PEDRO E O LAVA-PÉS (Carta 143)

PEDRO E O LAVA-PÉS

Carta 143

Chegou a vez de Simão Pedro. Este disse: “Senhor, tu vais lavar

os meus pés?” Jesus respondeu: “Você agora não sabe o que

estou fazendo. Ficará sabendo mais tarde”. Pedro disse: “Tu não

vais lavar os meus pés nunca!” Jesus respondeu: “Se eu não os

lavar, você não terá parte comigo” (Jo 13, 6ss).

Para Pedro, o ato de Jesus querer lavar os pés de todos era um escândalo incompreensível. Como o Mestre poderia imaginar uma coisa daquelas? O próprio texto de João dá ênfase ao contraste com os versículos anteriores: aquele, em cujas mãos o Pai colocou o poder e a glória, querendo agora lavar os pés de um bando de pecadores. Um ato assim não seria bem compreendido hoje (um bispo lavando os pés de um fiel, ou um professor do aluno), imagine naquele tempo.

O diálogo de Jesus com Pedro (vv. 6-11), que é uma alocução insólita e reveladora ao mesmo tempo, enfeixa o tema central do fato, e por isto é extremamente revelador. Nele encontramos o cerne do serviço cristão prestado aos irmãos. De acordo com a opinião de alguns biblistas, os vv. 6-10 são um acréscimo para dar ao texto um enfoque sacramental: no caso, o batismo (Esta observação encontra-se no rodapé da Bíblia de Jerusalém). E por revelador, esta perícope se presta a várias leituras e meditações de exortação e edificação espiritual, bem como uma emulação à diaconia. Quando Pedro quis impedir que Cristo lavasse seus pés, teve de reconhecer que esse gesto o afastaria do Mestre. Ao lavarmos os pés uns aos outros, reconhecemos que dependemos sempre de Jesus para a nossa salvação. Ele nos serviu primeiro e assim servimos a nosso semelhante e nos unimos a ele. Nesse particular, o lava-pés é um gesto de unidade.

Compreendendo mal o gesto do Mestre, Simão Pedro não permite, pelo menos num primeiro momento que lhe lavem os pés. Imagine, Jesus lavando pés, isso nunca! É indispensável analisar aqui a conduta de Pedro. Ela é tipicamente humana, racional, pragmática e sobretudo atual. É impossível à sua visão obtusa ver além do fato que lhe é dado observar: o Mestre, de joelhos, lavando os pés daqueles homens incultos e pecadores. Pedro não compreendeu – pelo menos no primeiro momento – que o amor produz o serviço, e que este é capaz de gerar a fraternidade.

A ele ainda não fora dada a faculdade de entender o sentido das coisas, inclusive a morte anunciada de Jesus. Essa iluminação só aconteceria na efusão de Pentecostes. E não sejamos rigorosos demais com nosso querido Pedrão. Até hoje, gente que fez catequese, que frequentou igrejas, passou por encontros eclesiais, escutou homilias, pregações, palestras, fez cursos e exerce cargos hierárquicos, dentre esses ainda há, muitos, que não entendem a necessidade do serviço cristão. Muitos se fecham à essa interpelação, enlevados pelos halos de uma pretensa “santidade”. Dentro da mentalidade mundana, há uma estratificação social: senhor é senhor e escravo é escravo e – segundo os que assim preconizam – é Deus que quer assim. Muitos chegam a afirmar que a desigualdade é vontade de Deus e, como tal, legítima. E até necessária. Tal ponto-de-vista é encontrado por toda a história, inclusive abraçado hoje, por políticos, intelectuais, comunicadores, etc.

Ao bradar “Tu não vais lavar os meus pés nunca!”, Simão Pedro está colocando o assunto em termos de uma negação radical. Um ato desses jamais vai acontecer. Chocado pela inversão de papéis, ele reage de forma intempestiva. Pedro era muito autêntico. Ali não se tratava de uma falsa humildade, mas ele nunca seria capaz de imaginar o Mestre se rebaixando daquele jeito. A importância do significado do lava-pés está na mudança dessa mentalidade, revelando quem deve prestar o serviço. Dessa mudança vai depender ter parte com Jesus ou não... (v. 8). Jesus coloca os pingos nos ii, ao contestar a recusa de Pedro:

Se eu não o lavar, você não terá parte comigo (v. 8)

Fazer o que o Mestre manda e faz, é ter parte na herança (do Reino), na aliança (com o Pai), na missão (testemunhar o Filho) e na vida (da graça, abundante, eterna). Ser cristão – de fato – é aceitar a nova ordem que vem inserida neste sinal. Jesus manda que nos amemos como ele nos amou (cf. 13, 34), e esse amor pleno se torna o verdadeiro distintivo dos seguidores do Ressuscitado (cf. 13, 35). Nesse contexto, não fica difícil compreender que ter parte aponta para um semitismo que exprime uma união, unidade de pensamento, comunhão. Mesmo hoje em dia, a expressão denota um vínculo. Ao dizer não terás parte comigo, Jesus está dizendo a Pedro e a todos, que não podes fazer parte da minha turma, se não fizeres o que eu faço. Sem igualdade e serviço, espiritualidade e ação, não há cristianismo.

Assim, não ter parte com Jesus é não estar em comunhão com ele. É não aceitar a obra da redenção, que é pura gratuidade. Quem não toma Jesus por modelo não pode ser seu discípulo nem tampouco participar de sua glória. Jesus falou e deu o exemplo, isto é, compatibilizou discurso e obras. Esta é, no meu entendimento, a síntese da doutrina de Jesus: espiritualidade e ação. Pedro estava preso à formalidade das relações sociais daquele tempo, em que um mestre não lava os pés de seus discípulos. O inverso era plausível, mas não como Jesus estava propondo. Ligado à formalidade, o apóstolo negou-se, pelo menos no primeiro momento, a conhecer a verdade espiritual: lavar é servir, o lava-pés era o protótipo do serviço do cristianismo que ora se instaurava.

Ao alertar com o se eu não te lavar os pés... Jesus faz alusão à santificação pela graça, onde, aquele que não aceita a oferta do amor de Deus, não pode ter acesso ao Reino. Há aqui um duelo entre o homem rebelde, de cabeça dura e coração obliterado pela pouca fé, e o Deus rico em misericórdia. Sem a atitude do serviço, amoroso e desinteressado, simbolizado prioritariamente pelo lava-pés (depois, a cruz seria o paradigma máximo da doação), ninguém conseguirá o progresso espiritual, e nunca poderá desfrutar integralmente do dom de Deus, que Jesus veio, gratuitamente, trazer (cf. 10,10). A resposta de Jesus praticamente dá um xeque-mate em Pedro: ou perfila-se à exigência do serviço comunitário ou exclui-se da comunhão com o Mestre:

Se eu não o lavar, você não terá parte comigo (v. 8)

O que é ter parte com Jesus? É crer nele e fazer o que ele pede que seja feito. O discípulo ainda vê as coisas pelo lado do simples lavacro físico, com água, bacia e toalha. Pressionado pela emoção, sentindo a iminência de uma perda, Pedro entra em pânico:

Senhor, então podes lavar não só os meus pés, mas até as mãos e a cabeça (v. 9).

A reação apaixonada de Pedro funciona como que um ato de defesa. Para ele, um homem livre lavar os pés de outro, é um escândalo; mais que isto: uma humilhação. Ele não admite um rei lavando os pés de alguém, por que entendeu a extensão da realeza de Jesus. O apóstolo sente-se desconfortável (e desconcertado) ante o gesto inesperado de Jesus. É a típica reação de quem desconhece a humildade cristã (e o serviço que dela dimana) em favor dos outros. Até hoje se constata – infelizmente – a existência de pessoas que, para não se humilharem, fogem do serviço ao próximo. Primeiro ele rejeita a idéia e agora deseja um banho total.

Até aqui o nosso Pedrão ainda não havia entendido nada. Como tinha medo de perder a amizade (humana) de Jesus, ele concordou, quem sabe pensando: “se ele quer lavar, se insiste, vou deixar, mas não concordo”. A profundidade dos gestos de serviço, Pedro só iria entender bem mais tarde. Só depois da ressurreição e da efusão do Espírito Santo em Pentecostes que ele vai compreender o significado de estar a serviço. Alguns cristãos não entenderam o lava-pés até hoje. Compreenderam a teoria, às vezes espiritualizada em demasia, mas não colocam nada em prática.

Uma afirmação desse significado aponta para o fato de que Simão Pedro representa aquelas pessoas que seguem a Jesus, mas não se “encontraram”, não acharam sua identidade de discípulo. É por isso que São Pedro reage com energia. Ele continua acreditando que é muito normal que em uma comunidade alguns sejam senhores e outros sejam servos; os primeiros plenos de direitos, e os outros, cheios de deveres. Ele crê piamente numa sociedade de desiguais, por isso não admite que o Senhor lhe lave os pés.

Ao pedir que Jesus lave não só os pés, mas também as mãos e a cabeça (v.), Pedro proclama sua adesão pessoal a Jesus, mesmo sem entender o modo de agir do Mestre. É aquele tipo de fé que aceita sem exigir comprovações. Mesmo assim, dispõe-se a obedecer sem colocar em prática. Pedro imagina que o lavabo de Jesus tem poderes purificatórios. Ele ainda não havia penetrado no “espírito da coisa”.

O grande serviço de Jesus pela humanidade é a sua morte na cruz. Por um parente muito chegado, por um amigo, pode ser que alguém se disponha a dar a sua vida. Quem é capaz de imolar-se em favor de estranhos, alguém que é capaz de trair, indigno de um sacrifício desse jaez? Quando Jesus falou em ser entregue, sofrer e morrer, Pedro, não sabendo o que dizer, tentou dissuadi-lo, a ponto de ser chamado de satanás, pelo Mestre (cf. Mt 16, 21ss). O carisma e o magnetismo da presença de Jesus desconcertam os interlocutores. A atitude de reação de Pedro não difere muito daquela de João Batista, às margens do Jordão:

Sou eu que devo ser batizado por ti, e tu vens a mim? (Mt 3, 14).

O ato de lavar os pés dos visitantes era muito usado na Palestina, no tempo de Jesus e até mesmo antes do seu nascimento. Era um trabalho humilde, feito por escravos, que consistia em lavar os pés dos patrões da casa e daqueles que chegavam de viagem. Em Roma, esse trabalho era considerado humilhante a ponto de ser designado como castigo a algumas pessoas que cometiam algum delito legal. Diante daquelas circunstâncias dramáticas, e para dissipar o medo de Pedro, Jesus afirma:

Quem já tomou banho, só precisa lavar os pés, porque está todo

limpo. Vocês também estão limpos, mas nem todos. Jesus sabia

quem o iria trair; por isso é que ele falou: Nem todos vocês estão

limpos (vv. 10s).

O banho aludido por Jesus, não é um banho convencional, como se conhece hoje, nem se trata, como quiseram alguns no passado, das purificações rituais dos judeus, mas daquele batismo primevo, que contempla os bem-aventurados que têm um coração puro. O cristão que já tomou banho, é aquele que foi batizado, converteu-se e perseverou no caminho de Jesus.

O banho regenerador da graça não é algo automático. Precisa abertura de coração, a humildade do serviço e a perseverança dos santos. Tanto assim que Judas – ao que tudo indica – teve seus pés lavados por Jesus, e no entanto, não se converteu. No passado, o povo, no deserto, conheceu a Lei mas não a colocou em prática, e por isto pereceu e ficou excluído dos benefícios da “terra prometida” (cf. 1Cor 10,1-10). Ao realizar o lava-pés, Jesus coloca-se como um serviçal, um escravo, um último, o que fez o apóstolo Pedro reagir com aquela veemência que vimos no texto, não querendo admitir, de modo algum, que Jesus, seu Mestre e Senhor. se rebaixasse como criado, diante dele. Olhando o conceito que as pessoas, do tempo de Jesus, tinham desse gesto do lava-pés, compreendemos o espanto de Pedro, bem como o alcance e o significado do gesto de Jesus.

Hoje, mais familiarizados com a simbólica do texto joanino, os cristãos entendem que a cena, embora surpreendente, evoca claramente a atividade de Jesus, que afirmara, em outra oportunidade:

Eu, porém, estou no meio de vocês como aquele que serve

(Lc 22,37).

Questões para orientar debate em grupo

1. Qual o motivo pelo qual Pedro não quis que Jesus lhe lavasse

os pés?

2. Por que se diz que “lavar os pés é servir”?

3. Qual a ênfase do evangelho: servir ou ser servido? Explique.

4. Por que as pessoas têm tanta dificuldade em se colocar a

serviço dos demais?