Curas e milagres - 1 11

CURAS E MILAGRES

E Jesus lhe disse: Vai em paz, tua fé te salvou!

(Lc 8,48)

Já foi dito, parafraseando Santo Anselmo que é preciso crer para compreender. Igualmente se disse que crer é a condição indispensável para a obtenção dos milagres de Deus. Hoje em dia um bom número de pessoas busca a coisa mais fácil, o favorecimento, o milagre. Entretanto, mesmo sendo o milagre um ato sobrenatural, ligado umbilicalmente à fé, muitos pleiteiam o resultado excepcional sem se dignar a ter fé no poder de Deus, que é quem realiza todos os milagres. Tem gente que ambiciona o milagre, até para completar ou suprir algo que, por preguiça ou omissão, deixou de fazer.

A palavra milagre, na concepção da maioria, aponta para uma coisa maravilhosa, um fenômeno, ato ou acontecimento fora do comum, inexplicável pelas leis naturais. Sua origem está no grego, onde thaúma quer dizer “maravilha,” e thaumásia, indica uma sucessão de fatos que causam admiração e espanto. No latim, miraculum, vem do verbo latino mirare, que significa admirar-se, maravilhar-se. É fato que tem caráter extraordinário, fora do comum, onde a sua realização é atribuída à onipotência divina. Deste modo, milagre é considerado como um ato de intervenção divina no curso normal dos acontecimentos. Na teologia bíblica o verbete milagre, semêion refere-se a um sinal. Voltamos a falar em sinal mais adiante.

O fato é que há milagres naturais, paranaturais e sobrenaturais. O israelita não distinguia entre sinais naturais e sobrenaturais: “Porque tudo o que ocorre é de igual maneira obra de Deus” (Sl 86.8). Há fatos naturais, a partir do surgimento da vida, o crescimento, a reprodução, etc., além dos milagres da natureza, como o movimento das ondas do mar, o sol nascendo e se pondo, as estações se sucedendo. A vida e tudo que a cerca é um milagre natural. Os fenômenos paranaturais são aqueles produzidos pela energia mental de cada um. Alguns chamam equivocadamente essas manifestações psicofísicas também de milagre.

Todo o milagre, propriamente dito, é um fato sobrenatural que ocorre fora do comum, inexplicável pelas leis da natureza. O milagre é oriundo da fé naquele que tem poder. O milagre é sempre um sinal da misericórdia de Deus, e ocorre em função da fé. Não acontecem milagres em favor de quem não tem fé. Já ouvi um ateu falar em “milagres da fé”, onde ele narrou um fato ocorrido com ele, em que algo fantástico ocorreu por que ele teve fé, não em Deus, mas no exercício de uma “vibração” ou um “pensamento positivo”. Não existe milagre sem fé em Deus! O milagre atua de forma aderente com a fé de quem o solicita. Em diversas oportunidades Jesus fez milagres por causa da fé de alguém, como no caso dos dois cegos que pediram para enxergar:

Vocês acreditam que eu posso fazer isto? Eles responderam: “Sim, Senhor!” Então Jesus tocou os olhos deles, dizendo: “Que aconteça conforme vocês acreditaram”. E os olhos deles se abriram (Mt 9,28s).

Deus não só pode curar como também quer curar! Quem pede só precisa ter fé! O que o Senhor fez por outros, no passado e no presente, também pode fazer por você! A questão é que hoje em dia há um incentivo ao desejo do milagre fácil. Muitas dessas “igrejas eletrônicas” prometem curas assombrosas, exorcismos fantásticos, mudanças de vida, prosperidade imediata, como se tudo tivesse solução em um piscar de dedos. Algumas seitas afro-brasileiras também acenam com curas e soluções de problemas familiares. Determinados “grupos de oração” também vulgarizam as curas. Deus tem poder para curar qualquer enfermidade e resolver problemas financeiros e sentimentais, mas tudo precisa estar jungido a um vigoroso processo que envolve fé e graça. Há tempos circularam por aí umas notas de jornal, onde a pessoa publicava uma oração – e o texto dizia “mesmo sem fé” – para que os problemas se resolvessem de imediato. Não é assim que funciona! A mulher ansiava pela cura, com fé recorreu a Jesus e ele a curou:

E Jesus lhe disse: Vai em paz, tua fé te salvou!

O evangelho de São João, talvez o mais rico de todos no sentido teológico, e também o que melhor estabelece, através de suas alegorias, a revelação de Jesus, narra vários milagres realizados pelo Mestre, no decorrer de sua vida pública, todos ligados a um tema, capazes de conduzir a uma reflexão estreitamente ligada à história da Salvação. Enquanto os chamados sinóticos, buscam uma revelação mais material do Jesus-homem-histórico, o Quarto Evangelho se afigura sob um enfoque eminentemente espiritual.

É preciso ver na fé – nunca é demais repetir – o elemento essencial e indissociável à realização do milagre. Incredulidade e sinais miraculosos são elementos que não se combinam, como atesta a passagem de Jesus pela sinagoga de Nazaré, sua terra natal:

Jesus aí não realizou nenhum sinal, por causa da incredulidade do povo (Mt 13,58).

O estilo do evangelho de João difere bastante dos autores dos sinóticos. Enquanto eles são mais narrativos e oriundos de uma mesma fonte (por isso sinóticos), o Quarto Evangelho é mais místico, contemplativo e sobretudo, interpelativo. O texto joanino é mais intuitivo que racional. Alguns biblistas, enciclopédias, escolas de teologia ou mesmo determinadas traduções das Sagradas Escrituras resolveram agrupar essas manifestações messiânicas de Jesus, sob o que chamaram de sinais.

A expressão “sinais”, semêion, no grego, usada na teologia joanina, tem um sentido de demonstrar o poder de Deus. Aqui o evangelista emprega a palavra sinais ao invés de milagres. No contexto bíblico, o sinal surge sempre como um evento de forte impacto, que permite entrever a glória de Jesus e assim usar o fato como um agregado pedagógico de fé àquilo que se pretende ensinar, pregar ou demonstrar, sempre voltado para os preceitos morais, seja da Torá, dos textos proféticos ou da proclamação neotestamentária da Boa Notícia. Milagre, no grego é thaúma, igual a coisa espetacular, thaumásios. Assim, mais que um milagre, o sinal é um evento revelador do poder e da generosidade de Deus. Em Caná, da Galiléia, por exemplo, o sinal de Jesus revela sua glória (Jo 2, 11), capaz de suscitar a fé.

Há sinais de Deus disseminados por toda a Bíblia. No Antigo Testamento contemplamos a criação, a destruição de Sodoma e Gomorra, a libertação do Egito, a passagem do Mar Vermelho, a água que brotou da pedra, as vitórias sobre inimigos mais fortes, o maná e as codornizes, a chuva de Elias, etc. A expressão sinal, sob o enfoque teológico, reflete-se na ação realizada por Jesus que, manifestando-se de forma visível (realiza curas, por exemplo), leva por si mesma ao entendimento de uma realidade superior, sobrenatural (Deus quer libertar o homem, desde suas enfermidades físicas, até a dominação do pecado). Os sinais foram tão marcantes que Nicodemos deduz, a partir deles, que Jesus é o Messias (3, 2). São João diz, no Quarto Evangelho que Jesus realizou muitos sinais. Sinal é um indicativo da divindade de Jesus e da íntima relação dele com o Pai.

Alguns biblistas afirmam que os grandes sinais de Jesus são três: a transformação da água em vinho, em Caná da Galiléia; a multiplicação dos pães; e a Ressurreição. Nos elementos dos dois primeiros (vinho e pão) há um encaminhamento litúrgico para o corpo e sangue, tornados sacramento após a Ressurreição. O vinho e o pão são os elementos da Eucaristia, onde celebramos a páscoa do Senhor, mas também infletem no sentido da Palavra, que alimenta. Outros estudiosos relacionaram os sete sinais, a saber: a transformação da água em vinho, em Caná; a cura do filho do funcionário do rei; a cura de um paralítico; a multiplicação dos pães; Jesus caminha sobre as águas; a cura de um cego de nascença; e, o sétimo, a ressurreição de Lázaro. Em ambas as fontes, só foram relacionados os milagres.

Em meu livro “Os sinais de Jesus” (Ed. Pão & Vinho, 2003) fugindo um pouco da conceituação sinal-milagre, mantive a simbologia do número sete, mas preferi levantar um outro elenco de sinais de Jesus, adentrando no terreno do sinal-gesto. Assim, relacionei naquele trabalho, como sete sinais, algumas atividades de Jesus, umas sobrenaturais outras não, mas todas, sem dúvida, sinais eloquentes de seu poder, pistas do amor com que nos ama, e ensinamentos de alta pedagogia para nossa vida cristã.

Como nem todos os milagres trazem consigo a característica do sinal, igualmente há alguns sinais que não têm a conotação taumatúrgica do milagre, como atitudes, gestos, exemplos, coisas humanas, nada sobrenaturais, mas que evidenciam, de forma vigorosa, a chegada do Reino de Deus. A coletânea livre dos “sete sinais” que me permiti fazer, traz consigo alguns sinais que, mesmo não sendo sobrenaturais, arrastam consigo o vigor pedagógico deles.

Deste modo, toda a atividade de Jesus, seja um milagre, um discurso ou um ensinamento, traz consigo uma forte carga sinalizadora da ação divina. Deste modo, preferimos agrupar os sinais de Jesus a partir das sete passagens a seguir: O vinho de Caná; a cura do filho do oficial do rei; os pães multiplicados; a adúltera perdoada; a revitalização de Lázaro; o lava-pés e a Ressurreição de Jesus.

Como o evangelista nos informa que Jesus fez outros tantos sinais, decidi comentar aqui alguns dos considerados regulamentares, mas entre eles inseri alguns que julguei de fundamental importância para a compreensão do evangelho e seguimento irrestrito a Jesus. Outra pergunta que talvez surja é: por que sete? O sete, todos sabem, na numerologia semita é o número cheio, que indica coisa completa, uma perfeição que não necessita mais de retoques. Os dias da criação são sete (seis mais um) evidenciando a perfeição da obra de Deus. Na conquista de Jericó também aparece o número sete (sete dias, sete sacerdotes, sete voltas ao redor da cidade) demonstrando que é a partir daquela tomada que Deus vai estabelecer, através da terra, uma aliança definitiva com seu povo (cf. Js 6, 1-27). Uma leitura atenta das Escrituras é capaz de revelar nos milagres os sinais do amor de Deus pela humanidade.

Jesus não veio ao mundo para fazer milagres. Ele foi ungido pelo Pai e iluminado pelo Espírito para anunciar o Reino, a Boa Notícia, libertar e resgatar o homem de sua servidão ao pecado (cf. Lc 4, 18s). Para tanto, ele realizou seus sinais e fez muitos milagres a fim de entregar ao homem o controle da história, organizar a vida humana segundo Deus e “...para que vocês creiam que ele é o Messias, o Filho de Deus, e crendo tenham vida em seu nome ...” (cf. Jo 20, 31).

A idéia central do Quarto Evangelho, e é bom que se enfatize isto, se nos parece bastante clara: houve historicamente um único revelador de Deus, chamado Jesus de Nazaré. Apareceu na glória e os homens puderam ver nele todo o esplendor de Deus; uns o aceitaram e outros o rejeitaram. Com Jesus, chegou aos homens todo o poder de Deus, uma revelação que não é somente verbal, mas também é essencialmente vital: a pessoa que crê em Jesus de Nazaré, alcança a cura, o bem-estar e a salvação, manifestada como vida eterna.

E Jesus lhe disse: Vai em paz, tua fé te salvou!

O evangelho de João nasceu como resposta às questões e às necessidades da comunidade cristã primitiva. Deu esta resposta dentro de um determinado quadro de pensamento, dentro do qual encontra hoje a sua melhor expressão. É sabido que não foi João o criador da terminologia dos sinais. Tanto nos ambientes persas, hebraicos e gregos, pelos quais se propagou no início o evangelho, já existia um conceito elaborado sobre certas situações prodigiosas e seu significado no terreno religioso.

Os sinais, especialmente os de cunho sobrenatural (os milagres) são expoentes da união radical de Jesus com o Pai (cf. 5, 32). Trata-se de um mistério que num último momento ele revela aos discípulos: “O Pai que permanece em mim é que executa as obras... creiam, pelo menos nas obras que eu faço... eu estou no Pai e o Pai está em mim...” (14, 10s). Os sinais de Jesus foram tão vigorosos, que seus adversários foram capazes de ver neles uma ameaça:

Então, os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o Conselho e disseram: “Que é que vamos fazer? Este homem está realizando muitos sinais. Se deixarmos que ele continue assim, muitos vão acreditar nele” (11, 47s).

As obras de Jesus revelaram-se com uma alarmante capacidade de confronto de ideias e atitudes: do mesmo modo que serviram para fazer brotar a fé do povo, igualmente foram motivo para, despertando a ira dos inimigos, que ele fosse assassinado pelas autoridades de seu tempo. Eram sinais de amor que, em alguns casos, se converteram em atitudes de hostilidade. Os sinais que Jesus realiza se tornaram sempre uma crise para os homens. Uns os aceitam com abertura de coração e outros os rejeitam radicalmente.

Alguém poderá arguir, pragmaticamente, para quê estudar os sete sinais de Jesus? Como Jesus é o Caminho, cabe-nos conhecê-lo da melhor forma. A finalidade com que Jesus praticou os sinais – e o evangelista João deixa isso claro – é para que, como já vimos “...todos acreditem que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e acreditando nele, tenham a vida em seu nome” (20, 31).

Ao relatar as atividades de Jesus, generosas, taumatúrgicas e didáticas, queremos, com a Igreja, expor claramente a missão dos cristãos, a partir das ações do Mestre, ações de amor, poder e serviço, capazes, todas elas, de nos conduzir à conversão, à mudança interior e à transformação do coração.

É salutar estabelecemos como que uma atualização do sinal, ocorrido há dois mil anos atrás, para os dias de hoje. Ao teólogo, ao biblista ou ao pastor não é lícito transitar sobre as Escrituras apenas como um documento exarado numa longínqua Antiguidade. Configura-se uma obrigação atualizar o fato, o sinal, o discurso às realidades do cotidiano. A Palavra de Deus é sempre atual e rica. Cabe a nós garimpar, às vezes no meio da superficialidade do modernismo, seus valores e sua aplicabilidade ao hoje. O fato é que “Jesus fez ainda muitas coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que não caberiam no mundo os livros que seriam escritos” (Jo 21,25).

Jesus teve muitos gestos de carinho para com os doentes. Dentro do aspecto humano, aceitar a doença é reconhecer a limitação da matéria humana, em cujo interior, a morte começa a se maturar desde o dia do nascimento. Teologicamente, a morte é fruto do pecado (cf. Rm 6, 23; Gn 3, 17ss). O homem foi criado para a imortalidade. O pecado roubou-lhe originariamente essa característica.

A doença faz parte do processo de envelhecimento e corrupção da carne humana, que a levará à morte. É através da doença que se manifesta o aparente poder da morte sobre a humanidade (cf. 1Cor 11, 28-32). O senso religioso do homem antigo estabelece uma relação de nexo-causal entre a doença e o pecado. Os textos do Antigo Testamento, de certo modo, confirmam que o homem foi criado para a felicidade (cf. Gn 2), e que a morte, a doença, como de resto todos os males humanos, são contrários a esse projeto (cf. Gn 3, 16-19). A Torá judaica afirma que a doença é “... um sinal da ira de Deus contra o mundo pecador” (cf. Ex 9, 1-22). A experiência da doença serve para aguçar no homem a consciência do pecado. Esta é uma visão do semitismo antigo sobre a doença.

Na antiga Palestina, era comum, por influência das culturas egípcia, fenícia e mesopotâmica, atribuir certas doenças à ação de demônios e maus espíritos. Igualmente, funções fisiológicas, como menstruação, poluções, concepção e parto, eram tidas como impuras, prejudicadas pelas ações de seres invisíveis e nefastos. Em todo o Oriente Médio, a doença era vista como castigo de Deus ou atividades demoníacas. A medicina daquele tempo tinha que agregar a si uma ponderável capacidade de lidar com os fenômenos espirituais.

As curas eram, em geral, exorcismos destinados a expulsar os espíritos do mal. Faziam-se sacrifícios (até humanos, em algumas culturas), para implorar o perdão das entidades espirituais, e assim afastar as doenças dos homens. A saúde pressupõe uma plenitude de força vital. A doença, pelo contrário, é um estado de fraqueza e debilidade do corpo. Para além dessa constatação empírica, as observações dos médicos da Antiguidade eram muito sumárias, limitando-se à percepção visual: afecções da pele, ferimentos, fraturas, febre a agitações.

As causas naturais, exceto as mais óbvias, ferimentos e velhice, nem sempre eram as mais mencionadas. Para o homem religioso (ou supersticioso?) do Oriente Antigo, o essencial estava na outra parte: o que significava a enfermidade para quem foi por ela atingido? Num mundo em que tudo dependia da causalidade divina, a doença não era exceção: impossível não ver nela um golpe de Deus que fere o homem pecador (cf. Ex 4, 6; Jó 16, 12ss: Sl 39, 11).

Quais os tipos mais comuns de doentes no Israel antigo? Em geral, as enfermidades mais encontradas eram os aleijados, os surdos, os mudos, os cegos, os loucos e os leprosos. Além desses, havia os mutilados pelas guerras e por acidentes na agricultura. Na mentalidade de Israel e dos povos vizinhos, há um fundo doutrinário comum: a crença de que as doenças provêm de uma ofensa do homem à divindade, por isso são vistas como um castigo. E hoje, quais a enfermidades que mais nos assustam? A partir desse pano-de-fundo teológico, passa a existir, como esforço religioso, o ato piedoso de conduzir o doente à reconciliação com Deus, para que ele possa ficar curado. Constatações axiológicas mais elementares denotam que os doentes (xolê, no hebraico e nosserós, no grego), eram vistos, de um modo geral, na Palestina, como pessoas pecadoras, vítimas de um castigo divino. Desde aquela época, visitar doentes era uma obra de misericórdia (cf. Eclo 7, 39).

Hoje, grande parte da sociedade ocidental, de corte capitalista neoliberal, é incapaz de estabelecer uma relação entre o desemprego, por exemplo, e a fome, que, por sua vez também é fator de muitas enfermidades. O trabalhador que não rende no trabalho, adoece com frequência, é fraco, tem na fome ou na subnutrição uma das causas de seus males físicos. Na escola, as professoras se queixam que certos alunos não têm a devida concentração, sem atribuir às doenças e à fome as causas primeiras.

A doença em Israel, abstraindo-se o fundo teológico (castigo por causa de um pecado ou possessão diabólica), provinha de diversas raízes físicas. A primeira delas, se pode dizer, a mais sensível, estava situada nas limitações da medicina daquele tempo. Embora no Egito, Grécia e Babilônia a medicina fosse bem evoluída, em Israel ela era ainda atrelada aos costumes tribais (chás, unguentos e poções) e aos aspectos religiosos (cultos e sacrifícios):

O sacerdote oferecerá dois pombos em sacrifício; um pelo pecado e outro em holocausto. Desse modo, o sacerdote fará por ela (mulher enferma, em pós-parto ou menstruada), diante de Javé, o rito por causa da hemorragia que a tornou impura (Lv 15, 30).

Além do fraco nível de evolução da medicina como ciência, há outros fatores, no antigo Israel, que favoreciam o surgimento de enfermidades, como veremos adiante. Os surdos (hêseš) ouviam mal, em parte pela incidência da doença e, muitas vezes por causa da falta de higiene e de salubridade do povo. A higiene, como medida preventiva, praticamente inexistia na Palestina. Muitas moléstias decorriam daí.

Os cegos originavam-se, muitas vezes, por causa das condições climáticas da região, como excessiva luminosidade e tempestades de areia. Além disso, como não havia a ciência da oftalmologia, os míopes e os portadores de catarata eram vistos como cegos. A cegueira podia ocorrer, ainda, em função de guerras, acidentes de trabalho e falta de higiene. No Novo Testamento há mais de uma narrativa de cura de cegos (tyflós, no grego). Há interpretações diversas sobre essa cegueira: pessoas realmente privadas da visão, ou quem não tem olhos para enxergar os sinais de Deus.

Embora os códigos religiosos proibissem o incesto (cf. Lv 18, 6-18; 20, 11-21; Dt 27, 20-23) e os casamentos consanguíneos, era comum a união entre parentes, gerando aleijados, deficientes e débeis mentais. Nessa perspectiva, nota-se também a incidência da cegueira congênita, provavelmente oriunda dessas práticas.

O número de paralíticos (piseah) era igualmente bastante significativo em Israel. A Bíblia fala neles (coxos, mancos, aleijados) em geral como pessoas marginalizadas, que viviam pelas estradas, sustentadas pela caridade pública. Eram fruto de acidentes de trabalho, das mutilações das guerras e de má constituição genética.

Igualmente os loucos (nã’bal) apareciam em grande número nos territórios palestinos. A ausência da consciência (cf. Dt 32, 6) era o início da perda das faculdades mentais. As causas para a existência de tantos loucos em Israel, podem ser buscadas nos males genéticos e congênitos, na fome institucionalizada, no terror das guerras, nas torturas e na perspectiva das deportações.

A Bíblia fala muito em lunáticos. Algumas traduções mais modernas referem-se a esses deficientes como epiléticos ou pessoas vítimas de diversos tipos de convulsões, despindo-os das características das possessões diabólicas, que tanto atemorizavam os povos antigos. A maior parte das pessoas com distúrbios de comportamento, às quais era imputada uma possibilidade de possessão diabólica, na verdade, sem que se queira abraçar um racionalismo absoluto, poderia ser enquadrada como portadora de distúrbios mentais, desde a epilepsia até a esquizofrenia.

Também os mudos eram vistos, muitas vezes como possessos. Há diversas referências no NT em que, feito o exorcismo, a pessoa que era muda tornou a falar (cf. Lc 11, 14). Na Antiguidade era dito que a possessão dos maus espíritos deixava a pessoa sem fala. Essa mudez poderia ser decorrente de problemas genéticos, choques ou traumas psicológicos, bem como lesões físicas provocadas por acidentes ou combates.

A lepra era, sem dúvidas, a doença de maior incidência na Antiguidade palestina. O leproso (sah’rat) era expulso do convívio da família e da sociedade (cf. Lv 13, 45s; Jó 2, 8). É curioso observar que a palavra lepra usada no Antigo Testamento tem como raiz o termo sãra’ que as versões LXX e Vg traduzem como aquele que foi ferido por Deus. Muitas doenças de pele, irritações, eczemas, erupções e alergias eram tidas como impurezas e, em muitos casos, segregadas como lepra. Como a medicina engatinhava, os diagnósticos eram meio simplistas, sem maiores esforços de discernimento. A lepra era tão significativamente ligada aos aspectos religiosos, que era indispensável a palavra de um sacerdote para atestar a doença e, posteriormente, levantar a interdição, em caso de uma possível cura (cf. Lv 13-14). Junto com as doenças, o Antigo Testamento fala também na medicina e nas mágicas.

A Bíblia não proíbe as práticas médicas para curar enfermidades; pelo contrário as incentiva. Isaías usou conhecimentos médicos para curar Ezequias (cf.2Rs 20, 7), e o arcanjo Rafael, um remédio natural para restituir a visão a Tobias (Tb 11, 8. 11ss). Mas – e as Escrituras procuram deixar claro em sua teocracia – é a Deus, antes de tudo que os Israelitas deviam recorrer, pois ele é o “Senhor da vida’ (cf. Eclo 38, 9), que dá a cura; é ele quem fere e cura (cf. Dt 32, 39; Os 6, 1); ele é o médico do homem, por excelência” (cf. Ex 15, 26). Nessa conformidade, vemos que o anjo enviado para curar Sara, filha de Raguel (cf. Tb 3, 17) chamava-se Rafael (Deus cura). As curas, às vezes em forma de milagre (1Rs 17, 17-24; 2Rs 4, 18-37) querem demonstrar um sinal: Deus inclinou-se sobre a humanidade sofredora para aliviá-la de seus males.

No deserto, durante o êxodo, o acampamento dos hebreus foi atacado por serpentes venenosas que vitimaram muita gente. Moisés clamou ao Senhor que estabeleceu um sistema imediato de cura. Foi construída uma serpente de bronze, que colocada no alto de um pau tornou-se visível ao povo, Todo aquele que levantasse a cabeça e olhasse para ela (prefigura do Cristo na cruz) era curado (cf. Nm 21,8).

A doença, hoje em dia, mesmo que tenha um sentido lógico e uma explicação física, continua a ser um mal incompreendido por muitos. Por isso as promessas escatológicas dos profetas, previam sua supressão no mundo novo, em que Deus haveria de resgatar seu resto, no fim dos tempos, quando “...já não haverá enfermos” (Is 35, 5s) “sofrimentos” nem “lágrimas” ou tampouco “mortalidade infantil” (cf. 25, 8; 65, 19). Num mundo liberto do pecado – causa primeira da dor e da morte – deverão desaparecer as consequências do pecado que se abatem sobre o homem: “Quando o justo sofredor tiver tomado sobre si as nossas enfermidades, seremos curados graças às suas feridas” (cf. Is 53, 4s). Quais as doenças que afligem a humanidade hoje?

Na verdade, são muitas as enfermidades, mas as que mais nos inquietam são o câncer, a tuberculose, o mal de Alzheimer e Parkinson, a cirrose hepática, a osteoporose, as úlceras gástricas e a Aids, entre outras. Existem também os males psíquicos, como a depressão, o estresse, a angústia existencial, a ansiedade, a alienação, a perda de referenciais (e sentido) de vida, etc. Ainda há o sofrimento ocasionado pela violência, as agressões, os assaltos, os atentados e os acidentes de trânsito. Todos estes causam muito sofrimento e dor, além de ceifar muitas vidas.

Nos albores da civilização antiga, a cura das enfermidades, através de remédios, chás, unguentos e outras práticas, era feita pelos feiticeiros, bruxos e xamãs. Posteriormente, a classe sacerdotal, dentro da teocracia em vigor, avocou a si o direito de clinicar. Só muito mais tarde, talvez pelo século XVIII a.C. é que apareceram os médicos, no Egito e na Grécia, e ainda assim, de forma precária, e com influências sobrenaturais.

Apenas para situar a relação medicina-feitiçaria, é curioso observar que uma palavra com ares científicos que empregamos hoje, farmacêutico, é derivada de farmakéus, que no grego quer dizer “feiticeiro”. No Apocalipse, é dito que os farmacói (feiticeiros) vão ficar de fora do Reino (cf. 22, 15).

Na visão soteriológica, a cura é uma atividade aderente ao processo salvífico do Messias (cf. Lc 4, 18), assim como no seu Reino não haverá dor, nem luto nem pranto, pois tudo isso será coisa do passado (cf. Ap 21, 4). A cura é um sinal da messianidade de Jesus e da compaixão que o Pai tem por seus filhos. Há muitas referências na Bíblia sobre a doença. Nos textos que selecionamos a seguir, para ilustrar este tópico, vemos o desespero do salmista diante da dor, do sofrimento que o assola, preludiando a morte. A dor é tanta que seu clamor se confunde com desespero. Só se observa um fio de esperança, pelo fato de ele ainda dialogar com Deus e expor seu sofrimento.

Por causa de tua ira, Javé, nada em meu corpo está intacto; nada está inteiro em meus ossos, por causa de meu pecado; minhas chagas estão podres, supurando (...) estou todo curvado e encolhido e ando entristecido o dia todo. Meu coração palpita e as forças me abandonam, e a luz dos meus olhos já não está comigo (Sl 38, 4-11)

E porque os meus dias se consomem em fumaça e meus ossos queimam como braseiro. Pisado como relva meu coração está secando, e eu me esqueço até de comer o meu pão. Por causa da violência do meu grito, os ossos desgrudaram da minha pele. Estou como o pelicano do deserto, como o mocho das ruínas. Fico desperto, gemendo, como ave solitária no telhado (102, 4-8).

Há igualmente vários textos nas Sagradas Escrituras que tratam da cura. O trecho abaixo, selecionado do Proto-Isaías, é uma mensagem de força e coragem a quem está enfermo, como um alento para quem aguarda a libertação. O povo, na iminência do exílio, estava doente do corpo e do espírito. O texto tem conotações pré-messiânicas. A cura tanto pode ser de doenças como uma escravidão do pecado ou até política. Mas vale para o doente:

Digam aos corações desanimados: “Sejam fortes! Não tenham medo! Vejam o Deus de vocês: ele vem para vingar; ele traz um prêmio divino; ele vem para salvar vocês!” Então os olhos dos cegos vão se abrir, e abrirão também os ouvidos dos surdos; os aleijados saltarão como o cervo, e a língua do mudo cantará porque jorrarão águas do deserto e rios da terra seca. A terra árida se mudará em vargens, e o chão seco se encherá de fontes. E onde viviam os lobos, a erva se transformará em tábua e junco (Is 35, 4-8).

Com relação ao serviço dos médicos e dos curandeiros, a teologia judaica ressalta sempre o caráter divino da cura. O médico cura, primeiro porque é criatura de Deus, e depois, porque orou a Deus pedindo inspiração para ministrar o tratamento. Há uma correlação, no místico-humano, com o “sem mim vocês nada podem fazer” (cf. Jo 15, 4). Será que os médicos hoje oram a Deus pedindo a cura de seus pacientes. Ou confiam apenas em sua sabedoria humana?

Honre os médicos por seus serviços, pois também o médico foi criado pelo Senhor (Eclo 38, 1)

Meu filho, se você ficar doente, não se descuide. Suplique ao Senhor, e ele o curará. Evite as faltas, lave as mãos e purifique o coração de todo pecado. Ofereça incenso e um memorial de flor de farinha, e faça gordas ofertas, conforme suas posses. Depois consulte o médico, pois também ele foi criado pelo Senhor. Não o afaste, porque você precisa dele. Há casos em que a cura depende só dele. Ele também suplica ao Senhor, a fim de que lhe conceda aliviar a dor e curar seus pacientes (vv. 9-14).

Num dos tantos discursos escatológicos do Novo Testamento (cf. Mt 25, 31-46), e eles formam o ideário da doutrina social, Jesus afirma que serão acolhidos no Reino do Pai aqueles que tiverem manifestado misericórdia para com os doentes. A misericórdia, a atenção e o desvelo ajudam a criar. O inverso também é verdadeiro. Uma pessoa abandonada, sozinha, descrente, pessimista, tem todos os requisitos para desenvolver graves doenças físicas e/ou psíquicas.

É notável ver no Novo Testamento as curas que Jesus realizou em favor dos pobres, sofridos e excluídos. Sabe-se que foram muitos mais (não haveria espaço para relacionar todos, disse o evangelista João). Aqui vamos relacionar apenas os milagres que envolvam curas:

• um leproso (Mt 8,2-4; Mc 1,40ss; Lc 5,12s);

• o servo do centurião (Mt 8,5-13; Lc 7,1-10);

• a sogra de Pedro (Mt 8,14s; Mc 1,30s; Lc 4,38s);

• dois gerasenos (Mt 8,24-34; Mc 5,1-15; Lc 8,27-35);

• um paralítico (Mt 9,2-7; Mc 2,3-12; Lc 5,18-15);

• uma mulher com hemorragia (Mt 9,20ss; Mc 5,25-29; Lc 8,43-48);

• dois cegos (Mt 9,27-31);

• um endemoniado mudo (Mt 9,32s);

• um homem com a mão atrofiada (Mt 12,10-13; Mc 3,1-5; Lc 6,6-10);

• um endemoniado cego e mudo (Mt 12,22; Lc 11,14);

• a filha da mulher cananéia (Mt 15,21-28; Mc 7,24-30);

• um menino possesso (Mt 17,14-18; Mc 9,17-29; Lc 9,38-43);

• Bartimeu e outro cego (Mt 20,29-34; Mc 10,46-52; Lc 18,35-43);

• um surdo e gago (Mc 7,31-37);

• um possesso na sinagoga (Mc 1,23-26; Lc 4,33-35);

• um cego em Betsaida (Mc 8,22-26);

• uma mulher encurvada (Lc 13, 11ss);

• um homem com hidropisia (Lc 14-1-4);

• dez leprosos (Lc 17,11-19);

• o servo do sumo sacerdote (Lc 22,50s);

• o filho do oficial em Cafarnaum (Jo 4,46-54);

• um aleijado na piscina de Betsedá (Jo 5,1-9);

• um cego de nascença (Jo 9,1-7).

Será que depois disto nós ainda temos dúvidas do poder de Jesus? Temos a certeza de que ele está disposto a nos curar de nossos males? Quando o milagre, a cura, o sinal portentoso não acontece é porque não pedimos com a fé necessária, aquela fé-certeza de que a solicitação já está sendo atendida.

Fé é um modo de já possuir aquilo que se espera (Hb 11,1).

Eu já escutei pessoas pedindo dons com reservas, com medo, com vacilação. Uma chegou a me dizer: “eu não quero ‘incomodar’ Jesus!”. Puxa vida, que falta de convicção. Jesus está ali, louco para nos atender, para nos curar, basta pedir. Não foi ele que disse “Peçam e receberão!”? (Mt 7,7). Então, por que não pedimos com gritos e clamores pela sua intervenção?

Por levar à morte (cf. Rm 6,23) o pecado é visto como uma doença, para qual devem ser canalizados os recursos de cura. Ao perdoar um pecador, Jesus está lhe devolvendo a saúde do espírito e encaminhando-o àquela vida abundante que ele veio trazer (cf. Jo 10,10). Quando oramos por saúde, proteção e prosperidade, também devemos orar pelo perdão de nossos pecados, que aponta para a cura de nosso espírito, muitas vezes destroçado pela virulência do pecado.

No terreno das enfermidades, é importante saber que há males psíquicos, criados pela nossa cabeça, que aceitam curas psíquicas. Conheci uma senhora que, meio desiludida da vida, decidiu que não ia caminhar mais. A medicina não logrou êxito no tratamento, Ela foi para a cadeira de rodas, de lá para a cama e acabou morrendo. A esperança da família é que a “unção dos enfermos” administrada no momento adequado lhe tenha aberto as portas do céu.

Os males físicos, as doenças que andam por aí, essas se curam, em grande parte, pela medicina, e os casos mais renitentes pela via sobrenatural, quando Deus sob clamor decide intervir. A raiva, o ciúme, a indiferença e a inveja são igualmente doenças metafísicas que envenenam a vida e destroem ideais e relacionamentos. É preciso estar atento para combater essas enfermidades, orando por sua cura e erradicação em nosso coração. É preciso graça sobrenatural e divina para perdoar e deixar Deus levar embora nossas mágoas. “Perdoa as nossas ofensas, como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.

Volta-e-meia, em cursos, retiros e pregações, tenho escutado questões bem intrigantes: Por que Deus permite que seus filhos tenham problemas? Bem, as razões são muitas, mas podem ser resumidas em uma palavra: benefícios. Ele vê os benefícios onde nós somente vemos os prejuízos. No decorrer de uma doença (o fato negativo) a família se agrega, os amigos se solidarizam e o doente tem oportunidade de rever sua vida (o fato positivo). Às vezes, a situação de “purgatório” devida por todos, já pode ser saldada nesta vida, pelo sofrimento e pelas provações.

Deus não quer o sofrimento de ninguém e nem é autor deles, mas nos dá o entendimento para que ele seja utilizado em nosso benefício. Provas e tribulações fortalecem e moldam o nosso caráter. Fazem de nós pessoas e cristãos melhores. O martelo e o cinzel do artista não machucam o granito, mas preparam-no para se tornar uma obra de arte. Desta forma deve ser encarado o sofrimento humano. Jesus não é o autor da dor, mas quando sofremos ele se coloca ao nosso lado. É uma heresia atribuir as desgraças à vontade de Deus.

Conta-se a história de um fabricante de violinos que por anos procurou a madeira que desse aos seus instrumentos uma ressonância especial e inesquecível. A sua busca finalmente terminou, não num viveiro de árvores ou num bosque em algum vale protegido, mas no alto de uma montanha, onde as árvores eram raras e os ventos, tão violentos e constantes que forçavam os galhos a inclinarem-se na mesma direção, não permitindo que nesse lado onde batiam, crescesse casca no tronco das árvores. O veio da madeira das árvores assoladas pelas tempestades entrelaçava-se no padrão mais intrincado de qualquer madeira que já houvesse encontrado. Era firme, dura, forte e dava aos seus violinos aquele som especial. Igualmente, quando Deus prepara os seus filhos para o seu lugar no Reino, não os coloca em terras baixas e protegidas, mas em regiões montanhosas e acidentadas onde têm que aprender a resistir às tempestades da vida. Os que resistem tornam-se fortes e robustos. São os materiais escolhidos por Deus e de cujas vidas emanam uma beleza especial.

Os testes e tribulações da vida também nos tornam mais cientes das nossas fraquezas e limitações e assim aprendemos a depender mais de Jesus. Como a árvore na encosta da montanha que aprofunda bem as suas raízes nas fendas entre as rochas, agarramo-nos ao Senhor para salvar as nossas vidas. Nesses lugares difíceis e desolados, vemos que Ele é o suficiente para nos sustentar, e ficamos mais fortes, pois aprendemos a nos valer da sua força. Ao contrário do errôneo conceito popular, Deus não espera que você resolva sozinho os seus problemas, nem que “se vire”. Ele tem um interesse especial em você, com quem quer falar direta e pessoalmente.

Você alguma vez já se perguntou se Deus ainda fala com as pessoas hoje em dia? E se fala, será que você também pode se comunicar com ele? Primeiramente, para poder compreender como é possível nós, meros humanos, nos comunicarmos com Deus é importante entendermos o quanto eles nos ama. Ele ama tanto a cada um de nós, que há muitos anos mandou seu filho Jesus à terra para morrer pelos nossos pecados e nos dar a dádiva da vida eterna no céu para aqueles que nele creem.

Deus nos ama tanto que quer se comunicar com cada um de nós pessoalmente, hoje! Ele sabe que temos perguntas, dúvidas e dificuldades, e quer nos dar as respostas que precisamos, as palavras de fé e confiança que nos ajudarão em tempos difíceis. Assim sendo, criou uma porta, um canal entre ele e cada um de nós, para que através da oração possamos falar com ele e, em resposta, ouvir o que ele tem a nos dizer. Essa porta é a Igreja, sinal de salvação. É imperioso crer que o Pai quer falar conosco, dar-nos uma chance de experimentar sua misericórdia, ajudar-nos a crescer passo a passo, e a conhecê-lo e compreendê-lo melhor. Afinal, sabemos, Deus conhece todos os nossos movimentos e, por conseguinte as nossas necessidades:

Senhor, tu me sondas e me conheces. Tu conheces o meu sentar e o meu levantar, de longe penetras o meu pensamento. Examinas o meu andar e o meu deitar, meus caminhos são todos familiares a ti. A palavra ainda não me chegou à língua e tu, Senhor Javé, a conheces inteira. Tu me envolves por detrás pela frente, e sobre mim colocas a tua mão (Sl 139, 1-5).

Na hora da dor e do sofrimento, não diga a Deus o tamanho do seu mal (ele sabe tudo), mas diga ao mal o poder do seu Deus. Este é o caminho para a cura, o alívio dos males e a salvação. Como mencionado anteriormente, Deus fala aos que creem de várias maneiras diferentes. Quando o faz através da Bíblia (algo que ocorre com muita frequência), permite que, à medida que a pessoa lê um trecho, este lhe chame a atenção, e mostre como se aplica à sua situação ou como esclarece a dúvida que ela tinha. Às vezes Deus também fala através de pregadores, ministros, pastores em geral, pessoas inspiradas que são capazes de ler os sinais dos tempos nos acontecimentos do cotidiano.

Para esclarecer nosso espírito aflito, é preciso recorrer à profecia. Nesse particular, é salutar que a gente saiba o que é profecia. Diferente de quando Deus fala conosco através da sua Palavra escrita ou de uma alocução interior ao nosso coração, a profecia ocorre quando realmente ouvimos palavras específicas, endereçadas à nossa mente e ao nosso coração. Isso é profecia, e a cura do corpo, da alma e do espírito começa por ela. Conforme relatam os evangelhos, durante seu ministério, Jesus operou vários milagres, mostrando assim seu poder sobre a doença, a natureza e até mesmo sobre a morte. É importante notar que em nenhum momento Jesus usou seus poderes para benefício próprio ou se exibir. Nem quis se fazer de vítima ao ficar quarenta dias em jejum, quando foi levado ao deserto para ser tentado por Satanás (Mt 4,1-11).

Sem dúvida alguma, os milagres relatados na Bíblia não representam a totalidade de maravilhas que Jesus realizou durante seus três anos de pregação do Reino de Deus. Como é dito pelo apóstolo João: “Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda muitos outros sinais que não estão escritos neste livro; estes, porém, estão escritos para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham vida em seu nome” (Jo 20,30s).

Para se falar em curas e milagres tem-se que falar também nas doenças. Há três tipos de doenças: as físicas (as enfermidades que se conhece hoje, desde a gripe mais simples até o câncer e a Aids), as psíquicas (a angústia, a depressão, a perda da autoestima, a mania de perseguição) e as morais (a inveja, o ciúme, a intolerância, os desvios morais e patolõgicos de conduta). As doenças com o seu cortejo de dor e sofrimento têm acompanhado a história da humanidade. Com o avanço da medicina muitas foram vencidas, mas surgem sempre novos flagelos que ameaçam a vida humana: o câncer, as mutilações causadas por acidentes, a AIDS, o terrorismo, os conflitos, as infidelidades e as rupturas familiares, traições, injustiças, desemprego, dependência às drogas, doenças psíquicas, etc. Todos esses males são inerentes à condição humana e capazes de desencadear enfermidades. Parece um mal sem remédio.

As doenças e os sofrimentos parecem contradizer as grandes expectativas criadas pelo progresso científico e pelo controle da natureza a partir do final do século XIX. Acreditou-se que a ciência resolveria todos os problemas da humanidade, incluindo a doença. No entanto, apesar do avanço da medicina, o homem continua uma presa fácil de muitas feridas que constantemente nos espreitam e não nos deixam esquecer o domínio da morte.

Numa sociedade de bem estar e de gozo da vida sem limites, como a nossa, as pessoas parecem não estar preparadas para as doenças, para o sofrimento ou para a morte. As culturas orientais assimilam melhor essas perdas. O sofrimento, pelo inexplicável que traz consigo, abre feridas dolorosas e causa dramas profundos que atingem pessoas, famílias e grupos sociais. Se Deus é o autor e o Senhor da vida humana, qual a resposta que a religião dá à doença, qual o remédio que apresenta às feridas da humanidade? Os doentes procuram, por todos os meios e caminhos, a cura. Que respostas nossa Igreja dá a seus crentes? A doença sempre questiona a fé. Presta-se atualmente muita atenção às doenças psíquicas, já mencionadas. Isto ocorre, possivelmente porque muitos mestres e autores de obras sobre mística e vida espiritual associaram, na análise do sofrimento das pessoas de hoje, os princípios da psicologia com a perspectiva da fé. Isto é um equívoco, pois a resposta a tantas questões nem sempre está nas ciências. Mesmo assim, há muitas fragilidades psicológicas que acarretam uma necessidade de recorrer aos tratamentos psicológicos e psiquiátricos para alcançar a cura. Distúrbios como a alienação, a depressão, o isolamento e a solidão parecem se alastrar e atingir todas as idades e condições.

A solidão é uma das dores modernas mais comuns. Vivemos numa sociedade em que a solidão se tornou num dos sofrimentos humanos mais dolorosos e assustadores. A competição e a rivalidade que impregnam as nossas vidas criaram em nós uma percepção muito acentuada do nosso isolamento. Muitos casamentos são destruídos porque nenhum dos cônjuges foi capaz de preencher a esperança, muitas vezes escondida e inconfessada, de que o outro afastasse definitivamente a solidão. Várias doenças têm a ver com a chamada “patologia do desejo” (desejo pervertido, incontrolado, de alcançar poder, êxito ou protagonismo). Muitas pessoas sofrem porque criaram expectativas acima das suas possibilidades. Quando se vive em função da importância ou da posição pessoal, quando se cria uma hipertrofia do ego, facilmente se gera um vazio interior que conduz a alienações.

Na mesma patologia se pode considerar a sexualidade alienante, orientada pelo desejo pervertido que escraviza. Estas feridas são de todos os tempos, vêm referidas já no Novo Testamento, como, por exemplo, por São Tiago: “Onde há inveja e ambição, aí reina a desordem e toda a espécie de maldade. De onde procedem os conflitos e as lutas que se dão entre vós? Não é precisamente dessas paixões?” (Tg 3, 16; 4,1).

Assim chegamos à relação entre as dores e o pecado. Muitos sofrimentos têm a ver com o pecado, com a fragilidade humana. Descobrindo as raízes do pecado e combatendo-as poderemos alcançar a cura das doenças. A fé vence o pecado e contribui para alcançar a saúde.

Há na Igreja um ministério de reconciliação e de cura. Muitas pessoas podem testemunhar que a fé cura as doenças. O dom da cura, um carisma atribuído ao Espírito Santo, manifesta-se ainda hoje na Igreja. Para além das curas miraculosas, raras, mas reais, reconhecidas por equipas de médicos, e além das promessas ilusórias de curas nos novos movimentos religiosos, cresce igualmente a convicção e a experiência de que a fé, a oração, o acompanhamento humano e espiritual dos que sofrem e, como coroamento, os sacramentos da cura (Penitência, Eucaristia e Unção dos Enfermos) contribuem ao restabelecimento da saúde. A Igreja não oferece exclusivamente a salvação da alma para o outro mundo, mas contribui igualmente para a harmonia e o equilíbrio da pessoa no seu todo e no seu mundo, para a vida plena com qualidade humana e espiritual. Por saber o porquê da fé, Jesus criticou a descrença de alguns:

Ai de vocês, homens de pouca fé! (Lc 12,28)

A ação curativa da Igreja, portanto, não se dirige só aos doentes e idosos, mas também a todos os que sofrem enfermidades do corpo, da alma ou do espírito. O evangelho de Jesus converte do egoísmo ao amor, ajuda a aceitar com humildade e confiança os limites da natureza humana, oferece consolação e esperança, proporciona integração na comunidade cristã. Estes remédios espirituais da fé cristã têm, naturalmente, uma ponderável dimensão humana terapêutica. Muitas vezes, quando a medicina tradicional fracassa, entra em campo a medicina espiritual, aonde Jesus vem para o lado do doente, repreende a enfermidade, afasta os fatores geradores das dores e restaura a pessoa, resgatando-a das mãos daqueles agentes que lhe causaram a doença. Isto é o milagre. Deste modo, a Igreja é enviada às pessoas feridas para lhes comunicar o bálsamo da fé que cura, enquanto ajuda a compreender e a aceitar as feridas como uma expressão inerente à condição humana. Lembra ao homem a sua condição mortal e vulnerável, orientando no reconhecimento desta condição e vencendo as ilusões da imortalidade e invulnerabilidade. A aceitação e o diálogo sobre os sofrimentos e as dores e a sua compreensão numa perspectiva de fé, são o primeiro passo para a libertação e para a cura.

Uma comunidade cristã é uma comunidade curativa não apenas porque as feridas são saradas e os sofrimentos aliviados, mas porque as enfermidades e os sofrimentos se tornam em janelas ou ocasiões para se ver o poder de Deus com novos olhos. Tem gente que é curada pelo poder de Deus, mas tem vergonha (e a vergonha aponta para uma fé vacilante ou para um respeito-humano exacerbado) de tornar pública essa maravilha. Preferem atribuir a solução dos seus males ao doutor “fulano”, ao psiquiatra “beltrano”, ao guru “cicrano” ou ao remédio “X” ou “Y”. Envergonham-se em reconhecer (e afirmar) que foi o poder de Jesus, a misericórdia de Deus e as luzes do Espírito Santo que o levantou da cama e desenvolveu sua cura. Isto é lamentável!

Os que em nome da comunidade se colocam ao serviço dos que sofrem (ministros da bênção, membros da “pastoral da saúde” ou de “grupos de oração”, etc.) precisam conhecer e aceitar as suas próprias limitações. É pelas feridas de Cristo que fomos curados, afirma São Pedro (cf. 1Pd 2,24) e nunca por atividades ou méritos exclusivamente humanos.

Há atividades taumatúrgicas (milagres) individuais, em que uma pessoa é curada de uma enfermidade, outra muda seu comportamento e abre-se ao convívio familiar, ou ainda, alguém resolve uma pendência econômica ou judicial através da intervenção de Deus. Há também os chamados “grandes sinais”, como os milagres eucarísticos (Lanciano, 700; Ferrara, 1171; Cássia, 1330; Turim, 1453; Faverney, 1600), bem como os corpos incorruptos de Santa Clara de Assis († 1252), Santa Bernadete Soubirous (1879) e outros. Há santos com incorruptibilidade parcial, como Santo Antônio de Pádua († 1231) do qual foram preservadas a língua e as cordas vocais, e Santa Brígida († 1373) cujo coração está intacto. Em alguns casos de manifestações tidas como miraculosas, como imagens que choram ou vertem sangue, flores que não murcham, caracteres escritos misteriosamente nas paredes, objetos que voam e coisas parecidas, a parapsicologia define como uma atividade psíquica (o aporte telecinético) que nada tem de sobrenatural.

Também os pastores, evangelizadores e mestres que têm consciência das próprias dores e experimentam a fragilidade humana, podem, com maior profundidade, compreender e solidarizar-se com os que sofrem. As feridas pessoais podem tornar-se uma fonte de cura na medida em que permitem conhecer e aceitar a condição humana, numa atitude de humildade e de simplicidade, sem perder a esperança e a fortaleza que vêm da fé e da força do Espírito Santo. Nesta ótica compreendemos o conselho de Francisco da Assis: “Procuremos ser simples, humildes e puros. Nunca devemos desejar estar acima dos outros, mas devemos antes ser servos e súditos de toda a criatura humana por amor de Deus. Sobre todos aqueles que assim procederem e perseverarem até ao fim repousará o Espírito do Senhor, que neles fará a sua habitação e morada”.

Este patrimônio espiritual da fé cristã com dimensão terapêutica precisa ser oferecido aos que sofrem através da pedagogia evangélica da misericórdia que se mostra na proximidade, na solidariedade, no perdão e na compaixão. Ao ler ou ouvir falar nos milagres de Jesus, devemos levar em conta um ponto essencial. Os milagres apresentados pelos evangelhos estão ali não para dar uma informação sobre o que Jesus fez outrora, como curou os doentes ou deu vida onde havia morte. A intenção das narrativas evangélicas é levar o cristão a compreender o que Jesus faz hoje, como ele cura os que acolhem sua palavra e atende os desesperados que a ele recorrem. Não podemos colocar a capacidade transformadora dos milagres de Jesus apenas num passado remoto.

Há toda uma questão de fé a compor a pedagogia dos sinais. Assim como no deserto, Deus manifestou sua glória, a kabôd Yahweh (cf. Nm 14, 22), pondo os homens à prova (cf. Dt 8, 2), os sinais de Jesus tornam-se símbolos de fé, prefigurações do sinal maior que é a salvação. A Tomé, porém, Jesus afirma que é importante crer sem exigir sinais (cf. 20, 29). A vida abundante que Jesus veio trazer a toda humanidade é o “rio de água viva” que o profeta assinala como marco da instauração dos tempos messiânicos. É a mesma abundância de dons prometida à mulher samaritana (cf. Jo 4,10)

Os milagres de Jesus, que começam em Caná, vão se desenvolvendo, ganhando corpo e significado, até chegarem ao ápice que é a Ressurreição. Alguns são mais ou menos ocultos (cf. 7, 10), até atingirem a plena revelação, que será sua morte e Ressurreição, que irá estabelecer uma autêntica crise, conforme ele mesmo previu (cf. 17, 14). Por esta razão, ele se torna, na história e na vida da fé, uma luz para o mundo. É salutar – e a nossa fé no-lo revela – observar que os milagres de Jesus não se esgotam ou se limitam ao período histórico do Novo Testamento. Eles estão aí, à nossa frente, acontecendo às pencas. Só não vê quem não quer ver. Ou melhor: só não vê quem não enxerga a vida pelos olhos da fé.

Se alguém tem sede, venha a mim, e aquele que acredita em mim, beba. É como diz a Escritura “do seu seio jorrarão rios de água viva” (Jo 7,38).

Este texto foi tema de um retiro espiritual que o autor pregou em Vitória, no Espírito Santo, em abril de 2009.