo dom, as Sagradas Escrituras ensinam a reconhecer uma iniciativa divina:

Todo dom de valor... desce do Pai das luzes (Tg 1, 17).

Nesse contexto, ao homem impõe-se um abrir-se a esse dom de Deus (cf. Mc 10, 15). Recebendo os dons divinos, o ser humano se torna capaz de uma generosidade autêntica, uma verdadeira caridade. Iluminado pela graça de Deus, o homem é chamado a colocar esses dons em ação, em prática (cf. 1Jo 3, 16ss). Sobre a busca dos dons, São Paulo nos diz:

Aspirem aos dons mais altos. Aliás, vou indicar a vocês um caminho que ultrapassa todos (1Cor 12, 31).

O capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios, que trata do amor, é aberto com o último versículo (v. 31) do capítulo 12. Nesse capítulo podemos identificar dois tipos de dons: os edificantes, que glorificam diretamente a Deus e os que podem glorificá-lo mediante a ação do homem, como falar em línguas, fazer milagres, curar e partilhar. São Paulo começa a falar em dons no capítulo 12 e vai até o 14. No 13, entretanto, ele centra, no amor, a excelência do dom de Deus, afirmando, após cada realidade humana: “ ...se eu não tiver o dom do amor, isso de nada me adianta... (cf. 1Cor 13, 1-13).

Se a descoberta dos dons ocorre a partir da encarnação de Jesus, podemos ver que o Antigo Testamento é mais um tempo de promessa do que de dom. No decorrer de todo o Pentateuco ressoou a promessa de Javé a Abraão:

Darei esta terra, desde o rio do Egito até o Eufrates, à sua descendência (Gn 15, 18).

Essa promessa de um dom, grande e futuro, tem caráter de uma aliança perene. Na verdade, não era uma terra de alguns quilômetros quadrados que Deus estava prometendo à posteridade de Abraão, mas algo mais. A promessa abrangia a chamada “terra prometida”, que serviria, por alguns séculos, de morada para o povo hebreu, egresso da escravidão no Egito. Essa ocupação de uma terra abençoada, onde brota leite e mel (cf. Ex 3, 8), é uma prefigura ao dom maior que é o Reino dos Céus, onde não haverá mais nenhuma contrariedade (cf. Ap 21).

Sucessivamente, Deus vai enriquecendo seu povo com significativos dons, como, por exemplo, a Lei (Dt 5, 22). No entanto, a lei só terá eficácia se for compreendida e vivida por corações novos. Num coração mau, de pedra, a lei de Deus perde seu significado (cf. Ne 9, 13.26). Para Israel é imprescindível a transformação do coração (a conversão) de pedra em coração de carne (cf. Ez 36, 26ss). Para esse dom futuro, Deus vai mandar seu filho. Com a encarnação os tempos ficam completos (cf. Mc 1, 15).

Os antigos dons do AT, como o pão do céu que contém todo o sabor (Sb 16, 20), a água do rochedo ( Nm 20, 11; Sl 105, 41), a visão do alto que cura (Nm 21, 8), são uma pálida amostra dos dons futuros, nos tempos messiânicos. Quem aceita o dom de Deus aceita, implicitamente, fazer aliança com ele. Estabelecer aliança subentende bondade e partilha de dons, excluindo atitudes hostis (cf. Gn 32, 14; Js 9, 12ss).

Em boa parte das antigas Escrituras, o dom divino é ainda compreendido de forma material, como trabalho, comida e bebida (cf. Ecl 3, 13) e riquezas e bens próprios ao sustento (5, 19). Para retribuir aqueles dons, o povo de Israel oferecia dízimos (Lv 27, 32) primícias (Ex 34, 26) e sacrifícios (Lv 1, 1-17) a Javé. Essas ofertas eram uma retribuição pelos dons recebidos e também um pedido de desculpas pelas infidelidades cometidas contra a Aliança.

A hesêd hebraica nada mais é que uma misericórdia humana, recíproca e discernida baseada na riqueza incalculável dos dons de Deus. O cristianismo é que vai trazer a compreensão mais aprofundada a respeito da graça e dos dons que Deus, generosa e gratuitamente, dá.

À medida que o homem vai aprofundando sua amizade com Deus, e penetrando em seu conhecimento, vai descobrindo os dons, que ele possui, que os outros possuem e os que Deus pode ainda dar. É verdadeira a afirmação de que não possuímos todos os dons. Vivendo em comunidade, somamos os que temos e os empregamos em favor de todos.

No latim, dom é donum, o mesmo que presente. Por isso, quando se fala em dom, a primeira idéia que nos vem à cabeça é o de sua gratuidade. Sobre isso, encontramos em São Paulo um texto bem revelador:

Se, de lado, a morte é o salário do pecado, o dom gratuito de Deus é a vida eterna, em Jesus Cristo, Nosso Senhor (Rm 6, 23).

Nesse aspecto, observa-se que é possível classificar os dons em naturais e sobrenaturais. Os dons naturais São aqueles que fazem parte da vida, como a percepção, a tendência para essa ou aquela atividade, por exemplo a música, a sensibilidade, a capacidade de harmonizar, etc. Os sobrenaturais, além daqueles teologais, cujo objeto é Deus, impressos no batismo, como fé, esperança e caridade, são as chamadas obras do Espírito, como amor, alegria, paz, paciência, bondade, benevolência, mansidão e domínio de si (cf. Gl 5, 22s), a que o platonismo havia chamado de virtudes cardeais. A virtude, tanto na concepção estóica como aristotélica, é uma ação humana orientada pela razão.

É certo que Deus concede a todos a graça necessária para a salvação de cada um, porque “quer que todos se salvem” (1Tm 2,4). Os que se condenam, condenam-se porque não corresponderam às graças que Deus lhes deu.

Crescimento é um sinal de vitalidade. Também a graça – que é vida sobrenatural – pede o crescimento. É preciso, pois, colocar todos os meios para desenvolvê-la: a oração, os sacramentos e as boas obras feitas por amor. Particularmente, ao receber os sacramentos podemos crescer na graça, porque eles são sinais eficazes e sensíveis da graça, e neles começa, se desenvolve ou se recupera quando foi perdida, a graça de Cristo.

O mais precioso que temos na terra é a graça de Deus. O mais importante para nós será viver como filhos de Deus; e o pior e mais terrível que poderá acontecer será o pecado, ou seja, o separar-se de Deus, morrer sem a sua graça, perder-se eternamente.

Há quem confunda virtude com dom. As virtudes, e o exemplo são as morais, podem ser desenvolvidas e adquiridas. Os dons, mesmo os naturais, como a aptidão para a música, esses nascem com o indivíduo. É um engano afirmar que dons (ou virtudes) naturais, podem ser aprendidos. Quando se escuta, por exemplo, um virtuose no violino, geralmente se diz: “Esse possui um dom de Deus...”.

Os céticos e racionalistas, aproveitam para redarguir, “... pudera, depois de dez anos de aprendizado num conservatório...”. Esquecem-se esses que, muita gente tem esses dons naturais até mesmo sem estudo, e que outros, mesmo com cem anos de aula jamais tocariam um décimo do virtuose. O dom é natural, mas característico de cada pessoa. É dom, ela nasce com ele, ganhou aquela virtude sem nenhuma interferência humana.

No terreno sobrenatural, o dom maior que Deus dá aos homens é seu filho Jesus Cristo, que se torna caminho de salvação. Em paralelo com esse inestimável presente, há outros dons adjutórios, capazes de auxiliar a quem está a caminho de usufruir o dom maior. Os dons sobrenaturais se perfilam no terreno da graça.

Não é de admirar que muitos cristãos tenham algumas dúvidas a respeito da graças e dos dons de Deus. Primeiro, porque há poucos livros de teologia que falem especificamente desse assunto. Há publicações sobre os “sete dons do Espírito Santo”, editados por grupos carismáticos ou pentecostais, tudo numa linha devocional, sem aprofundar; com pouca extensão teológica. Igualmente as enciclopédias de teologia pouco se estendem em relação ao assunto. As edições católicas da Bíblia, tão afeitas a apresentar “glossários” ou “vocabulários” pecam, a maioria delas por não apresentar nenhuma linha sobre o fascinante e obscuro assunto graça e dons de Deus.

Deste modo, a descoberta dos dons, muitas vezes por falta de um conhecimento teológico, ou da falta de um acompanhamento comunitário e pastoral, deixa aturdida a pessoa, que, sem saber como desenvolver e colocar em ação seus carismas, angustia-se para, posteriormente, enterrar esses dons. O ciúme, a inveja e o medo de perder certas posições, falhas nitidamente humanas e usuais em muitas comunidades, têm, igualmente, dificultado a frutificação de dons, bloqueando, em alguns casos, a própria ação de Deus.

Quem não compreende a gratuidade da ação doadora de Deus, ou, quem sabe movido por inveja, pode afirmar que, dando mais para uns e menos para outros, Deus poderia estar cometendo uma injustiça. É preciso ter cuidado quanto a isso. Mais adiante, por sua importância, voltarei ao assunto.

É sempre bom lembrar, com referência à graça e aos dons, que o próprio Deus começa a se revelar e , ao mesmo tempo, revelando o homem a si mesmo. Por aí começa o mistério do sobrenatural atuando na vida humana e na comunidade.

Afinal, e vocês devem estar se perguntando, graça o que é? Em geral, quando falo por aí, seja em sala de aula, igrejas, auditórios ou palestras sobre graça, há um certo desconforto entre os ouvintes, pois as pessoas, em geral, desconhecem o sentido mais puro do conceito teológico da expressão. Em primeiro lugar, acho que cabe recordar, primeiramente, alguma coisa que se ganha “de graça”, grátis, gratuitamente. Como exultamos quando nos dão algo assim.

Ora, se podemos entender em definir algo que se ganha “de graça”, já temos meio caminho andado para a compreensão da Graça de Deus. Desta forma, podemos dizer, preliminarmente, que Graça é Deus que vem, generosa e gratuitamente, ao nosso encontro, oferecendo sua amizade e seu amor. Na relação das origens, no hebraico vamos encontrar o verbete hesêd que significa misericórdia, graça.

No grego, cháris, tem o mesmo sentido, ou seja, dom, presente gratuito, sobrenatural. Do cháris, é que nos chega, por derivação, a palavra carisma, que nada mais é que uma força ou capacidade atribuída a uma pessoa, para o cumprimento de uma determinada tarefa. No latim, que dá origem à nossa Língua Portuguesa, vamos encontrar donum e gratia que se referem a um presente, um dom. Culturalmente, não se pode afirmar que o verbete cháris seja uma palavra cunhada no mais estrito sentido religioso ou mesmo sobrenatural.

O filósofo grego Aristóteles definiu a cháris como abundância, liberdade, gratuidade. No grego chára, alegria, tem a mesma raiz. Já não é o que se pode dizer da hesêd hebraica, que caracteriza essencialmente a misericórdia e a indulgência de Deus. A Graça traduz a experiência religiosa mais original que o ser humano pode realizar, ou seja, um Deus que o ama e vem ao seu encontro com as mãos cheias de presentes valiosos. A Graça nos revela no mistério da salvação, o amor que Deus tem por nós, desde o princípio, afinal, é bom não esquecer que Ele nos amou primeiro... (1Jo 4, 19). Pelo mistério da Graça, Deus vem ao nosso encontro, já dissemos, e nunca é demais repetir, e nós vamos ao encontro dele, aderimos à sua generosa oferta de amor paterno, pela fé. A fé é a nossa resposta aos dons de Deus. A Graça é a parte vital do projeto divino e revela:

a) o amor de Deus pela humanidade

A criação é o primeiro gesto de amor do Pai. Ele nos criou por amor e para o amor. Depois da queda da humanidade no pecado, observa-se os primeiros traços do projeto de salvação, através da “promessa de inimizade” (cf. Gn 3, 15) e da figura dos “anjos à porta do paraíso”, guardando-o para a volta do homem (cf. v. 24). Posteriormente, na vocação de Abraão (cf. Gn 12) começa a se delinear o “povo escolhido”, núcleo central de onde virá o resgate. Na plenitude dos tempos (cf. Gl 4, 4), Deus se encarna em uma virgem (cf. Mt 1, 18; Is 7, 14) para realizar a redenção do homem destroçado pela des-graça do pecado (cf. Jo 3, 16), estabelecendo com ele uma comunhão perene (cf. Mt 28, 20).

b) presença de Deus no meio do povo

Além da Encarnação e do “todos os dias” vistos no tópico acima, Deus se faz presença Trinitária no coração daquele que, porque crê, aceita sua amizade: “nós viremos e faremos nele morada” (Jo 14, 23). Nesse processo, Jesus se doa como alimento e vida, tornando-se “Pão que desceu dos céus” (cf. Jo 6, 50), capaz de conceder a Graça da vida eterna.

Além disto, pela Graça somos divinizados, isto é, tornamo-nos participantes da natureza de Deus, e essa participação, essa dádiva de amor resulta para nós algumas conseqüências (que se convertem em compromisso), e se tornam chave-de-compreensão da teologia da Graça. É, portanto, pela Graça que nos tornamos

• filhos de Deus

• irmãos de Jesus Cristo

• templos do Espírito Santo

• herdeiros e cidadãos do Reino

• irmãos uns dos outros

• membros da Igreja

• destinatários das promessas do Senhor.

Nesse particular, máxime por seu relevante aspecto de doação gratuita, Graça quer dizer, básica e originariamente, a benevolência do superior para com o inferior. Trata-se de um gesto de bondade de quem está por cima, e olha o outro de forma amável, aberta, de quem quer bem e nutre simpatia por ele. Na Bíblia, Ester “encontrou graça” diante dos olhos do rei Assuero (cf. Est 8, 5), assim como Maria, foi chamada de “cheia de Graça” perante Deus (cf. Lc 1, 30). Ao ser criado pelo Amor e para o amor, o ser humano também é “cheio de graça”. É pena que muita gente desconheça essa particularidade teológica de sua construção e acabe vivendo uma vida sem sentido.

No mistério da Graça Deus se volta amorosamente na direção de todos. Não se trata de uma re-ação. Deus não ama o homem porque ele é bom, ou cheio de méritos, mas porque ele é Pai, rico em misericórdia (cf. Ef 2, 4), doador de todos os dons. Deus derrama graças, dons e bênçãos sobre todos, justos e injustos, bons e maus (cf. Lc 6, 34).

A Graça divina, vale lembrar, é o amor de Deus, que gratuitamente se derrama sobre a humanidade, representada tipicamente pela salvação, pela amizade fiel com que ele nos distingue e, por fim, pela posse final do Reino dos céus. Mais do que justiça, Graça é bondade.

Com efeito, ressalta-se como primordial tarefa da teologia, não só falar sobre a Graça como também – e principalmente – deixar a Graça falar, pois Deus nos fala através de tantos meios e sinais, basta fazer uma parada para escutá-lo, e assim nos tornarmos agraciados, encontrando o Absoluto não mais nas incertezas, mas iluminados pela fé, na esperança concreta de uma vida, aqui-agora e sobretudo depois, na Graça divina. A esperança histórica e o futuro que o homem espera construir, se entende como uma preparação, e realização, que antecipa o futuro, dom do Absoluto. O Reino sonhado no sono e na vigília não surge com um toque de mágica, nem se constrói sobre as ruínas dos reinos humanos. Ele culmina um processo histórico e plenifica o que o homem já construiu com a Graça de Deus.

O sitz im lebem (lugar onde se maturou o texto) da teologia neotestamentária da Graça, parece ser Mt 13, 44, onde Jesus estabelece uma alegoria, em que compara o Reino (a felicidade final) a um tesouro (Graça) escondido no campo. A figura seguinte aponta para o ato de vender tudo o que tem (desprezar os valores do mundo), para comprar o campo (entrar na Graça). A Graça é retratada, em toda a produção teológica, como um sinônimo de vida, de regeneração e resgate. Enfim, aquela “vida abundante” que Jesus veio proporcionar (cf. Jo 10, 10). De outro lado, o pecado caracteriza a des-graça, o afastamento, o distrato ao projeto de Deus, capazes de levar à morte. Fica claro que, quem rejeita a Deus (despreza sua Graça) torna-se escravo do pecado (cf. Jo 8, 34), cujo salário é – segundo São Paulo, a morte (cf. Rm 6,23).

Há que se conhecer as consequências da vida na graça. Viver na graça é estar em comunhão multidimensional, com Deus, com o próximo, conosco e com a natureza. Ora, se o objetivo humano é ser feliz, só vivendo na amizade de Deus (Graça) o homem pode encontrar essa felicidade, pois as promessas de Deus não falham e ele não faz jogo de palavras. Suas promessas são verazes e seus projetos reais e exequíveis. Viver na Graça é também a capacidade do homem abrir-se a Deus, capacidade essa de se relacionar com o Infinito nas quatro dimensões (Deus-Outro-Eu-Cosmo) aludidas. O discurso fraterno de São Francisco de Assis, no qual ele se reporta ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão lobo, aos irmãos da pobreza e à irmã morte, abrange essas várias dimensões.

Na plenitude dos tempos (num kairós, um tempo oportuno), Jesus, por obra da Graça de Deus, se encarna no seio da Virgem Maria, para libertar e salvar a humanidade, sujeita à lei que escraviza e ao pecado que exclui (Gl 4,4). Deste modo, se pode afirmar que vida na Graça é união a Jesus e desprezo ao pecado, comunhão com o outro e rejeição ao egoísmo. A mais notável consequência de se viver na Graça é a comunhão, que nos conduz aos braços do Pai, no convívio dos irmãos, no seio da Igreja-comunidade. Em comunhão com Jesus, formamos um só corpo, por meio do qual fomos salvos. É preciso uma exata consciência da abrangência do mistério da Graça, algo tão simples e ao mesmo tempo tão complexo, colocado a nosso dispor.

A vida na Graça (koinonia, comunhão) torna o homem feliz aqui, nesta vida. Esta forma de vida sobrenatural (a vida na Graça que se torna um hábito em nós) conduz o homem a caminho da felicidade futura. Vida na Graça se prova, se constata por uma radical conversão à justiça e ao amor. A vida na Graça, que vivemos enquanto estamos na carne, é um desafio à nossa propensão de ruptura, acomodação e egoísmo. Sempre carece uma ponderável vigilância. Assim como o Cristo ressuscitou, também aquele que vive na Graça de Deus é uma criatura nova (cf. Rm 6, 4), pois a conversão será falsa se não representar mudança, transformação e amor de verdade a Deus e ao outro (cf. Jo 14, 35s; 1Jo 4, 20). Quem vive na Graça tem a missão, o desafio e o dever de testemunhar essa páscoa do Senhor Jesus por sua vida:

Ninguém acende uma lâmpada para colocá-la debaixo de uma mesa, e sim num candeeiro, onde ela brilhe para todos os que estão na casa (Mt 5, 15).

É indiscutível que a Graça, por ser sobrenatural, se mantém escondida, invisível (Jesus comparou-a a “um tesouro escondido no campo”). Não é possível a ninguém enxergar a Graça, apontá-la aqui ou acolá, nesse ou naquele ambiente. Entretanto, seus efeitos evangélicos, pastorais e de comunhão precisam ser testemunhados, para que se tornem visíveis, e uma vez vistos, gerem louvores ao Pai que está nos céus (cf. Mt 5, 16).

Por que o homem precisa da graça? Primeiro, porque, conforme afirma Santo Agostinho, dentro de nosso coração mora “um santo e um bandido...”, ou seja, em todo o homem há um pouco de Adão e um pouco de Cristo. A realidade do ser humano, vivida nessa dualidade de luzes e sombras, o faz experimentar momentos de glória e de rebaixamento, quando ele é a-graciado agora e logo em seguida, daqui a pouco se torna des-graçado pela influência do pecado. A instabilidade humana favorece esse dualismo, essa incoerência, esses contrastes.

Em segundo lugar, por sabermos que a vida humana, enquanto vivemos nessa finitude do barro de Adão, é abertura e fechamento, luz e sombra, graça e pecado. Precisamos nos convencer que, por melhor que seja nosso projeto humano, ele sempre estará sujeito ao fracasso, por oriundo da miséria que o pecado e as “obras da carne” (cf. Gl 5,19ss) provocam. Fomos criados para as coisas do Alto, mas infelizmente temos uma tendência, uma inclinação para os valores inferiores. Consciente de toda a nossa limitação e a dificuldade de chegarmos ao esplendor da Graça divina, Jesus alertou:

Vocês não poderão dar frutos se não permanecerem unidos a mim (Jo 15, 4).

Em oposição ao “viver a Graça” surge o “perder a Graça”. Será que é possível a perda da Graça? Sim, é possível! É possível porque, dotado de liberdade (que também é um dom de Deus), o homem é essencialmente, assustadoramente livre, dono de seu nariz e capaz de qualquer tipo de escolha. Até de rejeitar a oferta de Deus. Há a perda da Graça, sim, se for proveniente de um ato consciente, consentido. Deliberado. Deus respeita a liberdade do ser humano. É como alguém que bradasse, de forma insensata: “eu não quero a Graça de Deus!”. Essa rejeição àquilo que é missão do Espírito Santo converte-se em uma grave blasfêmia.

Enquanto o homem vive, sempre lhe fica reservada uma chance de salvação. A verdade é que in statu viatoris a perda jamais é definitiva. Ele sempre poderá se arrepender e retomar seu lugar, igual àquele filho que saiu da casa do Pai (cf. Lc 15, 11-24). E depois? Um projeto de vida se distanciando do plano de Deus, que rejeita os dons, as luzes esclarecedoras do Espírito Santo, pode ser enquadrado, quem sabe, como uma blasfêmia contra o Espírito Santo. E esse pecado, sabemos, não tem perdão, nem agora nem depois (cf. Mt 12, 31). Quem rejeita o dom do Espírito de Deus, bota fora sua chance de salvação, porque despreza o sacrifício de Cristo na cruz, que morreu para nos salvar.

A perda da graça, porém, e é bom que se deixe claro, não é fruto de um único ato mau, ou de um pecado do qual esquecemos de pedir perdão, ou de alguma dúvida ou vacilação na hora da morte. A perda da graça é resultante de todo um projeto de vida afastado de Deus, ou seja, como diz São Paulo, “a obra de uma vida...” (1Cor 3, 13ss).

A graça de Deus é um conjunto de meios e providências de um Deus-amor que se desdobra em dons a favor da humanidade. A oferta de sua amizade (a graça divina) não tem limites, formas de mensurar ou temporalidade e causalidade para ocorrer, assim como é impossível que o ser humano, limitado como é, possa descrever, enunciar ou compreender na totalidade esse inefável mistério. Na verdade, a graça existe para que seja desfrutada e não para que fiquemos teorizando sobre ela. No entanto precisamos dar pistas de pesquisa aos ouvintes, e por essa razão nos permitimos, compilando alguns clássicos antigos, estabelecer – para fins essencialmente didáticos – uma divisão daquilo que é indivisível.

• Graça habitual

trata-se da realização do Plano comunitário de Deus; é a “parte” – se é possível dizer assim – que santifica o homem; também chamada de “Graça Santificante”: torna o homem justo, sábio, aberto ao Infinito, santo.

• Graça atual

são ajutórios circunstanciais da Graça; atuam em forma de uma “atualização” dos dons e carismas (efetivos ou temporários) para obter a Graça habitual (a fé, esperança, coragem, etc. são graças atuais). É como, mal comparando, juntar dinheiro e bens para iniciar um negócio (atual) para ficar rico (habitual). Há uma relação de meio e fim.

No mistério da Graça podemos constatar o amor de Deus que se encarna em Jesus, pela força do Espírito Santo, para trazer (de graça) a posse do reino dos céus. Na Graça celebramos o mistério de um Deus-amor que vem ao encontro do homem.

Resumo de um retiro de espiritualidade levado a efeito em uma Diocese do Nordeste, a um grupo de padres diocesanos, em 1999.

Antônio Mesquita Galvão é biblista, filósofo, douitor em Teologia Moral e escritor. Autor de mais de cem livros, entre eles “O dom de Deus. Um Pai que vem ao nosso encontro”. Ed. Ave-Maria, 2ª. edição, 2000.