ASPECTOS MÍSTICOS NO CORPUS PAULINO(*)

ASPECTOS MÍSTICOS NO CORPUS PAULINO(*)

Inácio Strieder(**)

Introdução

Nos escritos de Paulo encontra-se a dinâmica da mística apostólica, protótipo para toda a vida cristã. O que animou os apóstolos a partirem para a missão foi seu encontro com Cristo, iluminado pelo Espírito Santo. A força mística na vida de Paulo despertou, e desde então o envolveu, a partir do momento de seu encontro com o Ressuscitado em Damasco. Durante toda a sua vida esta força espiritual não mais o abandonou. Ela está manifesta em seus escritos, em suas pregações, em sua atividade missionária. Planeja levar a mensagem de Cristo até os confins da terra (a Espanha!). Paulo não se enclausura em sua experiência mística. Ele deseja que os cristãos o imitem (1 Cor 4,16), e orientem suas vidas como ele próprio estava vivendo a sua: “já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20). Em relação a este Cristo, Paulo vive a mística da cruz e da ressurreição.

Nas biografias de Paulo, nem sempre se faz a devida justiça ao aspecto místico de sua experiência religiosa e de seus ensinamentos. No entanto, nada é mais característico em Paulo do que sua dimensão mística. Ele é um homem com um temperamento místico-religioso profundo. Não se satisfazia com uma religiosidade que se resumisse em práticas exteriores. Estas práticas deviam estar envolvidas pela fé em Cristo, e a devida interioridade espiritual. A sua argumentação conduzia a um Centro. A verdade que o alimentava era mística e vital. A experiência de sua vida, e os ensinamentos que dali fluíam, são exemplos para a espiritualidade dos cristãos em todos os tempos. A mística era a alma de seu apostolado.

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(*) Já é convencional, entre os estudiosos do Novo Testamento, designar por “Corpus Paulino” o conjunto das 13 cartas atribuídas ao Apóstolo Paulo. No entanto, este “corpus paulino” é dividido em três categorias: a) cartas proto-paulinas (1 e 2 Cor, Fl, Fm, Gl, Rm 1 Ts). Admite-se, geralmente, que Paulo é o autor destas cartas; b) cartas dêutero-paulinas (Cl, Ef, 2Ts). Considera-se que, provavelmente, estas cartas foram escritas por discípulos de Paulo; c) cartas trito-paulinas (1 e 2 Tm, Tt). Estas cartas já refletem problemas das comunidades de Paulo, posteriores à sua morte.

(**) Inácio Reinaldo Strieder é natural de Cerro Largo/RS. Em 1975 concluiu seu Doutorado em Teologia Bíblica, na Universidade de Münster/Alemanha, sob a orientação do Prof. Dr. Joachim Gnilka. Foi professor Titular da UNISINOS/São Leopoldo/RS (1975/76); Prof. Titular da UNICAP/Recife (1977-1988); Prof. Associado da UFPE/Recife (1988-2010). Desde 2010 é Coordenador do Curso e Teologia da Faculdade de Teologia Integrada (Recife-Igarassu/PE). Colabora com diversas revistas acadêmicas; escreve semanalmente para periódicos virtuais e colabora com o Jornal do Commercio/Recife.

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Nos inícios da Reforma Protestante se alimentou uma aversão a tudo que se considerava místico. De fato, na Idade Média haviam-se propalado como experiências místicas comportamentos que, muitas vezes, não passavam de esquizofrenias. Lutero, inclusive, teve que se confrontar com o “místico” Thomas Müntzer. Mas, passados alguns séculos, esta aversão à mística foi superada, ao menos, nas igrejas protestantes históricas. E, embora a Igreja Católica nunca deixasse de registrar experiências místicas, contudo quem, desde o séc. IXX, pesquisou e escreveu mais sobre a dimensão mística do cristianismo, e, especialmente, em relação à vida e ensinamentos do Apóstolo Paulo, foram pesquisadores da Reforma.

Entre os estudos iniciais, sobre a mística do Apóstolo Paulo, destacam-se os escritos de: JAMES M. CAMPBELL, Paul the Mystic (1908); ALBERT SCHWEITZER, Die Mystik des Apostels Paulus (1930); MARTIN DIBELIUS, Glaube und Mystik bei Paulus (1931); Paulus und die Mystik (1939). No Brasil, as pesquisas e os escritos sobre a mística de Paulo somente cresceram recentemente. Entretanto, os estudos sobre o Apóstolo Paulo se multiplicaram extraordinariamente, abordando múltiplos aspectos de seus ensinamentos, de sua vida e de sua espiritualidade. Até hoje a atividade e os ensinamentos deste Apóstolo das Gentes não deixam de inspirar escritores, pesquisadores e teólogos. Nosso objetivo, no presente escrito, é nos determos em alguns aspectos da mística na vida e nos ensinamentos de Paulo.

O Apóstolo Paulo deve ser considerado o primeiro grande místico da história do Cristianismo. É dele que se extraem as características da autêntica mística cristã, em contraposição a tantas outras místicas da Antiguidade e dos tempos atuais.

1. Mística e Mistério

“Mística” é um conceito que vem do verbo grego “myein”, que significa: fechar os olhos, fechar a boca. De “myein” também vêm as palavras “mistério”, “misticismo”. Interessante é que, no texto latino do Novo Testamento, “mysterion” foi traduzido por “sacramentum”. Em todo mistério (em todo sacramento!), em toda experiência mística há algo inefável, indescritível, inexplicável, impronunciável através de conceitos racionais. O filósofo Wittgenstein dizia: “sobre aquilo que não podemos falar, melhor é calar”. Por isto, para que o mistério tenha sentido é necessário meditar e interiorizar seu conteúdo. A experiência mística é algo profundamente interior, que mexe com a profundidade do ser. Transforma a vida e a visão de mundo de quem faz tal experiência.

Na tradição filosófica, na gnose, nas religiões orientais e nas religiões mistéricas do ocidente entende-se que a experiência mística leva à unificação e à uma certa fusão com a divindade. O que se aproxima duma, ou resulta numa, compreensão panteísta do Todo, do Uno, do Nada (cf. ULLMANN, A mística de Plotino, 1998).

Na história das religiões, acredita-se que a experiência mística pressupõe uma série de exercícios: jejuns, exercícios ascéticos, danças, yoga, meditação, reflexão, sacrifícios, sofrimentos, negação do mundo da matéria... Só assim o homem se conseguiria libertar da prisão da matéria, e se elevar à união extática com o Ser Absoluto. Em contraposição a isto, Paulo não prescreve nenhum exercício para vivenciar experiências místicas. Nem entende como vivências místicas êxtases, ou quaisquer práticas ascéticas de negação da vida no dia a dia, ou de frequência a cultos e práticas rituais. Ele mesmo vive uma vida de trabalho, de viagens, e aconselha: “quem não quiser trabalhar, que também não coma” (2 Tes 3,10). Ensina que o verdadeiro culto espiritual do cristão consiste em oferecer seu corpo como hóstia viva, santa e agradável a Deus, não se conformando com o mundo, para discernir a vontade de Deus quanto ao bom, ao agradável, e ao perfeito (Rom 12, 1-2).

A proposta mística de Paulo não é panteística, nem de negação ou fuga do mundo. Nem é uma mística quietista apocalíptica, com êxtases e exercícios piedosos. Mas é uma mística cristológica, que significa deixar que o Espírito de Cristo dinamize o fiel para uma vida em que se busca a perfeição, através do serviço comunitário benéfico. Mas, Paulo também está consciente de que uma vida assim somente se sustentará com uma fé inabalável na presença do Cristo, que está em nós: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”(Gal 2,20). O que significa, deixar-se envolver e ser possuído pela pessoa e mensagem de Cristo.

Vejamos, a seguir, alguns aspectos do testemunho de vida e dos ensinamentos místicos de Paulo.

2. O fundamento da mística paulina

A questão que sempre aflora quando se discute Paulo é a pergunta sobre a raiz principal de seus ensinamentos, e de sua compreensão do mundo. Paulo é judeu ou grego em seu pensamento? Entre os intérpretes atuais de Paulo há um certo consenso de que sua teologia se fundamenta mais na tradição e linguagem do Antigo Testamento do que na filosofia e religiosidade do helenismo.

Com base em sua formação farisaica, Paulo, já antes de ser cristão, acreditava na possibilidade da ressurreição. É a partir desta fonte doutrinária que ele adere incondicionalmente ao fato da ressurreição de Cristo. A certeza de sua fé no Cristo Ressuscitado não possui raiz em religiões mistéricas ou gnósticas do mundo grego.

Outro aspecto a considerar é sua doutrina escatológica da expectativa pela vinda do reino de Deus e do próximo fim dos tempos. Esta escatologia não provém do mundo helênico, mas a encontramos no ambiente cultural judeu no tempo de Jesus. Os textos dos monges de Qumran são um testemunho disto.

Segundo Albert Schweitzer, em seus livros sobre a mística paulina e a doutrina do Reino de Deus, Paulo teria reinterpretado a escatologia de Jesus, já que seu retorno, para instaurar o Reino de Deus, não se havia verificado logo após sua crucificação. Paulo, então, teria ensinado que, de fato, Jesus voltaria em breve, mas que, no tempo intermediário, os fiéis poderiam se tornar, efetivamente, membros do Corpo de Cristo, através da morte e ressurreição místicas, que se realizavam no batismo. Desta doutrina, segundo Schweitzer, teria nascido a teologia paulina do “estar-em-Cristo”. No decorrer do primeiro século a fé cristã teria girado ao redor do “estar-em-Cristo”, do batismo, da comunhão, da ressurreição, do sofrimento, da justificação pela fé, do Espírito Santo, e outros tópicos teológicos. Schweitzer também se detém em discutir a ética paulina, e a importância do amor como dom máximo do Espírito.

Após isto, Schweitzer ainda se preocupa em mostrar como os cristãos mudaram a visão escatológica de Paulo, no decorrer do segundo século, para se adaptarem à realidade da ausência do Cristo e do Reino de Deus, com o fim de combater as heresias do gnosticismo.

As considerações de Schweitzer sempre foram consideradas interessantes, mas não definitivas. Mesmo permanecendo polêmicas, abriram um flanco de pesquisas e considerações teológicas, com importantes consequências para a compreensão da teologia paulina.

Segundo Schweitzer, a mística paulina não é “teológica”, mas “cristológica”. No entanto, Paulo não visa uma fusão com Cristo. Paulo nunca será Cristo, nem Cristo Paulo. O homem jamais será Deus. Sua proposta de uma existência “em Cristo” se assemelha ao que acontece com os pássaros, que necessitam do ar para voar; ou dos peixes, que necessitam da água para nadar. Paulo considera o “estar em Cristo”, como o ambiente em que o fiel está mergulhado. Tudo o que se verifica em sua vida Paulo a teria interpretado a partir deste envolvimento: “Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus...” (Gal 2,20). Esta consciência de Paulo, expressa em Gálatas, é complementada com a explicação de 2 Cor 5,17: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova”.

É esta a moldura que orienta toda a existência e os ensinamentos de Paulo, e deveria orientar a vida de todos os fiéis.

3. Paulo e o Cristo da Fé

O Cristo de Paulo é o “Cristo da fé”. O Cristo transcendente. Este é o único que ele conheceu e pregou. Paulo, sem dúvida, é o Apóstolo que melhor entendeu este Cristo e seu evangelho. Paulo nunca viu nem ouviu a voz do “Jesus histórico”. Da vida terrena de Jesus o Apóstolo apenas menciona o nascimento, a morte e a ressurreição. Não procura reconstituir detalhes da biografia de Jesus. Isto ele deixou a cargo de Lucas, seu companheiro.

A Paulo interessa o Cristo, cujo corpo místico, agora, é a Igreja. Se procurasse o Jesus terreno, estaria como que procurando “um vivo entre os mortos”. O Cristo de Paulo é “Jesus Cristo”, o crucificado e o ressuscitado, que continua vivo, constantemente presente na vida da Igreja e na vida daqueles que aceitam seu Espírito. E este é o “Cristo da fé”, o “Cristo cósmico”, cujo Espírito perpassa o Universo. Este é o único Cristo vivo a que os fiéis de todos os tempos têm acesso. Este é também o Cristo transcendente (místico) da Igreja de hoje. Para os cristãos já não é suficiente saber que Jesus viveu nesta terra, pois eles querem ter a certeza de que Ele vive atualmente.

A mística de Paulo é inicialmente uma mística reativa. A iniciativa para sua nova vida foi de Cristo, não de Paulo. A sua união com o eterno não foi uma conquista humana, mas um dom de Deus. Não resultou de exercícios espirituais, mas de uma auto-revelação de Deus. Nas palavras de Paulo: “houve por bem (a Deus) revelar seu Filho em mim” (Gal 1,15-16), está expresso de que a experiência de Damasco está no início de sua experiência mística. A iniciativa partiu de Deus. Paulo, num primeiro momento, apenas reagiu à ação de Deus. Mas, em seguida, ele se torna proativo. Parte para a Arábia, onde medita, contempla e reflete para entender o Cristo e o evangelho que lhe fora revelado. Depois se mistura aos judeus e aos gentios para, com todas as energias de sua existência, se empenhar na vivência e divulgação do Evangelho de Jesus Cristo. Assim, sua vida assume uma mística missionária de ação. Mas com que métodos ele se sustenta em sua fé? Vejamos:

4. Pilares da vida mística de Paulo:

4.1 – A Oração: Paulo foi um homem de oração. Aconselha aos fiéis a serem “assíduos na oração” (Rom 12,12), a “orar sem cessar”(I Tes 5,16). Ele mesmo deseja estar em constante comunhão com Deus. Aos colossenses comunica que “Epafras luta sem tréguas por vós nas suas orações” (Col 4,12). Aqui está expressa a convicção de que a oração é um trabalho que beneficia a outros. Trabalhar é rezar, e rezar é trabalhar. Aos efésios aconselha “com orações e súplicas de toda sorte, orai em todo tempo no Espírito, e para isto vigiai com toda perseverança e súplica por todos os santos. Orai também por mim...” (Ef. 6,18-19). Assim como solicitou aos efésios orarem “por todos os santos”, solicita a Timóteo que se “ore por todos os homens” (1 Tm 2,1). A dimensão da oração em Paulo, misticamente, inclui a todos os homens. O seu interesse pela salvação dos homens quer ser do tamanho do amor de Deus.

4.2 - A meditação: Paulo se prepara para sua vida cristã retirando-se ao deserto da Arábia, não com a intenção de ali permanecer, mas para alimentar sua vida interior, meditando e orando. Preparando-se, assim, para sua atividade entre os gentios. O tempo em que ali passou em comunhão consigo mesmo e com Deus não foi perdido. Neste tempo, como recomenda posteriormente a Timóteo, ele mesmo se “fortificou pela graça que está em Cristo Jesus”(2 Tm 2,1).

Certamente não há outros assuntos mais adequados sobre os quais meditar do que aqueles que Paulo recomenda: “irmãos, ocupai-vos com tudo o que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso, ou de qualquer modo mereça louvor” (Fl 4,8). Estes são assuntos que merecem serem interiorizados e, posteriormente, objetivados na vida do dia a dia. A meditação paulina não tem o objetivo de apenas produzir um gozo interior. Ela deve alimentar o espírito para uma vida de acordo com o Evangelho.

4.3 – A indiferença em relação ao mundo exterior: em meio a sua vida extenuante, escrevendo em meio às condições turbulentas de seu tempo, Paulo admoesta: “irmãos: o tempo se fez curto. Resta, pois, que aqueles que têm esposa, sejam como se não a tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que se regozijam, como se não se regozijassem; aqueles que compram, como se não possuíssem; aqueles que usam deste mundo, como se não usassem plenamente. Pois passa a figura deste mundo” (I Cor 7,29-31). Neste texto o Apóstolo admoesta que nenhum bem deste mundo se deve sobrepor aos valores transcendentes da vida no mundo de Deus. Ter em mente, em primeira instância, este mundo de Deus é incompreensível aos que não conseguem superar os valores dos sentidos. O referencial do cristão será diferente. Sua espiritualidade não se alimenta com o que é imediatamente perceptível, mas busca sua força no mundo místico do mistério de Deus. Paulo aspira pelas “coisas do alto” (Col. 3,2), admoestando os fiéis para que se purifiquem “de toda mancha da carne e do espírito” (II Cor 7,1), conservando-se assim sob as ordens de Deus, como vivos dentre os mortos.

4.4 – Indiferença e ética cristã: Esta indiferença em relação às coisas terrenas só se entende se nos lembrarmos que Paulo vivia na expectativa de um iminente fim do mundo. Em vistas a este próximo fim, todos os bens da terra perdiam seu significado e valor. Mas, Paulo, mesmo com esta expectativa, não se tornou um zelota fanático. A indiferença frente aos bens da terra, o mune com uma grande liberdade interior. Frente à realidade presente, na qual os cristãos deviam continuar a viver, usufruindo dos bens da terra, Paulo prepara o futuro da Igreja, propondo um modo de proceder ético relacionado com Cristo, transformando o conceito “Espírito” num conceito ético. Em seu pensamento escatológico concebe a ética como uma vida no Espírito de Cristo, criando uma ética cristã válida para todos os tempos.

4.5 – Ensinamentos místicos diversos: Os ensinamentos místicos de Paulo perpassam todas as suas cartas. É ensinamento místico que, pelo batismo em Cristo, os homens se tornam filhos de Deus. Isto não é verificável com conceitos humanos. Também não é verificável lógica, nem psicológica, nem sociologicamente que, pela adesão a Cristo, desaparecem as diferenças entre senhores e escravos, entre homens e mulheres, entre gregos e romanos (hoje Paulo, com certeza, acrescentaria: não haverá mais diferença entre clérigos e leigos, entre religiosos consagrados e leigos profanos...); todos se tornam “irmãos”. Não é também compreensível racionalmente que a Igreja é o corpo místico de Cristo, nem que o crucificado ressuscitou, nem que Cristo está em seus fiéis, nem que o pão e o vinho eucarísticos são o corpo e o sangue de Cristo, nem que haverá fim de mundo, nem que os mortos ressuscitarão. Também não é racional que Cristo é nosso Salvador, que morreu para nos libertar de nossos pecados e que está acima de todas as hierarquias e dominações, tanto do bem como do mal. Além disto, Paulo ainda ensina que a invisibilidade de Deus está manifesta no mundo visível. Doutrina que inspirou aos cristãos a pesquisarem a natureza e desenvolverem as ciências, criando escolas e universidades.

Bastam estas referências a alguns dos ensinamentos de Paulo, racionalmente inatingíveis, para comprovar que sua visão do mundo, da vida e do sentido da vida humana está fundamentada num transcendente místico. Esta transcendência mística da teologia e da fé cristã, enunciada por Paulo, fez com que o cristianismo se pudesse tornar a religião da ekoumene (católica), sem limites étnicos e históricos.

5. – Nas trilhas da mística paulina:

Todos os verdadeiros místicos do cristianismo se conduzem pelas trilhas da mística paulina. É a mística do “ora et labora”; da mística de muitos organizadores de comunidades cristãs missionárias, caritativas, educacionais e civilizatórias. Em cada época histórica se descobrem novos aspectos místicos ainda não explorados, inerentes aos ensinamentos de Paulo.

Em relação aos sistemas sociais, políticos e econômicos de nosso tempo, a teóloga luterana Dorothee Sölle (1929-2003) desvelou um sentido místico em um texto de Paulo, que, até agora, não era interpretado assim. Este texto está na Carta aos Romanos , onde Paulo pergunta: “Quem me libertará deste corpo de morte?” (Rom 7,24). E Paulo responde a si mesmo: “Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso” (Rom 7,25).

Este texto, inúmeras vezes, foi interpretado como um grito desesperado de Paulo frente aos sofrimentos de seu “corpo” fragilizado, desejando se libertar desta vida para estar com o Senhor na eternidade. Nestas interpretações permanece-se numa compreensão tacanha do conceito “soma”(corpo) em Paulo.

Paulo pode falar na Igreja como o “corpo” de Cristo, ou no sacramento eucarístico, em que o pão e o vinho consagrados se tornam o “corpo” e o “sangue” de Cristo, porque, para ele, “soma” não significa simplesmente os limites de nossa dimensão corporal física. “Soma”, para Paulo, é muito mais. A Igreja (a comunidade dos cristãos) é a objetivação do “soma” de Cristo, i.é, de tudo aquilo que se pode tornar visível da divindade e do Evangelho de Jesus Cristo, através daquilo que os fiéis vivem e fazem. Através do “soma” de Cristo (a Igreja), o Cristo vivo e ressuscitado se objetiva no mundo, comunicando seu Espírito.

Fundamentados no conceito amplo de “corpo” em Paulo, voltemos ao sentido místico de Rom 7,24-25.

A morte no cristianismo é interpretada de diversos modos. Paulo, quando fala da morte, não pensa, em primeiro lugar, na morte física do indivíduo, mas no poder destruidor universal que se opõe a Deus, e domina o mundo. É o Império que se apresenta como a “Pax Romana”, mas mundialmente se fundamenta na escravidão. Paulo entende que o mundo de então subjuga os homens a viverem sob o poder do pecado. Na Carta aos Romanos o conceito “pecado” é usado 48 vezes de forma genérica, enquanto o mesmo conceito, no sentido de ações pecaminosas individuais ocorre apenas 7 vezes. Isto significa que, para Paulo, o mal do pecado não provém primordialmente de ações individuais, mas é uma realidade social, que impregna o Império Romano, e subjuga os homens.

As caracterizações centrais do pecado por Paulo têm um denominador comum: são descritas a partir das relações de dominação, e não em categorias de culpa e ação. O Apóstolo não critica as construções majestosas, nem os banhos em piscinas luxuosas no Império Romano. Em suas viagens missionárias visitava as comunidades judaicas. Ali constatava a situação de pecado a que eram sujeitadas: pesados trabalhos corporais e amarga pobreza. A partir desta situação criticava as imposições imperiais, muitas vezes contrárias às tradições da Torah do povo judaico. O Imperador Calígula (37-41), por exemplo, exigiu que sua imagem fosse exposta no templo de Jerusalém, com honras divinas.

O historiador romano Tácito caracteriza os sofrimentos da maioria dos homens, sob o poder romano, como escravidão. Isto Paulo sabia muito bem. Ele denomina esta escravidão de “pecado”. O soldo deste pecado é a morte, que exige a submissão ao pecado. Que morte é esta?

Não é a morte biológica do indivíduo, o fim da vida transitória de todos os homens. Significa algo bem diferente. É a submissão ao poder tirânico do pecado. Paulo via o pecado dominar e oprimir em toda a parte; um poder destruidor da fé em Deus, que exigia adoração no Império Romano. Ele fala do “aguilhão da morte” (I Cor 15,56). O aguilhão era um instrumento de tortura dos animais e dos escravos. Morte e pecado, em Paulo, são praticamente cambiáveis. São conceitos que lembram sofrimento e tortura de escravos. O homem está “vendido como escravo ao pecado”(Rom 7,14). Esta compreensão de pecado e morte faz com que Paulo expresse seu grito de desespero, em Romanos 7, com a pergunta: “Infeliz de mim, quem me libertará deste corpo de morte?”

Com a compreensão do “pecado” e da “morte”, como induzimos acima, estes conceitos na teologia de salvação, proposta por Paulo, adquirem uma dimensão ética no “aqui e agora”. Uma ética de salvação que liberta o homem da obrigação de servir a ídolos. Ídolos travestidos em poderes políticos e religiosos opressores; em injustiças e escravidão. Em outras palavras, o grito desesperador de Paulo é “um grito de resistência” contra a situação social, injusta e opressora de seu tempo; e um grito por um novo encaminhamento civilizatório. Este “grito” não é um apelo por um processo revolucionário armado, mas um “grito místico”, cujo poder transformador vem do Cristo Ressuscitado, cujo Espírito atua no “corpo” dos cristãos que são “o templo do Espírito Santo”.

Neste “grito” de Paulo por uma libertação do “corpo de morte”, encontramos uma âncora para uma teologia de libertação e salvação em nossa realidade histórica. Em sentido específico a libertação e a salvação da realidade latinoamericana. Sob muitos aspectos, a América Latina está dominada por ideologias e estruturas, que são um “corpo de morte”. E Paulo nos ensina quem poderá libertar nosso continente deste “corpo de morte”: “Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo, Senhor nosso” (Rom 7,25).

Consciente e engajado na realidade atual, injusta, corrupta e opressora, o verdadeiro cristão, fundamentado em sua fé mística do Cristo Ressuscitado, só pode exclamar: “um outro mundo é possível”. Com Paulo deve-se proclamar: superamos a antiga ordem do mundo... nos tornamos livres (cf. Rom 6,6s). Mas não é suficiente proclamar isto em palavras, é necessário atitude, pois a mística de Paulo não leva ao quietismo, mas ao engajamento.

Conclusão:

O cristianismo somente permanecerá verdade viva se, em cada geração, surgirem pensadores capazes de enunciar a fé em Jesus Cristo numa linguagem inteligível aos homens de épocas novas. Onde o cristianismo se transforma simplesmente numa fé transmitida, que deve ser assumida acriticamente pelos fiéis, ele perde a relação com a vida espiritual de sua época, e a capacidade de ser vivido em novos contextos existenciais, de acordo com os novos conhecimentos e as novas visões do universo. Onde acontece uma ruptura entre a tradição e o conhecimento, sofre a verdade cristã e a credibilidade do cristianismo.

Ao homem atual, num sentido literal, a compreensão da escatologia paulina soa muito estranha. Mas, em sua época, era verdade espiritual imediatamente convincente. Assim o cristão de hoje tem o direito de expor a verdade profunda da mensagem cristã de uma forma aceitável. Pois o cristianismo é “mística cristológica”, compreensível e realizável em comunhão com Cristo, nosso Senhor, em todos os tempos.

O Apóstolo Paulo incentiva a todos a se aprofundarem na compreensão do significado da “salvação em Cristo” e na “instauração de seu Reino”. Em nosso tempo não podemos mais retornar simplesmente à linguagem e à visão de mundo do início do cristianismo. No decorrer da história modificou-se a compreensão de como o “reino de Deus” se instaurará. O homem de hoje não acredita mais numa mudança natural das condições deste mundo, mas entende-se que os males e os sofrimentos estão inerentes à criação. Já muito antes da existência do homem “pecador” existir na terra, a morte fazia parte do ciclo natural dos seres vivos. Nada comprova de que o ser humano, desde o seu aparecimento na terra, alguma vez estivesse livre deste ciclo natural. Mesmo diante destas novas compreensões a fé no “Reino de Deus” permanece intacta, pois se entende a busca pela instauração deste Reino, como a realização e a submissão do homem à vontade de Deus. E o homem de hoje, mesmo consciente de que sua participação neste Reino não será simplesmente fruto de suas energias naturais, contudo sabe que neste mundo apenas existirão tantos sinais deste Reino, quantos os homens possuírem dele em seu interior e objetivarem em suas ações. Dali o apelo ao engajamento na transformação das condições de vida e do meio ambiente em que vive a humanidade de acordo com as exigências deste Reino de Deus. A dinâmica na busca da instauração deste Reino deve ser buscada no Espírito do Cristo crucificado e Ressuscitado. Do contrário, o esforço é visto como sendo vão.

A vida e a mensagem do Apóstolo Paulo está totalmente fundamentada numa compreensão mística de comunhão com o Cristo morto e ressuscitado, presente por seu Espírito nos fiéis e em sua comunidade, a Igreja. O “Cristo em nós” e “nós em Cristo”. Muito bem disse Karl Rahner, teólogo perito do Concílio Vaticano II, na década de 1960, que o cristianismo (o cristão) no futuro (no séc. XXI) será místico, ou não será cristianismo (cristão).

Referências bibliográficas

CAMPBELL, James M. Paul the Mystic. A study in apostolic experience. New York, G.P.Putnam’s, 1908.

DIBELIUS, Martin. Glaube und Mystik bei Paulus. Gesammelte Aufsätze. Tübingen, Mohr, 1956.

______________. Paulus und die Mystik. Gesammelte Aufsätze. Tübingen, Mohr, 1956.

MACHADO, Jonas. O misticismo apocalíptico do Apóstolo Paulo. São Paulo, Paulinas, 2009.

SÖLLE, Dorothee. Mystik des Todes. Ein Fragment. Stuttgart, Kreuz Verlag, 2003, p 53-63.

SCHWEITZER, Albert. O Misticismo de Paulo: o Apóstolo. São Paulo, Fonte Editorial, 2006.

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ULLMANN, Reinholdo Aloysio. A mística de Plotino. Consecratio Mundi. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1998, p 533-546.

Inácio Strieder é professor de filosofia. Recife - PE.