kairós

KAIRÓS, o Mistério do Tempo de Deus

Debaixo do céu há um momento para tudo,

e um tempo para cada coisa (Ecl3,1).

Quando a gente começa a aprofundar o estudo bíblico, passa a descobrir coisas interessantes, oriundas do rico manancial que é a Palavra de Deus, tão generosamente colocada à nossa disposição. O estudo sistemático e orientado nos leva a penetrar nesses mistérios, pelo menos até onde a nossa limitada compreensão permite, e lá vamos encontrar expressivos relatos sobre a providência salvífica de nosso Deus Trino, providência essa que se nos é apresentada como uma economia de salvação, realçada pelo amor do Pai, pela graça de Jesus Cristo e pelas luzes do Espírito Santo.

A respeito do tempo controlado por Deus, a teologia cristã emprega um termo oriundo da filosofia grega, chamado mistério que aponta para algo que, por decorrente da característica divina, não é acessível à razão humana. Entre os gregos corria uma idéia de que os seres humanos viviam à mercê de um tempo imprevisto, em que os deuses fariam acontecer as coisas, boas ou ruins, de acordo com seus caprichos e humores. Este tempo, incerto na vida, que tanto atraiu as especulações dos pensadores de todos os tempos, permitiu conclusões místicas, filosóficas, esotéricas, religiosas e práticas, no sentido de entender que o homem é dono de uma parte de seu tempo, de uma fração de sua história (quem sabe uma parte menos significativa), mas não tem condições de estabelecer um domínio do tempo de sua vida como um todo.

Eu posso, por exemplo, saber quanto tempo vou levar para terminar esta pregação, ou a digitação de uma página no computador, posso prever a hora que vou parar minha atividade, almoçar e repousar, mas não posso dizer o dia em que vou ser feliz ou infeliz, a hora em que vou morrer, nem o momento em que o mundo vai terminar. Posso eu? Podem vocês? Não! As Sagradas Escrituras nos revelam que há um tempo apropriado para cada coisa e para cada circunstância da vida. Na incerteza de tempo entre o ontem e o amanhã, os filósofos têm transitado suas teorias, de certa forma impotentes, ante o insondável mistério do amanhã.

Na concreção desse tempo, Hegel († 1831) afirmou que “desconhecer os erros do passado equivale à potencialização de sua repetição no futuro”. Visitando o cemitério de La Recoletta, em Buenos Aires, li em um túmulo uma reveladora frase de um consagrado escritor argentino, J. L. Borges († 1986) que ensina que “el tiempo es favorable a quiem lo aprovecha y dañoso a quiem lo desperdicia”. Tanto Hegel como Borges, separados por mais de um século, levantam premissas relativas ao bom ou mau emprego do tempo humano, em seu aspecto cronológico e teoricamente controlável. Na mística judaica vamos descobrir a dependência do tempo humano à vontade de Deus:

Debaixo do céu há momento para tudo, e tempo certo para cada coisa: Tempo para nascer e tempo para morrer. Tempo para plantar e tempo para arrancar a planta. Tempo para matar e tempo para curar. Tempo para destruir e tempo para construir. Tempo para chorar e tempo para rir. Tempo para gemer e tempo para bailar. Tempo para atirar pedras e tempo para recolher pedras. Tempo para abraçar e tempo para se separar. Tempo para procurar e tempo para perder. Tempo para guardar e tempo para jogar fora. Tempo para rasgar e tempo para costurar. Tempo para calar e tempo para falar. Tempo para amar e tempo para odiar. Tempo para a guerra e tempo para a paz (Ecl 3,1-8).

Pois é a partir deste texto que podemos inferir no sentido de que a vida do ser humano é limitada a momentos, aos quais ele desconhece, cabendo-lhe inicialmente, aceitá-los como contingência de sua própria limitação, quando é preciso aceitar as ocorrências da vida e buscar o discernimento para entender os misteriosos eventos da existência. Nas páginas da Bíblia podemos encontrar inúmeras e seguidas referências ao tempo. Nestas construções há dois tipos de tempo: o tempo cronológico, medido e o tempo qualificado, oportuno, sem menção de cronologia. Para definir o tempo, os gregos usavam duas palavras: chrónos e kairós. Enquanto chrónos é um tempo que pode ser medido, especificado através de datas dos calendários ou horas de um relógio. Daí derivam as palavras cronologia e cronômetro. Quando surge um kairós, trata-se daquele tempo-mistério, oportuno e adequado, que só o Senhor sabe e conhece e, ao qual, nos rendemos em fiel e esperançosa expectativa.

Quando se lê “outrora vocês estavam sem Cristo, afastados da cidadania de Israel... (Ef 2,12) ou “agora, porém, com a morte que Cristo sofreu em seu corpo mortal, Deus reconciliou vocês...” (Cl 1,22) ou ainda “... na plenitude dos tempos Deus enviou seu Filho...” (Gl 4,4) toda a referência converge para um chrónos, ou seja, um tempo medido sobre o qual se pode estabelecer, embora de forma aproximada, uma certa cronologia.

Ao contrário, quando Jesus afirma “Sim, eu venho em breve...” (Ap 22,20) ele está se referindo a um evento que vai acontecer num tempo incerto, que só ele tem conhecimento. Por que Jesus só foi nascer dois mil anos após Abraão? Por que sua vida pública só durou três anos? Por que ele esteve sob o domínio da morte por três dias? Esses porquês relativos aos desígnios de Deus, e que só a ele compete estabelecer, não têm resposta, pois são um mistério. A esse mistério do tempo de Deus a teologia chama de kairós. Kairós é, portanto, o tempo de Deus, um tempo que só ele sabe e conhece.

A sabedoria popular cunhou diversas expressões cuja profundidade, com o passar dos anos, tornaram-se parte da vida humana, tal a forma inconteste com que manifestam verdades e configuram afirmações. Uma delas é “o futuro a Deus pertence...”. É tão flagrante a realidade dessa afirmação que ninguém ousa desmenti-la, até os ateus usam-na como referência ao desconhecido dos tempos vindouros. De fato, o futuro é incerto, mas Deus conhece os seus meandros. Deus sabe o dia e a hora em que tais e tais coisas vão acontecer. E esse tempo, é incerto para nós, mas para Deus é claríssimo. A ele chamamos de kairós. A vida humana está toda ela orientada em função do kairós do Senhor. Vivemos um tempo de espera, libertação e transformação. O kairós é o tempo do Senhor, de onde a cada momento tiramos sinais e lições de vida.

Tempo de espera

Todo indivíduo apressado e imediatista sempre recebe um alerta: Calma, é preciso ter paciência! Nada que se faça com pressa tem um sucesso duradouro ou logra obter alguma eficácia. As grandes caminhadas começam pelo primeiro passo; as derrubadas dos grandes matagais se iniciam pelo ato de afiar adequadamente o machado. A criação é um tempo de semeadura. Em seu ritmo vital há um tempo para a produção de frutos, para o pasto dos animais, para a migração dos pássaros, o despontar da lua e das estrelas, da colheita, do debulhe das espigas, a época da poda, etc. Como separar as fases do tempo de Deus? Para uns pode estar ocorrendo o crescimento, para outros é tempo de maturação, e alguns crêem estar às portas da colheita. Quem sabe? Deus sabe!

Na verdade, dentro desse tempo de espera, vivemos um pouco dessas fases. Sempre estamos em crescimento e, ao mesmo tempo, já maduros para a ceifa. Trata-se de uma realidade escatológica que pervade a história desde tempos imemoriais

Naquele dia, diz o Senhor, os surdos ouvirão, os cegos

enxergarão... (Is 29,18).

O kairós messiânico é confirmado a João Batista: os surdos ouvem e os cegos vêem... (cf. Mt 11,5). É o Reino dos céus que está se instaurando. Se no primeiro texto os verbos estavam no tempo futuro, no segundo estão no presente atestando que o futuro já chegou. Enquanto o naquele dia esconde um tempo indeterminado, futuro, ao dizer que os cegos vêem, está confirmado que o Reino já chegou. Os dois termos se opõem em kairós e chrónos.

Quando vão ocorrer a maturação e a colheita? Ninguém sabe! Trata-se de uma dúvida perdida no mistério do tempo do Senhor. O mistério da escatologia (o futuro) e do tempo atual (hoje) do dies domini (dia do Senhor), é um indício de que não deve ser interpretado como um dia do calendário (chrónos), mas um kairós. É preciso fé e discernimento para intuir sua essência. Esse tempo privilegiado já começou pela ressurreição de Cristo e está em andamento. Sua concreção (o tempo final) é um mistério.

Tempo de graça

A partir do tempo de Jesus a esperança se torna um fato concreto. Quando a esperança deixa de ser futuro para se tornar uma realidade concreta, é chegada aquela hora que as Escrituras e a teologia chamam de “tempo da graça do Senhor”. A esperança cristã vê o futuro e o Reino já presentes no meio de nós em todas as formas de comunhão. Ela sabe o que espera; só não sabe a hora em que vai acontecer. As esperanças históricas e o futuro construtível – afirma L. Boff (in: A graça libertadora do mundo (Ed. Vozes, 1985) – se entendem como preparação e realização antecipatória do futuro absoluto. O Reino expectado no sonho e na vigília, não surge como um toque de mágica, nem se constrói sobre as ruínas dos reinos humanos. Ele culmina um processo histórico e plenifica o que o homem construiu com a graça de Deus. “O Reino já está presente em mistério aqui na terra; chegando o Senhor ele se consumará” (GS 39). O tempo de graça, quando as esperanças se tornam ponto de chegada, vem anunciado pela profecia:

A raiz de Jessé se erguerá como bandeira para os povos...

(Is 11,10);

Na aflição eu te respondo e, na ocasião favorável eu te

resgatei (11,11.49);

O Trito Isaías (que seria secundado pelo vidente de Patmos, em Ap 21,1-8) fala na realização do projeto de Deus em um chamado tempo oportuno e adequado, rico em bênçãos e glórias (65,17), tempo novo que inspira o homem a se elevar aos valores mais altos da vida da graça, nova, copiosa, abundante, eterna. A expressão tempo adequado é reportada nos originais como kairós euprosdektos, um tempo bom (eú) para (pros) a justiça (dektos). O tempo do “novo céu e da nova terra”, no mistério de Deus, é um período em que as realizações futuras começam a se delinear a partir do presente. O que para o homem vai ser (futuro), para Deus já é (presente). O sitz im lebem (núcleo onde se maturou um texto) dos profetas messiânicos calca-se na exposição de um tempo novo de justiça, paz, fartura e harmonia, com a tipificação de uma sociedade ideal. Vamos ler o capítulo 11 de Isaías.

O mesmo clima de alegria provocado pelo fim do cativeiro da Babilônia e a restauração da sociedade de Israel, esse mesmo clima os profetas do pré-exílio, querem passar aos tempos de pleroma (plenitude) quando o Messias chegar. Nas Escrituras há abundantes citações desse tempo oportuno que se chama hoje. Significativas afirmações começam pela palavra siméron (hoje):

Hoje, se ouvires a voz de Deus não endureças teu coração... (Sl 95,7s);

Hoje eu te gerei... (Sl 2,7; Hb 5,5);

Hoje na cidade de Davi nasceu para vocês um Salvador...

(L 2,11);

Hoje a salvação entrou nesta casa... (Lc 19,9);

Hoje se cumpriram essas promessas da Escritura... (Lc 4,21);

Hoje estarás comigo no paraíso... (L 23,43).

Tempo de advento

Nesse tempo de advento se manifesta uma “reunião de convidados”. De forma acadêmica os especialistas classificam os tempos em tempo de Israel (de espera, aquele que precedeu a era cristã) e em tempo de graça (quando Cristo nos visitou). Nessa conformidade, podemos enxergar o tempo presente como um tempo de advento, na expectativa da nova e definitiva vinda de Cristo. A este se poderia chamar de tempo de advento, que exprime uma época em que o Cristo se encontra conosco, vivo e por sinais, pela Palavra, pela Igreja, pela Eucaristia e demais sacramentos, pelos pobres (legítimos sinais dele) e, ao mesmo tempo, nos inspira e prepara para seu retorno. À expectativa da parusia, a teologia dos “Pais da Igreja” chamou, oportunamente de tempo da Igreja. Como convidados do Senhor no banquete das bodas de seu Filho, com ardente fé, discernida esperança e intenso amor, revestimo-nos do poder que vem do alto para viver estes tempos, de cronologia ignorada, que nos separam do dia de hoje (chrónos) ao dia da parusia (kairós).

Tempo de colheita

Na perspectiva da promessa da vinda do Espírito Santo a Igreja de Jesus se reúne no cenáculo para, devidamente preparada receber a força do alto (cf. At 1,8) sob cuja ação vai iniciar o múnus missionário de anunciar a boa notícia ao mundo todo, por todos os tempos. Nesse ensinamento de vida está contida a dimensão temporal e espacial do Cristo, que é ontem, hoje e sempre (cf. Hb 13,8) ao mesmo tempo em que, na história do mundo e dos homens é o alfa e o ômega, o A e o Z (cf. Ap 1,8; 21,6; 22,13).

A força do alto (o Espírito Santo) é que nos torna profetas. Deus se faz presente hoje na obra da sua criação, através do anúncio e do testemunho de seus profetas que anunciam com a boca e com atitudes, o evangelho da salvação. Toda a boa notícia aponta para a história de uma permanente descida de Deus, em Cristo, em favor do pobre, do cego, do oprimido, do injustiçado, do sem-terra e do pecador. Em meio a essa descida encontramos o anúncio e a realização efetiva de uma subida de retorno de Cristo ao Pai, ao mesmo tempo em que prepara nossa subida definitiva na direção do Absoluto. Por seus méritos e poderes, Cristo é o ponto de referência e partida para a nossa salvação.

A evangelização faz parte de múnus missionário da Igreja. “Evangelizar – ensina J. Comblin († 2011) é revelar ao homem o que está acontecendo nele e ao redor dele, como está se iniciando uma vida nova que já constitui também presença da vida que nunca termina” (in: Jesus Cisto e sua missão. Vol. 1. Ed. Paulus, 1993). Comblin, recém falecido, uma marco do saber religioso, foi meu professor de teologia na Paraíba, por volta de 1984. Desta forma, revestido do poder que vem do Espírito Santo, o ser humano constata que a restauração prometida já chegou (cf. LG 48). Deste modo, o kairós significa um tempo do Senhor (que vai se concretizar em um dia que só ele conhece), apropriado ao bem, favorável, aceitável à justiça e à virtude. Tudo isto é uma qualificação do tempo de Deus. Trata-se daquela restauração de Israel que os discípulos perguntaram quando ocorreria (cf. At 1,7) e que Jesus afirmou que não lhes competia conhecer os tempos de Deus. A restauração, como esperança judaica, se converteria, pelo mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo, em salvação universal (cf. 1Pd 3,21).

Esse tempo incerto (sob a ótica humana) é um dos componentes da teologia da esperança. É o tempo de Deus que se chama hoje (cf. Hb 3,17), quando a obra de Deus, destroçada pelo pecado, está em restauração, no retorno ao estado original como ele criou (cf. Cl 1,16-20), num hoje que se chama agora e que dá uma noção de sempre, projetado ao futuro. Como ensina L. Boff (in: Vida para além da morte. Ed. Vozes, 1973. 2ª. edição):

O verdadeiro cristão tem o rosto voltado para o futuro de onde virá Aquele que já veio. Ele espera na alegria de quem sabe: O Senhor vem e vem em breve. Com infinita saudade o exprimia a Igreja primitiva com a palavra aramaica que passou para o mundo grego sem alteração: maranatha - Vem Senhor Jesus! (cf. 1Cor 16,22; Ap 22;30; Did 10.60).

Até as forças do mal têm noção dessa vinda: “Por que vieste nos atormentar antes do tempo?” (Mc 8,29). Tal pergunta feita pelo demônio a Jesus mostra que até o adversário sabe que num tempo certo (desconhecido para nós) acontecerá a vinda do Senhor. quando serão submetidas todas as dominações e poderes (cf. 1Cor 15,24s). Neste kairós o mundo verá aparecer o poder de Deus (dynamis tou theou). O Espírito Santo que prepara a Igreja para o dia do Senhor, não cansa de nos inspirar, através das pregações neotestamentárias, com vistas à nossa conversão: “Eis o tempo oportuno: eis aqui-agora o dia da salvação” – idou nin kairós euprosdektos, idou nin imera soterias (cf. 2Cor 6,2).

É tempo, ensina o magistério da Igreja, de penitência, reconciliação e conversão: legítimo tempo de cultivo do dom do temor de Deus. Vive-se aqui-agora a hora da espera da nossa redenção ou, como afirmam os teólogos luteranos, o tempo da dispensação da graça. Em termos de tempo oportuno, Santo Tomás de Aquino ensina (in: Exposição sobre o Credo. Ed. Loyola, 1988) que para fugir do temor dessa espera se deve aplicar quatro remédios: a) As boas obras; b) A confissão dos pecados e a penitência feita por eles; c) A esmola que torna puros os corações; d) A caridade, pois ela cobre (cf. 1Pd 4,8) uma multidão de pecados.

A Igreja-comunidade do Senhor (ekklesía tou kyriou) não cansa de clamar: “Vem!”. Nós somos os convidados do Reino e ansiamos, qual mulher em dores de parto, que chegue a nossa hora. Nesta época de crise (julgamento) que é o tempo de chamada à conversão, deve o santo santificar-se cada vez mais, o justo buscar mais a justiça (cf. Ap 22,11), pois o Senhor está para vir e dará a cada um conforme as suas obras: “Eis que venho em breve e trago comigo o salário para retribuir a cada um conforme as suas obras” (cf. Ap 22,12). Então será o fim (cf. Mt 24,14). A partir daí o logos criador, do princípio, será o consolo para os bem-aventurados, o logos presença dos tempos definitivos.

O autor é Filósofo, Escritor e Doutor em Teologia Moral. Publicou mais de cem livros no Brasil e no exterior, entre eles “Kairós. Iniciação à teologia dogmático-pastoral”. Ed. Vozes, 1998. 2ª. edição. É conferencista internacional, pregador de novenas e retiros de espiritualidade, assessora workshops de teologia popular.