CONVERSÃO E PERSEVERANÇA

Um grupo de irmãos, mentores de um movimento de leigos na

zona sul do RS, que atende famílias, anda preocupado com a

falta de perseverança dos que participam dos encontros,

Conversão e perseverança (carta 145)

Quem perseverar até o fim será salvo (Mt 24,12)

Hoje em dia, a maioria – se não a totalidade – das igrejas se queixa da inconsistência de muitos dos seus membros, que se confessam convertidos, mas tem dificuldade em estabelecer um mínimo padrão de perseverança. Se dizem convertidos, mas não querem se comprometer com aquilo que a verdadeira conversão preconiza.

Eu já escutei da boca de muitos irmãos que saíram de retiros e encontros a afirmação eufórica que haviam encontrado no Cristo, o real sentido de suas vidas, e que iriam levá-lo para suas casas. No entanto, tantas afirmações desse tipo tem se perdido num mar de inconstâncias, revelando que nem sempre ocorre a perseverança em cima de tantas promessas.

A teologia da conversão revela a existência de três momentos que atuam de forma concêntrica e complementar. O primeiro deles é o kérygma (aportuguesado para querigma), o anúncio, que se assemelha a um processo de catequese. O segundo movimento é a metánoia (aportuguesada para metanóia), que é a conversão propriamente dita e equivale a uma mudança radical de coração e sentimentos. O terceiro momento é a koynonia, que é indissolúvel dos dois anteriores, e aponta para uma comunhão que nada mais é que o “escutar a Palavra de Deus e colocá-la em prática” (cf. Mt 7, 26ss). É a legítima comunhão com Deus. É um ato de vontade. Não adianta querer conversão sem mudança de atitudes. E este é o grande problema de algumas comunidades: muita gente busca uma conversão cômoda, superficial, alegórica, sem compromissos ou perseverança.

A vida cristã é “simples”: escutar a Palavra de Deus e colocá-la em prática, não se limitando a “ler o Evangelho”, mas, como afirmou o Papa Francisco, perguntando-se de que modo as palavras do texto sagrado falam à própria vida.

Em termos da falta de perseverança, eu acho que há uma ponderável culpa dos chamados “movimentos eclesiais”, que criam muitas expectativas mas não dão suporte ao encontrista após o retiro. Para muitas dessas associações o que vale é fazer vários encontros por ano, arregimentar tantos encontristas e um sem número de obreiros, sem se importar com a continuidade. É preciso ter uma estrutura que emboque as pessoas nos diversos segmentos da comunidade. Esses encontros primam por produzir impactos nos participantes, atuando muitas vezes exclusivamente sob o emocional. O cara vai lá e tome impacto, sustos, cartinhas de familiares e crianças, e coisas melosas murmuradas no escurinho, pressão que causa – como dizia um velho amigo meu – uma rendição, mas nem sempre uma conversão. Onde não há uma verdadeira conversão é inútil querer perseverança.

Existe um chamado que Deus faz a todos os povos à conversão em Cristo. Essa é a realidade que retira o ser humano de todas as suas fantasias vãs. Consideradas as situações pessoais, cada pessoa é chamada por Cristo e é por ele amada. Dentro do interesse geral pela missão, o teólogo J. Danielou († 1974) manifestava uma predileção pela conversão que gerava um comprometimento através de uma ação transformadora. Em todo caso, seja a nível pessoal ou coletivo, a Igreja foi encarregada por Cristo para realizar essa tarefa.

Diversos fatores concorrem favoravelmente para a perseverança, a saber: a) vida sacramental; b) estudo e leitura bíblica; c) vida de oração; d) participação na comunidade; e) solidariedade e misericórdia com o próximo, o irmão, o sofrido; f) prática litúrgica efetiva e constante. À soma de todos os fatores acima se dá o nome de espiritualidade. Nelas estão as âncoras que nos resgatam... Na nossa vida também ocorre, muitas vezes, algo parecido. Muitas âncoras estão à nossa disposição. Se naufragamos é porque não soubemos ou não as utilizamos na hora adequada. Nesse aspecto, gostaria de relacionar alguns fatores, que reputo como importantes para a “fixação” de nossa vida cristã:

1. Vida familiar comprometida

A responsabilidade com a unidade da família é fundamental para a criação de um tipo de consciência que é capaz de reagir contra tantos males que agridem as pessoas, e que se não compulsados devidamente, contribuem para a dissolução do grupo familiar; o mundo por aí está cheio de histórias de derrotas, individuais e conjuntas que tiveram sua gênese a partir do desmoronar da família;

2. Vida comunitária atuante

A manutenção de uma vida comunitária atuante, por conta da necessidade de um testemunho permanente, é um ponderável esteio contra todo tipo de mal; quando nos inserimos numa comunidade cristã, adquirimos a consciência de que é preciso combater o mal e todas as investidas do pecado;

3. Oração

A oração é a ferramenta mais eficaz contras as tentações. Santo Afonso de Ligório ensina que “quem ora se salva; quem não ora, facilmente se perde”. As grandes vitórias contra o pecado e suas armadilhas foram desenhadas a partir dos joelhos em terra, da contemplação ao Cristo no sacrário e com a grande arma do Terço nas mãos; os antigos místicos bizantinos usam a figura da âncora, comparando-a com a oração, como o instrumento contra as tentações; para eles, a Rosário é a corrente que ajuda a fixar a âncora;

4. Estudo da Palavra de Deus

Quem não estuda Palavra de Deus, não medita o evangelho e não lê diuturnamente a Bíblia, é incapaz de encontrar um porto seguro onde deixar abrigado o barco de sua vida espiritual; a leitura permanente das Sagradas Escrituras dá ao cristão a orientação para o caminho do bem, da virtude e da santidade. Entra aí a leitura meditativa e orante da Bíblia;

5. Frequência (no mínimo dominical) à Santa Missa

Inserida na vida comunitária, a frequência à Santa Missa é um poderoso auxílio contra as urdiduras do diabo, livrando o crente da sedução das armadilhas malignas. A Missa é para nós um prazeroso encontro com alguém que nos ama. Não se trata de ir quando temos vontade, mas alimentar o desejo de uma comunhão permanente, profunda e regeneradora. A Missa é o cimo referencial de toda a nossa vida cristã. É por onde começam todos nossos projetos de santidade;

6. Frequência aos sacramentos (Reconciliação e Eucaristia)

Junto com a Missa, a frequência à Eucaristia é um ato de amor e comunhão. Não é possível um cristão, especialmente um católico, viver sem a recepção dos sacramentos, seja da Eucaristia, seja da Reconciliação. Quem comunga (pelo menos uma vez por semana) e confessa (pelo menos uma vez por mês) tem melhores meios de fugir do pecado e manter-se puro e isento das tantas tentações que assaltam os menos prudentes;

7. Atos permanentes e concretos de caridade

A caridade (ou o amor) é a principal das virtudes cristãs; trata-se daquela dedicação à pessoa do outro, da família, da Igreja e da sociedade; quem pratica o bem, representado por uma caridade discernida (não se trata de um mero assistencialismo) mantém-se ligado às coisas, sem tempo para pensar no mal, tornando-se assim mais resistente ao pecado.

Esses fatores auxiliam sobremaneira o desenvolvimento da nossa fé e, como tal, são capazes de formar uma resistência contra os assaltos do maligno. Tem gente que naufraga, famílias que se desmancham, espíritos que se desviam, porque os engodos do mundo, sedutores como eles só, tiram dos trilhos aqueles que foram incapazes de se organizar a partir do conjunto de fatores acima relacionados.

Numa espiritualidade madura e discernida não basta praticar um ou outro; temos que exercitar todos. Na carta de São Paulo a Tito vemos os efeitos da graça na vida do cristão, como uma ferramenta para a prática do bem:

Ela (a graça) nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões

mundanas e a viver neste mundo com equilíbrio, justiça e

piedade, aguardando a feliz esperança e a manifestação da glória

do nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo (2, 11-14).

A palavra espiritualidade é compreendida como a ação do Espírito Santo no cristão; age nele e age através dele. Esse mistério da ação do Paráclito no ser humano, leva-o a orientar toda a sua vida para Deus, de acordo com os critérios que Deus lhe dá, por Cristo, através dos evangelhos. O Espírito que age no cristão o conduz a uma ação em favor do mundo, do próximo, da Igreja como núcleo de comunidade e dele próprio, já que elabora o itinerário de sua salvação.

Surge a partir daí a essência da vida espiritual, capaz de estabelecer a diferença (nem sempre bem apreendida por todos) entre a dinâmica e a estática. Se espiritualismo tem ligações com doutrinas espíritas e esotéricas, a espiritualidade refere-se àquela inspiração que é concedida ao cristão pelo Espírito de Deus.

O ato de orientar “toda a sua vida” refere-se ao homem todo, completo, devidamente estruturado, espiritualizado e inserido nas realidades do mundo em que ele vive. Espiritualidade, desta forma, é um estilo de vida, um modo de viver. Exprime a forma como nos relacionamos com Deus. E não só com Deus, mas com toda a sua Criação. A espiritualidade requer uma permanência o tempo todo – e não só quando estamos dispostos – junto de Deus e dos seus valores. A verdadeira espiritualidade é a que produz engajamento, movimento e ação proativa.

Os grandes mestres da espiritualidade de todos os tempos, como o apóstolo Paulo, Francisco de Assis, Tereza de Ávila, Charles de Foucold, e Mahatma Gandhi foram pessoas altamente comprometidas com as causas humanísticas do seu tempo e não adoradores contemplativos e alienados de um Deus sem substância e sem presença no mundo real. Como disse Jesus aos seus discípulos:

Vocês são a luz do mundo... Não se acende uma lâmpada para

colocá-la sob a mesa, mas no ponto mais alto da sala, para que

ilumine a todos os que estão em casa. Assim brilhe a luz de

vocês diante dos homens, para que vejam suas boas obras e

glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus (Mt 5,14a.15-16).

Quando uma pessoa percebe a intervenção de Deus na sua vida e adere a esse plano salvador, pode-se falar, então, de fé e de conversão, já que a fé e a conversão são inseparáveis. A fé, desde essa perspectiva, no quadro da história da salvação, marca a teologia da conversão com matizes muito interessantes: a conversão é uma ação de Deus na minha vida,

A virtude da perseverança é fundamental, pois sem ela não há vitória. Um atleta que tenha corrido brilhantemente um páreo, mas que, na reta final, fraqueja, perde a medalha, se entrega... Ora, algo de semelhante se dá no plano espiritual. A importância da virtude da perseverança pode ser demonstrada tanto por razões teológicas, como pelo raciocínio filosófico. Nos Evangelhos Jesus recomenda três vezes a perseverança:

1. Mt 10,22: “Sereis odiados por todos por causa de mim, mas

quem perseverar até o fim, será salvo.”

2. Mt 24, 12: “Quem perseverar até o fim será salvo.”

3. Mc 8,15: “A semente que cai em terra boa... são aqueles que

guardam a Palavra e produzem fruto por sua constância.”

Interessa notar, que neste último texto, os que dão fruto bom, não são os que apenas guardam a caridade (sem mais), mas os que permanecem constantes (na caridade, na fé, na esperança...) até o fim. Aliás, é isto mesmo que o Senhor Jesus aponta na parábola do semeador:

As sementes que caíram sobre a pedra são aqueles que, ao ouvirem, acolhem a Palavra com alegria, mas não tem raízes; creem por algum tempo, mas, na hora da tentação, voltam atrás. A semente que caiu entre os espinhos são os que ouviram, mas com o passar do tempo deixam-se absorver pelas preocupações, riquezas e prazeres da vida e não chegam à maturidade (Lc 19, 13-20).

Como as sementes que cairam entre os espinhos, muita gente ficou no meio do caminho, porque até ouviu muito a Palavra de Deus, chegou até a multiplicá-la, mas não teve disposição o suficiente para colocá-la em prática e elegê-la como prioridade de vida. Faltou a virtude da persistência.

Quando iniciei minha caminhada na fé, diversos irmãos serviram de modelo para o crescimento do início da minha vida cristã. Foram tempos de ótimo convívio, troca de ideias, aprendizado e oportunidade de evolução. Depois de algum tempo notei um arrefecimento no testemunho de alguns irmãos que eu julgava modelares. Constatei que o Deus deles era o “movimento”, o grupo, a parte mecânica e burocrática da religião e não o Cristo e seu evangelho.

Com isso muitos abandonaram a verdadeira espiritualidade e se perderam pelos caminhos de Satanás. Hoje infelizmente alguns estão fora da Igreja. Destroçaram suas famílias e a vida da graça para a qual foram chamados um dia. Esse tipo de queda revela uma fé que não foi suficientemente eficaz para o enfrentamento das tentações, da superficiualidade e da incapacidade ao compromisso. Jesus abre sua vida pública alertando para a necessidade de vigilância, perseverança e conversão:

Convertam-se e creiam no evangelho (Mc 1,15);

A falta de persistência e perseverança dos mais velhos, invariavelmente vai desembocar na apatia dos jovens, que não tendo nos pais um testemunho de fé, deixam-se levar pelos ventos do materialismo, do hedonismo e da indiferença.

Estas ponderações nos põem ante os olhos o valor da perseverança. Ela vai ao encontro da tendência natural à acomodação, a fechar os olhos para o futuro que parece incerto e nebuloso, ao passo que o momento presente é relativamente aprazível, cômodo e isento de compromissos. Para uma contextualização da espiritualidade cristã, o fundamental é colocar-se irrevogavelmente “na presença de Deus”. Fora disto é alienação pura! Entrar na presença de Deus é torná-lo a essência, adotando-o como a força mais importante da nossa vida. Assim alcançamos a alegria maior, obtendo uma satisfação diferente e superior a qualquer outro prazer da vida.

Para que o encontro com Deus seja fonte de vitalidade e de alegria, ele precisa influenciar toda a existência concreta: os afetos, a imaginação, o desejo e o próprio corpo precisam entrar na presença divina. O que aprendeu a desenvolver adequadamente sua espiritualidade, é aquele que quer sempre estar perto de Deus... sob seu olhar paterno:

Para onde ir, Senhor, longe do teu sopro? Para onde fugir longe da

tua presença? Se subo aos céus, tu lá estás; se me deito no

abismo, aí te encontro. Se tomo as asas da alvorada para habitar

nos limites do mar, mesmo lá é tua mão que me conduz, e tua

mão direita me sustenta (Sl 139, 7-10).

A espiritualidade desperta naquele que crê, um imenso desejo de Deus. As experiências mais profundas começam com o desejo... Com o despertar do desejo... “como a corça anseia...” a porta do coração se abre pelo lado de dentro. Tudo tem início a partir de nossa escolha em relação ao projeto de Deus para nossa vida.

Essa decisão acontece no plano profundo da opção fundamental, que é aquela escolha radical do horizonte de vida, capaz de dar sentido à procura dos maiores bens/dons espirituais. É preciso desejá-los... Espiritualidade é acalentar um desejo do Eterno... A espiritualidade fortalece nossa fé, nos dá meios de perseverança e reforça decisivamente a nossa conversão.