O silêncio de Maria

O SILÊNCIO DE MARIA

A Santíssima Virgem Maria avançou no caminho da fé, e

conservou fielmente a união com seu filho até a cruz, junto da

qual, por desígnio de Deus, se manteve de pé (LG 58).

Os meses de maio e outubro são dedicados pelos católicos ao culto da Virgem Maria, mãe de Jesus. Nos dias 13 de maio e 13 de outubro a Igreja comemora as aparições em Fátima, Portugal, no ano de 1917. A virtude de Maria que é mais explicitada nas Escrituras é o silêncio. Às demais, o leitor e o pesquisador são levados a intuir, a concluir. Sobre o silêncio não. Em mais de uma oportunidade o hagiógrafo afirma claramente

...Maria guardava fielmente essas coisas no silêncio de seu

coração (cf. Lc 2, 19. 51)

Esse silêncio é outro exemplo que conseguimos colher, através da imagem da porta que teria ficado aberta. Maria nunca perguntou mais que o necessário; jamais tentou negociar, ou sair pela tangente. Mesmo sem conhecer o magnífico projeto, do qual fazia parte, sempre confiou, sempre se entregou e se deixou levar por sua fé e sua exemplar disponibilidade. A doação de Maria foi benéfica à encarnação. É de São Metódio († 884), o apóstolo dos eslavos um texto que aborda o rico conteúdo da participação de Maria no mistério da salvação:

Todos os homens, Senhor, te são devedores, mas tu és

devedor a uma mulher que na sua pobreza recebeu o teu

Verbo, enriquecendo a humanidade toda.

Por isso muitos declaram Maria co-autora da salvação. Nos dias de hoje, inexplicavelmente, alguns teólogos e escritores modernos, especialmente da Europa, tentam pintar Maria como uma menina bobinha, alienada e sem vontade própria. Eles estão enganados! Embora uma adolescente, a fé que trazia em seu coração, a confiança que depositava em seu Deus, tornava-a adulta em determinação e coragem para decidir, e essas virtudes, entre tantas outras, valeram-lhe o título de bem-aventurada (cf. Lc 1, 42).

Como afirma Carmen Galvão, “gloriosa no céu, ela atua na terra, participando do reinado do ressuscitado, cuidando com amor materno de nós, irmãos de seu filho amado, enquanto ainda peregrinamos nesta vida (...) Maria é a mulher admirável, cuja missão de mãe, amiga e defensora, perpassa os tempos, e sua imagem é encontrada nas Sagradas Escrituras desde o Gênese até o Apocalipse. De fato Maria falou pouco. Ela age até hoje!” (in: Tempo de Libertação. Ed. Paulinas, 1994).

Igualmente ensina a teóloga Maria Beatriz Ferreira, Maria é a mulher perfeita em cuja imagem devemos nos espelhar. Na verdade, não é difícil constatar que Maria está inserida no plano do amor de Deus. O Pai queria uma pessoa que, em nome da humanidade, aceitasse a salvação, que com ela se comprometesse e por ela arriscasse tudo.

Deus Pai só deu ao mundo seu unigênito por Maria. Suspiraram os patriarcas, e pedidos insistentes fizeram os profetas e os santos da lei antiga, durante quatro milênios, mas só Maria o mereceu e alcançou graça diante de Deus... pela força de sua oração e pela sublimidade de suas virtudes (S. Louis Grignion de Monfort, “Traité de la Vraie Devotion à la Sainte Vierge”, Reims, 1892)..

Preservada da corrupção original, Maria teve sua fé provada e saiu-se bem dessa obscuridade para desfrutar da luz da concepção. Foi crescendo, ultrapassou a obscuridade, venceu as ambigüidades humanas, e foi fiel a Deus até a cruz. Desde a anunciação até os demais acontecimentos sucessivos, ela foi portadora, em si mesma, da novidade radical da fé: a nova aliança, o mistério da salvação.

Pela obediência ela tornou-se causa de salvação, para si

mesma e para todo o gênero humano. O laço da desobediência

de Eva foi desfeito pela obediência de Maria. O que Eva atou

com sua incredulidade, a Virgem Maria desatou pela fé

(S. Irineu).

Querendo se fazer homem, Deus precisava escolher como mãe uma mulher que fizesse a síntese entre o humano e o divino. Sobre essa escolha há um trecho de Santo Antônio muito rico: “Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as suas graças e chamou-as de Maria”. Ao dizer a Maria “... o Senhor está contigo!” (cf. Lc 1, 28b), o anjo torna palpável a afirmação divina feita ao povo de Israel, no êxodo a Moisés (cf. Ex 3,12) e nos tempos de cativeiro ao profeta Jeremias (cf. Jr 1,8.19), referente à libertação.

Ao faça-se de Maria devemos o nosso Salvador, aquele de quem disse o profeta Isaías: “... nasceu um menino, um filho nos foi dado, sobre cujos ombros está o principado e cujo nome é Admirável Conselheiro, Deus Forte, Pai Perpétuo, Príncipe da Paz “ ’(cf. Is 9,5). No Antigo Testamento, no tempo da dominação babilônica, vamos encontrar a figura singular de Ruth. Embora estrangeira (era moabita e de condição humilde) por sua disponibilidade e fé no Deus de Israel, ela sobreviveu a muitos percalços e foi incluída na genealogia do Messias (cf. Mt 1, 5). Ruth (algumas traduções aportuguesaram para Rute) é prefigura de Maria.

Como Rute servidora, ou Ester intercessora, Maria caminha com o povo, socorrendo-o, vendo nossas misérias, Maria se apressa em nos socorrer com sua misericórdia e amor de mãe. Maria é a mulher perfeita, em cuja imagem a Igreja se inspira. A bula “Ineffabilis Deus” do Papa Pio IX, revela que Maria vem acumulada de tanta perfeição, que debaixo de Deus não se pode imaginar alguém tão perfeito e devotado. Os méritos da mãe de Jesus são tantos que ninguém pode pretender conseguir (DS 2800). No dizer de São Leão Magno († 461), Maria Santíssima é o paraíso terrestre. A Igreja do Oriente proclama-a como fonte selada (cf. Ct 4,12) e esposa fiel do Espírito Santo. Ela é o santuário, repouso da Santíssima Trindade.

Como para Abraão, o pai do povo ao qual ela pertencia, assim

para Maria também não foi fácil aceitar e viver a Palavra de

Deus em sua vida. Foi motivo de muito sofrimento e dúvida, de

muita tristeza e escuridão. Mas ela permaneceu firme, como

firme ficou o pai Abraão. Tal pai, tal filha! (C. Mesters. Maria, a

mãe de Jesus, Ed. Vozes, 1989).

Todo esse proêmio serviu para enfocarmos as virtudes que levaram o Pai a escolher Maria como trono humano de seu filho. O roteiro do trabalho, entretanto, nos remete ao estudo do silêncio de Maria, que a porta aberta evoca, e que, por sua expressividade, e inspiração divina, move os cristãos. A palavra silêncio, em Maria, obtém uma ressonância incomensurável. Em muitos casos o silêncio é ignorância, omissão, covardia. Nela ele é pleno, fecundo, participativo, profundo e revelador. A mãe de Jesus manteve-se atenta ao teor da Escritura:

Há um tempo de falar e um tempo de calar (Ecl 3, 7).

O silêncio não é a entrada no repouso, mas a abertura para a revelação que o Senhor prometeu aos pequenos (cf. Mt 11,25s). O silêncio de Maria é profundo e perscrutador. Talvez ela não compreendesse todos os fatos de sua vida, mas, pela fé, entesourava-os, no silêncio de seu coração. O profundo silêncio de Maria não era uma manifestação de indiferença; era o silêncio de um aprendizado profundo. Os momentos importantes da vida de Cristo e da Igreja foram acompanhados, silenciosa e fielmente, por Maria.

Nesse particular, Maria representa desvelo, carinho, fidelidade. Em Caná todos bebiam e ela estava atenta aos fatos. Na cruz todos fugiram, e ela permaneceu ali, quieta, mas presente e participativa, de coração partido, em lágrimas. Ah!, as silenciosas lágrimas de Maria... “E ali – como proclama J. Ribolla – ao virar de uma esquina, na rua, imaginemos o encontro da Mãe das Dores e do Filho com a cruz às costas... Não há palavras para descrever aquele encontro... Uma dor assim não tem palavra, não tem expressão, só tem o silêncio em sua maior eloqüência”. (in: O jeito de Maria de Nazaré, Ed. Santuário, 1991).

A vida de Maria possui muitos e eloqüentes silêncios, desses que falam mais que mil discursos. O primeiro deles é aquele que se refere à vida antes da anunciação. Quem era Maria? Os Evangelhos nada falam sobre o passado de Maria. Omitem o nome de seus pais e não nos dão qualquer informação. O evangelista Lucas revela que ela era imaculada, cheia da graça de Deus, virgem prometida a José. E só. Antes disso, um grande e misterioso silêncio, que nos deixa curiosos e sem respostas.

Somente Maria sabia quando seria a plenitude dos tempos (cf. Gl 4, 4), o kairós em que a Palavra se haveria de transformar. O segundo silêncio de Maria sobre o mistério da encarnação gerou a dúvida de José, que depois seria visitado em sonhos pelo anjo (cf. Mt 1, 20s). O terceiro silêncio de Maria poderíamos buscá-lo em sua vida oculta, no lar de Nazaré. Desde a gruta de Belém, ao exílio no Egito e no retorno à Galiléia, a mãe de Jesus guardou silencioso recolhimento em seu coração. Ela, até o início da vida pública, não diria nada, a ninguém, a respeito de seu Filho. Ela não procurava, como nós, as glórias do mundo que os homens dão às pessoas importantes. Ela apenas curtiu os grandes e fecundos silêncios de Deus. Um silêncio que nós hoje não sabemos fazer...

Na vida pública de Jesus encontramos o quarto silêncio de Maria. Mesmo acompanhando o filho em tantas atividades missionárias, enquanto Jesus evangelizava com discursos, denúncias, curas e grande sinais, ela o fazia de outro modo. Com oração, presença e silêncio. Nesse período, ela só falou em Caná, lugar privilegiado do primeiro milagre. Primeiro disse ao Filho que o vinho faltara naquela festa. Depois, aos serventes (e continua dizendo a nós) o

façam tudo que ele disser a vocês! (cf. Jo 2, 5).

Maria esteve presente e silenciosa na cruz. De pé e calada (cf. Jo 19, 25). O quinto e expressivo silêncio de Maria, que coroa sua vida terrena, aconteceu depois da ascensão de Jesus. Depois da subida do Filho aos céus, cai um silêncio profundo sobre a vida de Maria. Onde morou depois? Quantos anos mais ainda viveu? Na caminhada da Igreja que nasce sente-se a presença de Maria; sente-se um silêncio, uma animação. No silêncio de Maria a Igreja aprende a caminhar na direção do Reino. Do Antigo Testamento, Maria tirou as lições silenciosas de aceitação à soberana vontade de Javé: “Por acaso a argila pergunta ao oleiro: ‘O que estás fazendo?’ (cf. Is 45, 9b). “Sentindo-se barro nas mãos do artista, Maria acolhe, no silêncio da fé e da humildade, suas missões. Em suas pregações, Jesus haveria, posteriormente, de exaltar essa silenciosa humildade: ‘Quem se humilha será exaltado’ (cf. Lc 14, 11)”. Nos livros sapienciais do Antigo Testamento, encontramos o silêncio como figura de algo eficaz:

Enquanto um silêncio profundo envolvia todas as coisas, e a

noite estava pela metade, a tua Palavra, todo-poderosa veio

do alto do céu, do seu trono real, e lançou-se sobre a terra

(cf. Sb 18, 14ss).

Jesus, há quem diga, aprendeu o cerne das bem-aventuranças no silêncio do seio de Maria, sua mãe. Nesse silêncio expressivo Cristo foi gerado. Ali “o verbo se fez carne”, a Palavra tornou-se homem, a salvação começou a tomar corpo, a Igreja surgiu. Silêncio pode significar uma porção de coisas. No caso de Maria, não é passividade, mas introspecção; não é apatia, mas revolucionária e transformante atividade. É seiva humilde alimentando um majestoso cedro.

O silêncio de Maria não é estéril ou inócuo. Pelo contrário, ele é rico em revelações, prodigioso em encontros. É difícil tirar-se lições do silêncio. Em geral o que comove, convence e efetua mudanças, são as palavras, os discursos, os debates. No caso de Maria, mãe de Jesus, dá-se o inverso. Ela é a mãe silenciosa que ama, crê, sofre, espera... e por isso seu exemplo de silêncio traz consigo uma carga evangelizadora superior a milhares de palavras. Como ensina I. Larrañaga

Se a jovem Maria guardava esse segredo (a concepção sobrenatural) em completo silêncio, estamos diante de uma grandeza humana cujas circunstâncias vale a pena analisar cuidadosamente. Maria não contou a ninguém o segredo da encarnação virginal. Não contou a José (cf. Mt 1, 9); não contou a Isabel. Quando deu seu Chalom a Isabel, essa, cheia do Espírito Santo, recebeu aquela revelação; o povo de Nazaré nunca soube quando Jesus foi concebido.

Maria desligou-se da ‘opinião pública’! Manteve-se num rico

silêncio, abandonou-se à vontade do Pai, e ficou em paz (in: O

silêncio de Maria, Ed. Paulinas 1980).

As Sagradas Escrituras evidenciam o silêncio de Maria. Quando da apresentação de Jesus à porta do templo, Simeão profetiza que aquele menino será sinal de contradição. Ela, seguramente, não compreende a extensão daquele oráculo. Não contesta; não pergunta. Em silêncio medita aquelas palavras em seu coração. O que vem de Deus e é guardado no coração, no tempo certo será esclarecido. A Igreja proclama Maria como Virgem-mãe.

Virgindade é recolhimento e também é silêncio em si. Em primeiro lugar, virgindade é fisiológica e psicologicamente silêncio. As emoções humanas, num coração virgem, tornam-se silêncio. Recolhimento, silêncio, pobreza, virgindade, são conceitos condicionados e entrecruzados no nó-de-relações da vida humana, e não são nem têm em si mesmos, valor algum, são vazios e carentes de uma significação maior. Só um significante lhe dá sentido e valor: Deus. Maria do silêncio, como não poderia ser diferente, falou pouco. Mas o que falou é suficiente, testemunha, ensina, evangeliza. São seis os conjuntos de palavras de Maria que os Evangelhos narram:

1. No diálogo com o anjo

a) “Como vai acontecer isto, se não vivo com

nenhum homem?” (cf. Lc 1, 34);

b) “Eis a escrava do senhor, faça-se em mim

segundo a tua palavra” (v.38);

2. Em casa de Isabel

c) “Minha alma proclama a grandeza do Senhor...”

(vv. 46-55);

3. Quando o menino se perdeu e foi encontrado no templo

d) “Meu filho, por que você fez isto conosco? Olhe

que seu pai e eu estávamos angustiados à sua

procura!” (2, 48);

4. Em Caná da Galiléia

e) “Eles não têm mais vinho!” (Jo 2, 3);

f) “Façam o que ele mandar!” (v. 5).

Os padres conciliares têm diversos trechos dedicados a Maria Santíssima:

Querendo Deus, sumamente benigno e sábio, realizar a

redenção do mundo, ‘quando chegou a plenitude dos tempos,

mandou seu Filho, nascido de uma mulher. para que

recebêssemos a adoção de filhos (Gl 4,4s), o qual por amor de

nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus e encarnou

pelo poder do Espírito Santo no seio da Virgem Maria. Este

mistério divino da Salvação, revela-se a nos e continua na

Igreja, que o Senhor constituiu como seu corpo, e na qual os

fiéis - unidos a Cristo, sua cabeça, e em comunhão com todos

os seus santos - devem também, e em primeiro lugar, venerar a

memória da gloriosa sempre Virgem Maria, mãe de Deus e de

Nosso Senhor Jesus Cristo (LG 52).

Existe, pelo mundo todo, uma grande devoção a Maria. São milhares os títulos atribuídos à Virgem de Nazaré, ao longo de tantos séculos de devoção mariana. Uns títulos saem e outros entram no devocionário. Há alguns que carecem de quaisquer fundamentos biblico-teológicos. Os títulos dogmáticos de Maria são cinco:

1. Mãe de Deus

Esta verdade foi definida como de fé a partir do

Concílio de Éfeso, em 431. Em resposta às heresias

nestorianas que afirmavam que Maria era mãe apenas

da porção humana de Jesus (Christotókos) o Concílio

reagiu, proclamando-a Theotókos (a Mãe de Deus);

2. Virgem-Mãe

A virgindade perpétua de Maria foi proclamada no

Concílio de Latrão, em 649, quando ratificou o

Credo de Nicéia, que afirmou que “Jesus

foi concebido pelo poder do Espírito Santo e nasceu

da Virgem Maria”;

3. Concebida sem pecado

Se a maternidade divina de Maria foi missão, a

Imaculada Concepção foi dom de Deus em favor da

mãe de seu Filho. Em 8 de dezembro de 1854, o

Papa Pio IX proclamou-a “cheia de graça”, isto é

imaculada, concebida sem a mancha do pecado

original;

4. Assunta aos céus

Assunção é o ato de assumir alguma posição ou

lugar de destaque. A assunção corporal de Maria

mãe de Jesus ao céu, foi definida como verdade de

fé pelo Papa Pio XII em 1º de novembro de 1950. A

assunção de Maria aos céus é uma participação

singular na ressurreição de seu Filho e uma

antecipação da ressurreição dos demais cristãos.

Pelo poder de Deus, e pelos méritos de Cristo, Maria

assumiu, em corpo e alma um lugar de destaque no

céu.

5. Coroada como Rainha do céu e da terra

Maria foi levada aos céus pelos anjos de Deus e

coroada como Rainha do céu e da terra. No céu ela

é a medianeira entre seu Filho e os homens,

intercedendo em favor da humanidade pecadora.

Já falamos sobre o silêncio de Maria. Vamos procurar, agora, dizer alguma coisa a respeito da pureza de Maria. Ela é pura é tipo da nova criação, enfim liberta de todo o pecado. É curioso como hoje se fala tanto em virgindade. Nos programas de tevê, nas rodas de intelectuais, nos debates de jovens, ouve-se falar muito em virgindade. Mais contra que a favor.

Virgindade hoje, em alguns ambientes liberais, é sinônimo de pessoa quadrada, retrógrada, a ponto de as moças virgens terem vergonha de confessar essa virtude. Não é raro o exemplo de garotas, de idade cada vez menor, que programam a perda de sua virgindade, como um evento social, com algum parceiro qualquer, apenas para se verem livres daquele peso. Pois Maria foi uma jovem virgem e pura. Sim, é importante unir as duas virtudes, pois hoje, pelo excesso de liberalidade que assola nossa juventude, poder-se-á encontrar jovens virgens fisicamente mas sem aquela pureza no coração. Maria, repetimos, era virgem e pura... Não por falta de oportunidade ou circunstancialmente por medo da repressão, mas virgem e pura como opção livre. A jovem Maria caracteriza em si a plenitude da virgindade: fidelidade, consciência, liberdade e pureza.

Maria pura foi chamada pelo anjo de kexaritoméne (no grego, cheia de graça, agraciada), o que posteriormente, na Vulgata seria traduzido por São Jerônimo por “gratia plena”. Cheia de graça não quer dizer uma pessoa gaiata, que faça muitas graças, mas alguém pleno dos dons de Deus. O qualificativo “cheia de graça” quer dizer pura, humilde, silenciosa, contemplada pelo amor de Deus para ser o templo onde o Espírito Santo faria a Palavra transformar-se. Ora, um evento divino dessa magnitude só poderia desembocar numa pessoa essencialmente pura, como Maria.

Professar que Maria é cheia de graça, significa admitir que Deus, como bondade suavidade, jovialidade, retidão, equilíbrio... se auto doou a esta mulher simples do povo (L. Boff. O rosto materno de Deus. Ed. Vozes, 1986). No dogma da assunção a Igreja levou em conta, privilegiadamente, essas virtudes. Por causa de sua pureza, “... a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminando o curso de sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma á glória celeste”.

No mistério da encarnação, Maria representa a humanidade pura. Como oferenda a Deus, ela pertence à humanidade que quer se elevar, representa a história humana perante Deus, preservada e isenta de toda mácula de pecado. Pura, Maria concebeu Jesus primeiro no coração, depois na mente e, por último, no útero.

Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus veio ao mundo, e é também por meio dela que ele deve reinar no mundo. A pureza de Maria foi a única forma que Deus descobriu para exprimir o novo começo da humanidade, instaurado por Jesus. A Mãe de Jesus é sempre pura. Não apenas no sentido biológico, mas num sentido mais amplo, pessoal e moral, pois em tudo jamais comprometeu sua relação com Deus como o Absoluto de sua existência. “... nem o amor para com José, sequer era um concorrente ao seu amor para com Deus” (L. Boff. op. cit.).

A Virgem Maria não é só célebre, possuidora de um exemplo que arrasta, não só por ter sido a mãe de Cristo. Deus a escolheu bem antes da encarnação ou mesmo da anunciação. A causa da grandeza de Maria não estava no fato de ela ser a mãe de Jesus, de tê-lo carregado nove meses em seu seio, e alimentado no peito. Isso era conseqüência. A causa estava no fato de ela ter ouvido a palavra de Deus e a colocado em prática. Por causa dessa sua obediência à Palavra de Deus ela disse ao anjo: “Faça-se em mim segundo a tua palavra!”. E foi aí que ela se tornou a mãe de Deus.

Nos originais das Escrituras, essa concordância que Maria expressa ao anjo, e que a Vulgata trouxe ao latim como fiat (faça-se), vamos encontrar o imperativo guenóito (que quer dizer gere-se ou nasça). Jesus não falou “felizes os que lêem as Escrituras e as praticam...”, mas foi além ao dizer: “... felizes os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática...”. A Palavra de Deus não está só na Bíblia. Ele nos fala pelas Escrituras. mas também por uma série de sinais reveladores. Maria conhecia os Livros Sagrados, mas tinha olhos para enxergar, nos demais sinais, a vontade de Deus. Por essa obediência ela tornou-se cheia de graça.

Hoje, a presença de Maria é uma constante, quer no seio da Igreja quer no coração dos cristãos. Os calendários litúrgicos estão repletos de datas que homenageiam a Mãe de Deus. Mas a devoção não se esgota apenas em alguns períodos de comemorações. A meditação sobre os mistérios da vida da Virgem Maria perpassa datas específicas e entranha-se na vida do povo que resolutamente segue o Ressuscitado. São Bernardo certa vez disse: “A respeito de Maria nunca se falará o bastante”, por isso, cada vez mais a Igreja encontra novas e inspiradas formas de homenagear a Mãe de Deus, como, em particular a música que ora serve de tema para este livro.

Na verdade, não se pode imaginar Maria em discordância com seu Filho Jesus. Os místicos da Idade Média diziam, com muita propriedade, que “quem planta Maria colhe Jesus”. Isto evidencia a estreita ligação que existe entre Jesus e sua mãe. Portanto, não se admite certas idéias que às vezes se encontram em alguns estágios da religiosidade popular, onde parece que se estabelece uma “competição” para saber quem pode mais, se Jesus ou Maria. Isto é coisa inadmissível. Jesus é Deus, segunda pessoa da Santíssima Trindade (Maria sempre soube disso) e Maria, embora elevada às honras de Mãe de Deus, é pessoa humana, constituída de carne e osso como nós.

Entretanto, no mistério da salvação, na economia libertadora do Pai, a presença de Maria é sumamente importante. Alguns irmãos, de outras religiões, vêem nela apenas o mérito de gerar o Jesus histórico e humano. Segundo alguns dessa linha, deve haver uma distinção entre o Jesus da história (gerado por Maria) e o Cristo do kérygma. Para alguns teólogos luteranos, Maria é a geradora de Cristo (Christotókos) e não a geradora de Deus (Theotókos) como ensina o magistério cristão. A devoção mariana conduz o cristão a Jesus.

Santo Afonso de Ligório († 1787), doutor em oração e espiritualidade, que fez um voto especial de nunca perder tempo, pois o tempo é de Deus, afirmou que quem ama a Jesus ama, invariavelmente, sua mãe. Nas Ave-Marias nós exaltamos o bendito fruto de seu ventre e pedimos a ela que ore por nós pobres pecadores, junto ao Deus Uno e Trino, no momento em que estamos orando e - principalmente - na hora de nossa morte. O ora pro nobis pecatoribus, nunc et in hora mortis nostrae...é a elevação sublime que a Igreja dá a Maria como intercessora nossa junto a seu filho, assim como ela intercedeu pelos noivos, por certo imprevidentes, que deixaram faltar o vinho em Caná. Animados - como ora são Bernardo - pelo carinho que Jesus trata os pedidos de sua mãe, fortalecemos nossa confiança, pois a oração a ele, feita por intermédio da Mãe, será certamente mais terna, melhor ouvida, com melhor sustentação de eficácia e, mais celeremente atendida.

Jesus, portanto, deve ser o fim último de nossa devoção a Maria, pois, ao mesmo tempo em que, pela transcendente humanidade da Mãe, começamos a amar o Filho. O serviço à vida é hoje um dos mais necessários à continuidade da espécie humana. Todo o serviço que Maria prestou, a Jesus, a Isabel, aos noivos em Caná, aos apóstolos no cenáculo, à Igreja que nascia é exemplo da atividade de alguém profundamente ligado à vida das pessoas.

A figura de Maria Santíssima, retratada modernamente em imagens, quadros e obras de arte, embora revestida de grande mistério e majestade, não reflete totalmente a grandeza daquela que foi escolhida para ser a Mãe de Deus. Embora majestade não seja um atributo que combine com a simplicidade de Maria, em se tratando de uma pessoa tão comprometida com a Igreja de seu Filho, que se faz presente no mundo, é impossível referirmo-nos a ela senão como a mulher, mãe, revestida de sol e de majestade, capaz de gerar o Cristo, Senhor da vida, no coração da humanidade. Amamos Cristo pelas virtudes – e aí vamos buscar, entre tantas, a humildade, o silêncio, a fé e a disponibilidade – de Maria, pois as glórias do mundo, no dizer de Santo Hilário são “coisas do demônio, articuladas para a perdição do homem”.

O exemplo tão sublime de Maria serve de estímulo a tantos homens e mulheres que em meio às dificuldades das estruturas injustas do mundo neoliberal moderno, sentem-se chamados à missão, ao serviço à vida, e à partilha com tantos irmãos, excluídos dos bens. Num dos magníficos sermões marianos de São Bernardo encontramos uma afirmação assaz reveladora: “Um devoto de Maria jamais se perde eternamente”. É que o amor é reflexivo. Quem ama Maria, quem é seu devoto, invariavelmente torna-se amigo, imitador e adorador de seu filho Jesus.

Por toda essa participação no mysterium salutis, Maria é presença constante no meio da Igreja de Cristo. Ela é verdadeiramente a Mãe da Igreja porque, como nos diz Santo Agostinho, com seu grande amor ela colaborou para que na Igreja nascessem os fiéis, que são os membros do corpo, do qual Cristo é a cabeça. A mãe de Jesus é presença não só entre os que oram e meditam, mas também entre aqueles que sofrem, que lutam e vivem oprimidos. Como escreveu Paulo VI,

Longe de ser uma mulher submissa ou de uma religiosidade alienante foi, sim, uma mulher que não duvidou em afirmar que Deus é vingador dos humildes e dos oprimidos, e derruba dos seus tronos os poderosos do mundo. Maria não emerge apenas como um modelo para as mulheres, mas para todos os discípulos do Senhor, inclusive no empenho pela libertação e realização da justiça (cf. MC 9) .

Da simplicidade do lar de Nazaré emerge a figura vigorosa de Maria. Sua presença é uma constante mensagem renovadora de fé e de esperança, que conduz, pelo amor e pelo exemplo, o povo de Deus à busca da santidade. A vontade de Deus é que nos santifiquemos em seu amor. Por isso é obra de uma vida, para o cristão, andar fortalecido na fé, numa santidade irrepreensível diante dele, para estar puro e digno quando da parusia (cf. 1Ts 3, 13; 4, 3). É sensível a presença de Maria nas Escrituras.

Já vimos uma menção a ela, na promessa da inimizade com a serpente. Sara e Ruth, mãe e servidora, são tipos bíblicos que prefiguram aquela que seria a mãe do salvador. O livro do Apocalipse nos mostra a mulher que, já revestida da luz e do esplendor da maternidade do Verbo, vai dar à luz um filho ameaçado pela maldade do dragão. Essa “mulher vestida de sol” é Maria (cf. Ap 12, 1-6). Na cruz, a figura corajosa e solidária de Maria é o retrato fiel das virtudes da fé, da esperança e, sobretudo do amor ágape. A cruz, para Maria, é regredir nas antigas Escrituras até o inquietante oráculo de Simeão sobre a espada de dor que haveria de transpassar seu coração (cf. Lc 2, 35). Presente na vida do filho, Maria assiste seu primeiro milagre (em Caná) e o último (a ressurreição).

Ao afirmar que a vontade de Deus é que recebamos tudo através de Maria, a Igreja reconhece (leia-se São Boaventura) nela a Mãe medianeira-de-todas-as-graças, como também a de capacidade de ser a porta do céu, pois através dela também se chega a Deus. É pela riqueza desse fio-condutor que somos ligados ao mistério e às maravilhas do Reino, cujas portas Jesus veio abrir para nós. É claro que Jesus é a porta escancarada do céu, aberta aos justos. Maria, entretanto, é um pouco, também dessa abertura. É ela que, às vezes quando a porta está meio fechada, abre uma janela do céu, para que nenhum pecador arrependido fique de fora da festa na casa do Pai (A. M. Galvão, O Rosto de Maria , Ed. Ave-Maria, 1994).

É notável a identificação da presença materna de Maria com o povo simples. Chamada de “mãe dos caminhantes” ela se solidariza com as lutas do povo que sofre, com drama dos pobres e a angústia dos migrantes. A todos que dela se achegam, ela torna-se o refrigério, a estrela da manhã, como diz a ladainha. Nas lutas do povo que sofre a injustiça em nosso continente, ela está sempre presente, consolando-o nas tribulações, inspirando-o a organizar-se e a edificar-se como gente.

Maria silenciosa, pobre, pura e humilde, caminha com os seguidores de seu Filho. De um lado vem Maria cabocla, a caminhar pelas duras veredas de nosso tórrido sertão nordestino, a procurar água, buscar comida, reclamar saúde, pedir emprego... Maria caminha com os bóias-frias, aqueles que, vivendo num regime de semiescravidão, contribuem com seu trabalho, seu suor e suas dores, para o enriquecimento do patrão... Maria vai também à frente, nos frios caminhos do sul, apoiando as comunidades, fortalecendo o ânimo dos sem-terra, contra a opressão do latifúndio, a inércia do governo e a insensibilidade da sociedade... Maria sofre também, e tem o rosto dos operários, das empregadas domésticas, das crianças de rua, das enormes massas flutuantes de migrantes e caminheiros que andam por nossas estradas e, carentes de solidariedade, incham, cada vez mais, as periferias das grandes metrópoles.

As culturas da antiguidade tinham na figura mítica do dragão a representação do que de mais horripilante e ameaçador pudesse existir. No simbolismo helenista do Apocalipse o dragão representa a antiga serpente do judaísmo (cf. Ap 12, 9; Gn 3, 1-7), personificação do mal, forte e rebelde, que derruba uma terça parte das estrelas (cf. Ap 12, 4). Há correntes exegéticas confiáveis que afirmam ser essa terça-parte de estrelas arrebatadas, os anjos que caíram seduzidos pela revolta de Lúcifer. O dragão apocalíptico, ou a antiga serpente do Éden é o poder do mal que está em luta com Deus, buscando perder o homem, desde os primórdios da criação.

A figura da mulher vestida de sol, que decididamente enfrenta o dragão que quer lhe arrebatar o filho, é Maria. Ela luta contra o mal antes mesmo do Menino nascer. O egoísmo e a discriminação arrumaram as coisas para que “não houvesse lugar para José e Maria grávida na hospedaria” (cf. Lc 2, 7). E se fossem ricos ? Se José e Maria tivessem chegado numa caravana, com muitos camelos, seguranças, baús e escravos, teriam sido mandados embora? Certamente que não. Se foram tratados com desprezo é porque já o maligno inspirava egoísmo no coração humano. Jesus ainda não nascera mas já era “sinal de contradição”. A inimizade oposta ao dragão é protagonizada por Jesus, descendente de Maria. Foi ele que chegou anunciando, na sinagoga de Nazaré que vinha libertar o povo de seus pecados (cf. Lc 4, 18s). No processo da salvação Maria encarna a mulher, com um diadema de doze estrelas, que geme em dores de parto (cf. Ap. 12,2). Do parto surgirá o Messias, e com ele a esperança de humanidade (cf. Sf 3, 12) pela libertação que vem de Deus. As dozes estrelas personificam os apóstolos e a Igreja, dos quais Maria é rainha e mestra.

Os eventos divinos acontecidos em Maria – prossegue Boff – são, na realidade, eventos escatológicos. Eles expressam o desígnio escatológico de Deus sobre a humanidade e, de modo particular, sobre o feminino. Realiza-se em Maria a situação final, já dentro da história, situação prometida a toda a humanidade: ser um dia totalmente de Deus e para Deus. Nela o feminino se historicizou de forma escatológica, explicitando todas as suas dimensões positivas, seja de virgem, seja de mãe, seja de esposa.

Maria deixou Nazaré quatro vezes. Nas quatro oportunidades saiu para prestar um serviço. Na primeira vez, levando em seu seio a Palavra transformada, foi à região montanhosa da Judéia (alguns biblistas identificam o lugar como Ain Karin), visitar sua parenta Isabel (cf. Lc 1, 39). Alguém já disse que Maria não era como certas pessoas que hoje vão fazer visitas para tomar cafezinho, ver televisão e falar da vida alheia. Ela foi servir. A prima era velha, ia ser mãe, e precisava quem tomasse conta da casa. Maria ficou lá por três meses, quem sabe trabalhando como doméstica, depois voltou para Nazaré (cf. v. 56).

A segunda saída de Maria é a mais importante: ela foi a Belém participar do censo romano, mas mais que isto, foi dar Jesus à luz e ao mundo. Na terceira vez que Maria saiu de Nazaré ela foi a Jerusalém, com José, quando Jesus fez doze anos (cf. Lc 2, 42). Ela foi prestar um serviço de obrigação religiosa. Quando os meninos completavam doze anos, eles eram como que reapresentados no templo, numa cerimônia conhecida até hoje entre os judeus como bar-mitzwa. Após essa solenidade litúrgica, os meninos eram como que oficialmente introduzidos na religião, podendo ler os rolos sagrados, nas sinagogas, coisa vedada às mulheres de qualquer idade. A quarta vez que Maria saiu de Nazaré, ao que tudo indica foi a última. Ela deve ter retornado algumas vezes em visita a parentes e amigos, mas seu destino agora estava ligado à missão do Filho. Jesus tinha cerca de trinta anos quando começou sua vida pública (Lc 3, 23).

Como as Escrituras silenciam, tudo nos leva a crer que José já havia falecido. Jesus saiu em missão de anunciar o Reino, de libertar e curar, perdoar pecados, resgatar e salvar. Maria, sua mãe, a esta altura viúva sai com ele. Nesse acompanhamento, conhecendo-se a personalidade de Maria e sua disposição em servir, torna-se fácil imaginá-la colocando-se ao lado dos sofredores, visualizá-la confortando o povo fraco e humilde, que tanto sofria nas mãos do sistema vigente em Israel.

Para compreender melhor o sofrimento de seu povo, Maria de Nazaré teve que experimentar o exílio, a tristeza de ficar longe de sua terra, a angústia no meio de um povo estrangeiro. Viu, com pavor, seu filho seqüestrado pela polícia de Herodes, e depois ser executado sem um julgamento. Assim, aquelas mães que viveram (ou vivem) coisas semelhantes em nossos dias, sabem que Maria está presente. Sente. Participa. Maria é delas também! (cf. P. Sciadini, “Maria de todos nós”, Ed. Paulinas, 1979).

A presença de Maria, mãe que consola, gera esperança e pleiteia junto ao Filho, torna-se uma característica de seu trabalho e de seu sofrimento, cujo ápice seria a cruz, mas não como aniquilamento, mas passagem para um estágio de vitória. Aos pés da cruz Maria é declarada mãe dos que sofrem, bem como dos que seguem seu filho Jesus. Assim ela tornou-se, também mãe da Igreja. No Calvário, Jesus revela que Maria também é mãe de todos os discípulos, representados por aquele a quem o Mestre tão intensamente amava. Eles (Jesus e os discípulos) já são irmãos na economia da salvação: “... mas vai dizer aos meus irmãos: Subo para junto de meu Pai, que é Pai de vocês, do meu Deus, que é o Deus de vocês...” (cf. Jo 20, 17). Na cruz, Jesus confia Maria à proteção do discípulo e amigo:

Eis aí teu filho! (idé hô uiós sú = v. 26),

J esus se dirige à sua mãe, em primeiro lugar, como que colocando em suas mãos toda a carência, a fragilidade, a ambiguidade do gênero humano Ao falar a respeito de Maria, São Bernardo afirma que, pela riqueza de seus dons e pelo fascínio de sua presença, “jamais se falará dela o bastante”. Maria, servidora, pura e simples, é mãe dos excluídos. Jesus foi excluído dos sistemas sociais, políticos, econômicos e religiosos, em seu tempo. O confiar à mãe nossas angústias, reveste-se de especial sentido, uma vez que ela conheceu em si toda a opressão e a discriminação sofrida pelos fracos. Como prova dessa predileção pelos mais simples, em Guadalupe, ela aparece a um índio, símbolo da exclusão. Se quisesse, poderia aparecer a um figurão, a alguém da elite; preferiu fazê-lo ao índio Diego. Maria saiu de Nazaré para se colocar a serviço. Deixou o mundo mas continua o trabalho a que se propôs. O culto a Maria não é algo solto, mas um conjunto. Jesus Cristo é o fim último da devoção à Santíssima Virgem. Esse culto é universal.

Na Europa ela é loura de olhos azuis; no Japão tem traços orientais; na África tem a pele escura; na Índia veste sari; no Brasil é negra; na América Latina tem feições ameríndias, é pobre, migrante e sem-terra. Como afirma São João Damasceno, “Maria é o milagre dos milagres da graça. Se quiserdes compreender a Mãe, compreendei o Filho. Ela é uma digna Mãe de Deus. Por ela toda a língua emudeça”. Há alguns subsídios bíblicos relevantes para quem deseja aprofundar a reflexão sobre Maria:

 Aceita o convite para tornar-se mãe de Deus (cf. Lc 1, 30-

38);

 Subiu à Judéia para se colocar a serviço de sua parenta

Isabel (cf. Lc 1, 39 45.56);

Dá à luz seu filho Jesus, numa gruta (cf. Lc 2, 6s);

 Repreendeu o filho que se perdera no templo em Jerusalém

(cf. Lc 2, 41-50);

 Meditava, guardando todos os fatos relevantes no silêncio

do seu coração (cf. Lc, 2, 51);

 Sua sensibilidade constata a falta de vinho e suplica pelos

noivos, na festa em Caná (cf. Jo 2, 1-10);

 Acompanha seu filho durante a vida pública (cf. Lc 8,

19ss);

 No Calvário, permanece de pé, junto à cruz (cf. Jo 19,

25ss);

 Ora com os discípulos, no cenáculo (cf. At 1, 12-14);

 Recebe o Espírito Santo, em Pentecostes (cf. At 1, 14; 2,

1);

Neste estudo, desenvolvido aqui, as “luzes no caminho” do

mundo cristão são, sem dúvidas, entre outros, a humildade de José e o silêncio de Maria. Esse exemplo é luz para a vida cristã de todo o povo de Deus. No livro dos Provérbios encontramos uma importante bem-aventurança:

Feliz o homem que obedece ao Senhor, vigiando todos os dias

à porta de Sua casa (8, 34).

Quando chegamos ao fim do nosso trabalho, fico imaginando, crente na sabedoria divina, se esse provérbio não teria sido composto imaginando a existência, no futuro, de pessoas como Maria e José. Num mundo tão difícil, por seu exemplo, eles tornaram-se luzes no caminho, em todos os tempos. O casal de Nazaré tem méritos para isto. Para Deus tudo é possível!

O autor é Filósofo, Biblista e Doutor em Teologia Moral. Publicou mais de cem livros, no Brasil e Exterior, entre eles “Uma porta aberta em Nazaré” (Ed. Ave-Maria, 1999), junto com Maria Beatrix Ferreira, “Ave-Maria. Oração do céu e da terra” (Ed. Ave-Maria, 2008), “Magnificat. O evangelho segundo Maria” (Ed. Vozes, 1986) e “Maria de todos os dias”, (Ed. O recado, 2002). Galvão assessora cursos de teologia e filosofia, e prega retiros de espiritualidade para padres, religiosos, leigos e casais.