A morte não é o fim

A MORTE NÃO É O FIM

Estejam vocês prevenidos, pois o Filho do Homem virá

na hora em que vocês menos esperarem

(Mt 24, 44; Lc 12, 38).

No bojo das reflexões escatológicas sobre o “Dia de Finados”, nos emociona a idéia daquela maravilha chamada céu, que Deus criou para o homem, em seu eterno sonho de felicidade e de vida plena, algo que os olhos jamais viram nem ou ouvidos escutaram. A fé nos revela que o céu, é para sempre. Lá, no dizer do Livro do Apocalipse,

Ele enxugará toda a lágrima dos olhos deles, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito nem dor. Sim! As coisas antigas desapareceram (Ap 21, 4).

Embora todos os postulados e credos de nossa fé cristã não cansem de afir-mar que a morte, embora definitiva no aspecto físico, é um encontro com Deus, muitas pessoas, por razões de fragilidade de crença, temores psicológicos, traumas de infância, carências ou alguns complexos de culpa, têm medo de morrer, rejei-tando, no subconsciente a idéia da morte como uma comunhão definitiva.

É comum, quando dou palestras, coordeno círculos ou trabalhos sobre Bí-blia ou teologia, escutar das pessoas perguntas do tipo “Como é o céu?”. É curioso que muitas pessoas se mostrem interessadas em “conhecer” como é o céu, mas nem todas buscam conhecer as condições de como fazer jus a ele. Parece que em alguns casos a procura é mais na linha da curiosidade, do aprender pelo conheci-mento, do que vivenciar o mistério pelos caminhos da fé e preparar-se. Por incrível que pareça, muita gente ainda imagina o céu como um lugar cheio de nuvens e fantasia, tão ao gosto das representações artísticas.

Em geral, quando me perguntam pelo céu, dado minhas limitações, cito o texto paulino: O que os olhos não viram, os ouvidos não escutaram e o coração do homem não percebeu, foi isto que Deus preparou para aqueles que o amam (1Cor 2,9).

Nesse particular, a morte deixa de ter aquela visão tétrica para adquirir a perspectiva do Reino. Por isso ela deve ser uma entrega confiante. O serviço, em vida, antecipa suas alegrias. O homem, no dizer de São Francisco torna-se livre da vida terrena para viver, na morte, o céu para sempre. Recordo que minha filha Ana Maria, quando tinha uns treze anos, por ocasião da morte do avô (meu pai) disse que “...no dia em que tivermos fé, de verdade, faremos da morte uma celebração”. Essa locução, por certo inspirada, tem me ajudado, em escritos, em pregações e em eventuais trabalhos de “ministro da esperança”.

Quando nascemos, começamos a morrer. Esta é uma verdade insofismável. A cada dia nos aproximamos mais da nossa morte. Alguém tem dúvida disto? Igualmente, quando morremos, começamos a ressuscitar...

A morte, na verdade, não é um mal, mas uma passagem (uma páscoa) de uma vida incerta e sujeita às fraquezas, para uma realidade nova, o céu, a vida plena. Quando oramos “... venha a nós o vosso Reino” além de pedir a graça e a presença de Deus em nossos projetos, também pedimos que os dias que nos sepa-ram do convívio direto com Deus, sejam abreviados. Sobre essa espera, há um in-teressante texto de São Pedro: “O que nós esperamos, de acordo com a promessa, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça”. (2Pd 3, 13).

Em suas palavras objetivas, o apóstolo enfatiza sua fé na parusia, na vinda de Jesus e no estabelecimento definitivo do Reino, do céu, no fim da história de nossas vidas. Na morte, Jesus vem nos ajudar. A expressão novos céus e nova ter-ra, que aparece em outras passagens da Escritura (cf. Is 65, 17; Ap 21, 1), significa um mundo totalmente diferente do atual, com a criação renovada, isenta dos efeitos do pecado. Esse é o fim do mundo: o fim de um mundo de pecado, onde reine a paz e a glória de Deus. O “mundo novo”, ao qual chamamos de céu, após sofrer a transformação radical, totalmente amorizado e cristificado, tornar-se-á a morada eterna da justiça, da santidade e do amor. O ponto fundamental dessa transformação é a entronização de Cristo como cabeça de tudo (cf. Ef 1, 10).

Instaura-se o céu quando Deus decide armar sua tenda no meio dos homens e permanecer com eles numa comunhão eterna, onde não há mais desgraças nem contrariedades, tudo coisas do velho éon (cf. Ap 21, 4. 27). Aqueles que conseguem viver o amor já nesta vida, trazem em si, marcas de eternidade. Foi o caso de muitos santos. Os eleitos vivem com Cristo; têm nele o melhor; encontram ali sua verdadeira identidade; seu próprio nome. “Viver no céu é estar com Cristo” (Jo 14, 3; Fl 1, 23; 1Ts 4, 17).

Em um passado mais ou menos recente, alguns segmentos da teologia, ilu-minados pelas ciências sociais, afirmaram com muita ênfase que o Reino tinha início aqui na terra. Embora a afirmação não fosse de todo descabida, criou-se um emergencialismo capaz de levar muitos a crer que, a principal fase do Reino de Deus, com solidariedade e paz, ocorria durante a vida terrena, o que foi um equí-voco. O Reino, de fato, começa a ser construído aqui, mas é eminentemente esca-tológico, indo se concretizar lá adiante, na eternidade. Paz, amor, comunhão, Deus-tudo-em-todos (cf. 1Cor 15, 28), como concreção final, são situações que se manifestam além das formulações irenistas de algumas correntes.

O amor está acima do romantismo; a comunhão, aprofundada no compro-misso, modelada na pericórese da Trindade, bem além da simples solidariedade e, por fim, o chalom suplantando a vulnerável pax humana. Na morte, Cristo vem nos buscar para o céu. O Pai planejou esse céu para nós, desde todo o sempre; não podemos decepcioná-lo. O céu é um estado de comunhão, com Deus, com as pessoas e com o universo.

A comunhão que há no céu é perene. Ali não há mais o perigo de equívocos, motivados por nossas vontades, pelos desvios de personalidade nem pelos efeitos do pecado: “Ó alma - diz São Boaventura - boa é a morte do justo por causa do descanso; melhor por causa da novidade; ótima por causa da segurança”. O Céu não pode ser confundido, nem com a apathéia ou a ataraxia dos filósofos gregos, nem tampouco com o nirvana dos budistas. Por não ser uma situação de estática ou de isolamento, nem englobar aquela idéia da paz eterna dos cemitérios, trata-se de uma realidade perfeita, inédita para olhos e corações humanos. São aquelas maravilhas nunca vistas, que Deus reservou para o seus: a paz/chalom para sempre.

O céu tem início quando o homem decide aceitar o perdão que Deus quer lhe dar. A vida eterna, que começa na morte, longe de um castigo ou um estigma, é um dom de Deus. Na morte o ser humano ressuscita, tornando-se “vivo com Deus”, com seu eu-pessoal dotado de liberdade e cognição. Ao contrário das teori-as mais tradicionais, o céu, como plenitude, não ocorre num remoto “fim dos tem-pos”, mas instaura-se a partir do fim do nosso tempo, do tempo da nossa vida. O homem chega a essa plenitude em sua dimensão completa: espiritual e corporal; corpo e alma. Sempre se impõe uma atitude de vigilância:

Estejam vocês prevenidos, pois o Filho do Homem virá na hora em que vocês menos esperarem...

O fato de saber que no céu não há mais lágrimas (cf. Ap 21, 4) nos revela a existência de uma nova ordem, orientada por Deus. Enquanto as lágrimas falam das fraquezas humanas, da dor, da frustração e da injustiça, revelando-se sinôni-mo de “mundo de pecado” (que vai acabar), o consolo da presença do Deus da Vida que enxuga essas lágrimas, denota a chegada do Reino, para sempre, onde todas as coisas más e desagradáveis foram extintas. Lágrimas, morte, dor, injustiça se-rão coisas inexistentes no céu, pertencentes à vida antiga, terrena. O mundo novo, o Reino dos céus, estará livre dessas coisas passadas.

O Paraíso está colocado no começo da Bíblia para nos dizer onde Deus quer que a gente chegue. O Reino é anunciado e instaurado por Jesus Cristo que quer nos mostrar como chegaremos lá. A Jerusalém Celeste está no fim da Escritura para mostrar que Deus garante que a meta será atingida. Paraíso, Reino e Jerusa-lém Celeste são juízos unívocos, formas de revelar a vida eterna no céu.

As palavras, não só de Jesus, nos evangelhos, mas dos profetas e dos cro-nistas sapienciais, são sempre no sentido de uma vigilância, uma ação preventiva contra as investidas do mal. O esforço pastoral da Igreja situa-se, igualmente, nessa linha. Na escatologia nos é dado observar um significativo aspecto axiológi-co, onde Deus respeita a escolha de valores por parte do homem. Na irrupção da morte-ressurreição, ele corrige a injustiça, socorre o penitente e aceita a auto-exclusão do ímpio. No estágio anterior, em vida, o justo sofre, o fraco é excluído e os maus parecem triunfar. Na morte, as coisas são colocadas em seus lugares. Instaura-se um “tempo” de justiça. No Livro do Apocalipse, Jesus revela, nos capí-tulos 21-22, a iminência da sua parusia:

Eis que eu venho em breve... (22, 7.12).

Nesse processo de revelação, ele traça, como que um divisor de águas: quem é justo, continue a praticar a justiça, e quem é sujo, continue a sujar-se (v. 11). As palavras de Jesus são como que um porto seguro, em face das tormentas da vida. Ali Deus é começo e realização de tudo, disposto a acolher e a matar a sede. Aca-bou-se a procura. Aqui o homem conhece de fato sua verdadeira finalidade. En-controu a felicidade e certeza de que para ela foi criado. Quando será o dia da nos-sa morte? Como morreremos?

O importante não é saber, nem a data nem as condições, mas estar prepa-rado (cf. Mc 13, 5. 23.33). Se a namorada vai se encontrar com o namorado, ela coloca uma roupa bonita, enfeita-se, pinta os lábios, põe pintura no rosto, isto é, se arruma com o que tem de melhor. E se, sabendo que vamos nos encontrar com Deus, mesmo não sabendo nem o dia nem a hora, o crente deve estar preparado para o encontro, desde cedo. É a nossa fé que nos induz a essa preparação.

Se o dono da casa soubesse a que horas vem o ladrão, certamente ele ficaria vigilante (Mt 24,43).

Se a morte é sempre iminente, por que não nos prepararmos para ela? O destino do homem, sabemos, está relacionado com sua decisão de vida. Morrere-mos como vivemos. O que decidirmos, com conhecimento e liberdade, terá como resultante uma opção final, eterna e decisiva.

A coisa mais certa da vida é a morte. É uma realidade da qual ninguém es-capa. Por isso é importante viver bem, amando, respeitando, perdoando e pedindo perdão. O dia de amanhã não está prometido a ninguém, jovem ou velho. Hoje pode ser a última chance de segurar bem apertada a mão de quem você ama. Não deixe de dizer “eu te amo!”. O amanhã pode não chegar... Se o amanhã não che-gar, você não terá que se arrepender pelo dia de hoje.

No campo espiritual, sabemos que assim como a salvação é comunitária, a perdição também ocorre em conjunto. Arrastamos os outros, e somos arrastados, para uma ou para outra opção. Há muitas teorias a respeito da hora da morte e do “fim do mundo”. Sobre a hora da morte, há quem diga que se recebe um “aviso”, sete dias antes. Outros afirmam que, mesmo o impacto do acidente, a dor do infar-to, a insensibilidade do derrame ou o estertor da morte violenta, dá alguns segun-dos de reflexão, análise da vida e abertura à reconciliação. Será?

Irmãos, fiquem firmes até a vinda do Senhor. Vejam o agricultor: ele espera o precioso fruto da terra e fica firme até cair a chuva do outono ou da primavera. Fiquem igualmente vocês firmes, fortalecendo os corações, pois a vinda do Senhor está próxima (Tg 5, 7ss).

Quando se fala em morte, ressurreição e salvação freqüentemente surge uma questão: a salvação é para todos? Jesus morreu por todos? A salvação, nunca é demais repetir, é dom de Deus extensivo a todos. Só o ser humano, usando mal sua liberdade, é que pode rejeitar a salvação oferecida, colocando-se na contramão da história. Da sua história. Depois que se fala na universalidade e na abrangência da salvação, invariavelmente surge outra questão: e a justiça de Deus? Ele não estaria tratando de forma igual a desiguais?

Se alguém é bom toda a vida e vai ter a mesma salvação oferecida a quem foi mau, onde a justiça divina? Em geral, tais questões são levantadas pelos “bons”, pelos “piedosos” e também pelos espíritas, como se todos encarnassem a antipáti-ca figura, tão conhecida do “filho mais velho” da parábola. Para seu legalismo, co-mo os fariseus, um grande pecado requer uma grande pena.

Na verdade, a justiça de Deus – e Ele seja louvado por isso – não é igual à dos homens. Sua justiça não é uma retribuição fria, mas sempre um ato da mais pura misericórdia. De fato, trata-se de uma questão complexa. Os que admitem certas “revelações” particulares, falam em três dias de trevas, sinais miraculosos, catástrofes, antes do fim, e outros sinais. Jesus mostra que a perseverança é a arma do cristão para enfrentar o “juízo” que vai ocorrer no fim da sua vida. Há quem resolva demitir-se do terreno, omitindo-se da solidariedade, com olhos só para o espiritual. A esperança de uma nova terra, longe de atenuar, antes deve impulsionar a solicitude pelo aperfeiçoamento desta terra.

Ao dizer que vem em breve, Jesus fala na iminência da morte humana. Ao mesmo tempo, enquanto fala em uma parusia iminente, ele se refere à retribuição, conforme a obra de cada um: o Reino preparado (Mt 25, 34) ou a perdição escolhida (v. 41). Por parusia entende-se a volta definitiva do Senhor. Estarão excluídos do “livro da vida” (cf. Ap 20, 15) os que deliberada e obstinadamente rejeitarem a suprema e definitiva oferta de Jesus, na morte. Ao contrário, o vencedor (da morte, do pecado e do mundo), de modo algum sofrerá danos, pois o Senhor estará com ele. A parusia, a morte, a irrupção do Reino, são iminentes. É preciso estar preparado. Nós nunca estamos suficientemente preparados, mas devemos demonstrar interesse em aceitar a oferta salvífica de Jesus. Por causa dessa iminência, o próprio Jesus, que não nos quer ver desprevenidos, diz:

Estejam vocês prevenidos, pois o Filho do Homem virá na hora em que vocês menos esperarem.

As três parábolas escatológicas (Mt 25) referem-se à necessidade dessa vigi-lância. Tanto as virgens imprudentes (vv. 1-13), como o empregado omisso (vv. 14-30) e os insensíveis (vv. 31-46), perderam a comunhão por causa de sua escolha equivocada. É tarefa primordial de todo o esforço pastoral da Igreja manter os fiéis atentos, sempre ligados na possibilidade da parusia iminente. Nessa contingência, Jesus, cujo múnus principal é ser nosso salvador, não quer que sejamos surpre-endidos, mas que nos mantenhamos vigilantes:

Portanto, fiquem vigiando, pois vocês não sabem qual será o dia nem a hora (Mt 25, 13).

A morte é vontade de Deus? Esta é uma pergunta que muitos fazem. Embo-ra seja um despropósito afirmar, quando da morte de alguém, que “foi vontade de Deus” ou que “Papai-do-Céu levou...”, sempre é bom lembrar que, mesmo não querendo a morte do homem, Deus se faz presente, junto a ele, nessa hora dramática, na pessoa de Jesus, do Espírito Santo, da Virgem Maria, dos santos e dos anjos, para ajudar o homem a “cruzar o rio”. Temos que atribuir a morte sempre razões biológicas. Morremos porque somos frágeis.

É importante que todo o esforço pastoral da Igreja se volte para uma peda-gogia libertadora a respeito do fenômeno da morte. Padres, diáconos, religiosos, “ministros da esperança”, simples leigos, todos devem estar atentos e solícitos a passar, seja ao moribundo, seja à família da pessoa que faleceu, o sentido cristão da morte. Não no sentido de afirmar que a morte ocorreu, por vontade ou omissão de Deus, mas por causa de nossa fragilidade (acidente), desgaste, saúde debilitada (idade), defeito congênito ou descuidos com a saúde (morte súbita ou provocada por enfermidades) ou mau uso da liberdade por meio de terceiros (imprudência, assassinatos, etc.).

Deus não quer a morte do pecador. (cf. Ez 18,23.32). Ele não mata ninguém. Morremos por causa da vulnerabilidade de nossa matéria. E Deus não fica alheio à nossa morte. Ele nos acolhe, abre seus braços para nós e nos recebe em seu Reino. Deus não quer a morte, tanto assim que “inventou” a ressurreição para que tivéssemos aquela “vida abundante” (cf. Jo 10,10) que Jesus anunciou.

O que se tem escutado, em muitas cerimônias fúnebres, é a inexperiência, falta de tato, até, de certos agentes, no afã de consolar, tentando justificar a morte como “vontade de Deus”. Isso, além de estar em desconformidade com a verdade teológica, cria traumas, revoltas e, não-raro, afastamentos: “Se ‘esse Deus’ levou minha mãe, ‘esse Deus’ não serve para mim...”.

Nas pregações, quer em funerais, quer em “missas de sétimo dia”, deve ha-ver um acentuado cuidado pastoral para não adentrar nos meandros da teologia, seja através dessa ou daquela teoria, que são formulações difíceis de o povo com-preender. É sempre mais prudente usar a linguagem da graça e da comunhão dos santos. A mensagem deve ser séria, porém alegre. Quando se observa, cada vez mais o crescimento dos cultos à reencarnação e das práticas esotéricas, é preciso, mais do que nunca, resgatar o sentido cristão da morte.

O maior erro que é cometido, com relação à morte de uma pessoa, especial-mente pelos parentes e amigos próximos, é entrar em desespero ou remoer antigas mágoas ou divergências. Isso só agita o moribundo, transferindo para ele uma carga de sentimentos negativos, contraditórios e amargos. Ele morre em angústia, sem paz, sozinho... O agonizante envereda por um caminho desco-nhecido. Tem medo. Sente-se cercado de fantasmas. Reaparecem antigas culpas. O que lhe sobra de forças vitais protesta contra a morte.

A impressão de estar caminhando para o nada, leva-o a pensar que até Deus deixa de ser realidade. Talvez esteja sentindo a ameaça de um poder hostil que não vê, mas cuja presença fria, agrava sua solidão: a do príncipe deste mundo (cf. Jo 12, 31), o assassino desde o começo (8, 44), que possui o império da morte (cf. Hb 2, 14), cujo mistério opaco é ser a não-comunhão.

Na morte Deus realiza o sonho do ser humano: viver para sempre. Em Jesus Cristo, Deus vem, na morte, generosamente, ao encontro do homem. É salutar orarmos, pedindo uma morte santa. A utopia vira realidade; o sonho se concretiza. O impossível ao ser humano, buscado e expectado através da história, torna-se viável, pelo amor. L. Boff afirma: “o futuro, absoluto e misterioso, sem perder sua natureza futura, uniu a si o homem de tal forma que com ele fez uma história. Assim realizou absolutamente o homem em Deus. Quando afirmamos e cremos nisso, cremos e afirmamos a fé na encarnação de Deus”.

O último inimigo, diz São Paulo, a ser vencido é a morte (cf. 1Cor 15, 26). Que morte é essa que será, segundo o apóstolo, vencida no fim? Em primeiro lugar podemos relacionar a morte física, esta que conhecemos (e tememos), e seus correlatos, como sofrimento, injustiça, pecado. Também o autor e princípio do mal, Satanás, será vencido no fim. As derrotas temporárias e circunstanciais serão transformadas na grande vitória da Vida, para sempre, convertendo tudo em justiça e paz. Talvez por essa razão, Francisco louvava a Deus, pela “irmã morte”, pois ela o aproximava do Infinito.

Ao nos referirmos à morte, precisamos deixar claro, do ponto de vista cris-tão, as causas da morte biológica, como falência do sistema vital, de sua tensão com o desejo de viver, do medo de viver, que muitos têm (às vezes maior que o me-do de morrer), deixando bem claro que a morte não é o fim, mas começo, passa-gem; páscoa. A partir dessas referências, colocamos a morte cristã em oposto à morte materialista ou pagã. Durante a vida, o ser humano é habitado pela morte, pelo menos do ponto de vista natural, da qual morrerá. No entanto, e a esperança cristã nos coloca esse sentido, mais do que um ser-para-a-morte, como afirmou M. Heidegger, o homem foi criado para ser um ser-para-além-da-morte. É bem diferente. A morte nunca vence; ela sempre perde. A ressurreição de Cristo infligiu à morte uma irreparável derrota. Seu sucesso é apenas aparente. Na vida que é transformada, configura-se a vitória de Cristo que nos diz:

Tenham coragem, eu venci o mundo! (Jo 16, 33),

Nesta frase ele afirma sua vitória sobre a morte e o pecado. Quem crê em Jesus Cristo sempre tem motivos para celebrar a vida, em qualquer circunstância. A vigilância, conforme já foi visto, torna-se uma das armas cristãs contra morte eterna (cf. Mt 24, 42; 25,13). Jesus, com sua morte, inaugura um sepulcro novo, jamais usado. Tal sepultura é tipo, uma figura referente ao fato de sua morte e posterior ressurreição, abrir novo horizonte místico e antropológico na vida huma-na, que ultrapassa as fronteiras da morte biológica. A morte de Jesus, por causa da Ressurreição, é um fato novo.

Tentar compreender os desígnios de Deus é um erro. O correto – para a pes-soa de fé – é aceitar, com a convicção que ele sempre faz o melhor para todos. Deus só pode ser nosso tudo se for infinito. E o infinito não pode ser compreendi-do. Por ser Deus imenso e incompreensível é que podemos esperar nele o encontro com as coisas boas, melhoradas e transformadas, inclusive os entes queridos que nos precederam na vida eterna. A família abalada pela morte de um ente querido, desassistida pela pastoral de sua Igreja, depois da revolta, é capaz de empreender aquela migração silenciosa, seja no terreno da perda da fé, ou ca-nalizando-a para outros cultos ou sistemas religiosos.

O sentido cristão da morte nos leva a ver o fenômeno do desaparecimento fí-sico com menos temor, através de uma visão mais clara da eternidade e da vida com Deus. A parusia, como vinda de Cristo, está sempre ocorrendo. Deus nos ama a seu modo: sem limites. O homem é aceito e amado por Deus apesar de suas fra-quezas. É por causa dessas fraquezas que Jesus empreende sua parusia.

Como diz o grande teólogo checo L. Boros, “Pela ressurreição tudo se tornará então imediato para o homem: o amor se desabrocha na pessoa, a ciência se torna visão, o conhecimento transforma-se em sensação, a inteligência se faz audição. Desaparecem as barreiras do espaço: a pessoa humana existirá imediatamente onde estiver seu amor, seu desejo, sua felicidade. No Cristo ressuscitado tudo se tornou imediato, isto é, desapareceram todas as barreiras terrenas. Ele penetrou na infinitude da vida, do espaço, do tempo, da força e da luz”.

A quem aceita a morte como uma passagem de estado, uma mudança para melhor, a separação dói menos e a expectativa do reencontro torna-se mais palpá-vel. O Deus da vida dá sentido a tudo; até à morte. A vida após a morte é a vida definitiva da pessoa humana, concreta e total. No céu nos tornamos definitivos. Eternamente definitivos.

No céu acaba todo o sofrimento. Na morte cristã deve ser dada sempre a ên-fase às “muitas moradas” (monai pollai) que existem na casa do Pai (cf. Jo 14, 2). Elas trazem consigo a idéia semita de uma grande mansão, lugar amplo e confor-tável, onde os peregrinos repousam depois de uma longa e estafante jornada. A expressão quer dizer “na casa do Pai há lugar para todos” (todos que queiram ir para lá, bem entendido). Na continuação, há uma das maiores promessas de con-soladora esperança:

E quando eu for e lhes tiver preparado um lugar, voltarei e levarei vocês comigo, para que onde eu estiver, estejam vocês também (Jo 14, 3).

No clímax do Apocalipse enxergamos a presença de Cristo enxugando as úl-timas lágrimas dos olhos de seus amigos (cf. 21, 4; Is 25, 8). Desaparece a dor, os motivos para chorar, a morte e as contrariedades, pois Deus está com eles, para sempre. Esta frase, já aludida,

... Ele vai enxugar toda a lágrima dos olhos deles (Ap 21, 4)

com muita esperança e amor filial, mandei escrever, em 1989, na lápide de dona Mercedes, minha mãe.

Se fôssemos ateus ou descrentes, o que não somos, teríamos ainda, quem sabe, a esperança. Ela foi a única coisa que sobrou da caixa, de Pandora, cheia de presentes, na mitologia grega. Ter esperança, e especialmente a esperança cristã, que nos é infundida no batismo, é vencer o mundo e não temer os efeitos da mor-te.

A história humana pode ser caricaturada e grotescamente transformada, com o homem deformado pelo mau uso da razão e da liberdade. No entanto, em Jesus está o ponto ômega da vida e da história. Com essa certeza, como um pro-feta, a pessoa que tem fé pode esperar contra toda a esperança.

A esperança, além de espiritual, abrange também o sucesso, por assim di-zer, do corpo. As expressões basar ou soma querem dizer, tanto no hebraico como no grego, a mesma coisa: homem-corpo, para designar o homem todo, inteiro, en-quanto ser-em-comunhão-com-outros (cf. Rm 12, 1; 1Cor 7, 4; Fl 1, 20). O corpo, criado por Deus é valor de relação sociopolítica no mundo e na história. Não se pode pensar o homem, nesta ou na outra vida, sem corpo, mesmo porque não há ressurreição sem corpo.

O sentido cristão da morte pode ser buscado na vida. Ela se matura e anseia por uma transformação. Viver eternamente a vida biológica seria para o homem como que uma maldição, uma ruptura de finalidade. É como se o grão de trigo não quisesse virar pão, ou as rosas se negassem a enfeitar os vasos. Tudo teria passa-do, cumprido um projeto, ele não. É fácil imaginar a tragédia da larva que jamais se tornasse borboleta. Ao contrário, cumprir o objetivo criacional dá uma sensação de vitória. Sobre este aspecto há, ao nosso redor, muitas lições. Basta olhar a na-tureza. Um apego excessivo à vida material é uma forte de rejeitar a eternidade que Deus criou para curar nossas dores e mazelas humanas.

A semente não é a planta. A planta só nasce com a morte da semente. “A seguir Deus lhe dá o corpo como quer: ele dá a cada uma das sementes o corpo que lhe é próprio” (1Cor 15, 38). É com essa esperança que Paulo encerra a ques-tão, recordando que as próprias comunidades, em suas celebrações, já festejam a vitória de Jesus sobre a

A morte, vivida no seu mais puro sentido cristão, com fé e esperança como dom do amor, se converte em vida eterna, abundante. Essa nova situação, real e concreta, por ser obra de Deus, possui em si todos os elementos para se tornar uma grande festa, uma kizomba, uma verdadeira e interminável apo-teose.

Banalizada e rejeitada, vista apenas pelo enfoque material, a morte se torna um drama desesperador, algo sem explicação e que deixa um vazio muito amargo. Nesse espírito, Shakespeare († 1616), no monólogo sobre a finitude do ser (in Hamlet), revelando um desconhecimento sobre o além questiona: “Morrer, dormir, dormir, sonhar, quem sabe?”. A quem tiver sede, diz o Senhor, aos que têm fé e esperança na vida que há de vir, será dada, de graça, a “água da vida” (cf. Jo 4, 14; Ap 21, 6b), que nada mais é que a vida eterna, alegre, feliz, sem os percalços e tribulações da vida atual.

Na esperança da ressurreição há que descobrir o verdadeiro sentido da mor-te cristã. Pastoralmente, a morte abre ricas possibilidades de evangelização, não só para quem está morrendo, mas também de toda a comunidade, especialmente a família do moribundo ou falecido, que busca um vigoroso conforto no espiritual. Mesmo no seio das comunidades cristãs, volta-e-meia repete-se sempre a velha questão: como é a vida depois da morte? Na verdade, eu não sei. Ninguém sabe.

A fé, no entanto, nos faz suspeitar de algo muito bom, grandioso, eterno, in-comensurável. As Escrituras, devidamente interpretadas, de acordo com a visão cultural da época em que foram escritas, dão sólidos subsídios. Jesus é o artífice da nossa vida eterna, e ele não se contentaria em criar algo que fosse medíocre, limitado, com lacunas ou suscetível a retrocessos.

Quem crê em Deus não deve temer a morte. Ela é apenas uma passagem. Ao morrer fechamos os olhos para enxergar melhor. Referindo-se à presença de Deus ao lado do homem, o profeta usa a imagem grega de “cruzar o rio” para exemplificar essa passagem.

Quando você atravessar a água, eu estarei com você e os rios não o afogarão; quando você passar pelo fogo, não se queimará e a chama não o alcançará, pois eu sou Javé seu Deus, o Santo de Israel, o seu Salvador. Para pagar a sua liberdade, eu dei o Egito, a Etiópia e Sabá em troca de você, porque você é precioso para mim, é digno de estima e eu o amo; dou homens em troca de você, e povos em troca de sua vida. Não tenha medo, pois eu estou com você (Is 43, 2-5).

Jesus nos prometeu a “água-viva” da fartura eterna. Na Palestina, por ser uma região semi-árida, vendiam água, que era comercializada como uma riqueza. Igualmente, a “água viva”, a graça salvífica de Deus é o nosso maior bem espiritu-al, e como tal deve ser buscada e armazenada. Trata-se da graça do amor, da vida eterna, da amizade com Deus. Essa “água viva” é o ideal para nossa sede espiritu-al, nesta vida e na outra. Ela resume todos os nossos sonhos, objetivos e esperan-ças.

Com a subvalorização das missas de sétimo-dia, individuais ou coletivas, os padres estão perdendo excepcional oportunidade de evangelização. Nessas ocor-rências, a Igreja fica cheia de gente. Em falecimentos, muitas pessoas, profunda-mente abaladas, procuram uma âncora. É a ocasião propícia para os ministros da palavra espalharem as sementes do evangelho.

Repetindo os teólogos, afirmo que ninguém tem maiores dados sobre a vida depois da morte. De fato, não existem muitas informações exceto aquelas pistas que a Bíblia nos fornece, e que, se não nos dão uma compreensão exata, visto que nossa compreensão esbarra no mistério, servem para nos a dar confiança de que não estamos sozinhos, e que do “outro lado” um Pai, cheio de misericórdia, nos espera de braços abertos. As perícopes bíblicas nos dão algumas pistas. Uma delas nos é revelada suficientemente por São Paulo:

O QUE OS OLHOS NÃO VIRAM,

OS OUVIDOS NÃO OUVIRAM

E O CORAÇÃO DO HOMEM NÃO PERCEBEU,

FOI ISSO QUE DEUS PREPAROU

PARA AQUELES QUE O AMAM

(1Cor 2,9)

Excerto do curso “O grão de Trigo” ministrado em comunidades e casas de formação no RS, SC, PR, GO. SP e MS. O autor é teólogo Leigo, Mestre em Escatologia e Doutor em Teologia Moral. Escreveu mais de cem livros, entre eles “O grão de Trigo. Reflexões Cristãs sobre a vida depois da morte” (sua tese de Mestrado). Editora Ave-Maria, 2000.