O estatuto humano em diálogo

O pensamento nos séculos XX e XXI culmina na luta da modernidade em conceber uma ciência autônoma, isolando-a das instituições religiosas, da metafísica e também da filosofia, com temor de que estas pudessem contaminá-la com idéias supersticiosas e dogmáticas. Entretanto, o imperativo de que a ciência e a técnica podem mais que aquilo que se deve, levaram alguns pensadores à análise da sua não neutralidade, fazendo emergir o discurso ético como parâmetros e balizas nas discussões.

Uma discussão candente é quanto ao uso do ser humano em pesquisa. Com a manipulação de sujeitos vulneráveis nas pesquisas científicas, em decorrência do distanciamento entre as ciências e as humanidades, tornou a ciência incompleta em seu objetivo fundamental de servir ao homem. Para alguns autores, o emergir da bioética retoma essa preocupação. Contudo, dada a diversidade ética no discurso, não é fácil precisar diretivas seguras a esse respeito.

Para definir seu posicionamento, o Cristianismo elabora sua contribuição a partir de referenciais chaves como dignidade, liberdade, universalidade, igualdade, solidariedade e outros que sempre estiveram subjacentes nos diversos discursos refletidos nas mais diversas epistemologias seja moral, ética e outras que interconectam a vida humana como base do saber. Este é o ponto focal para o qual converge a investigação, a pesquisa e o discurso a partir de um viés religioso ou laico. É neste patamar que também se deve colocar a questão considerada fundamental sobre a qual se assenta todo discurso: quem é o homem? Considerando o humano como o fundamento de todas as outras experiências, inclusive da possibilidade do discurso, resgata a compreensão do valor da vida humana por hora ameaçada por aqueles que tendem a colocá-la no mesmo patamar de outros seres.

A antropologia cristã é iluminadora ao reconhecer a vida humana numa estreita interconexão com outros seres, como uma teia interdependente, sem, contudo, perder o seu diferencial. É exatamente a partir de seu diferencial, em abordagem mais profunda, que se estabelece também maior respeito com os outros seres. Nessa relação, Ioannis Zizioulas propõe uma mudança de paradigma, que não bastam contribuições isoladas de normas, leis e discursos para gerar mudanças, mas deve ser uma força que necessariamente perpasse pelo espírito humano, ou seja, uma força que internalize o homem e seja capaz de atingir a sua alma em sua dimensão mais profunda para daí gerar também mudanças significativas de compreensão. Sugere inclusive que as nossas espiritualidades fossem envolvidas por essa dinâmica que a ecologia profunda propõe como integração do todo, e passasse de uma mentalidade dominadora para uma mentalidade mais harmônica.

Esta parece uma postura relevante, mas o humano não deve ser sacrificado por ela. O que a ecologia profunda aborda em aspectos circunstanciais ou externos poder-se-ia tomar para uma abordagem profunda do conhecimento humano. Propõe-se que antes de falar em ecologia profunda dever-se-ia falar em antropologia profunda, ou seja, a compreensão do todo passa sempre por aquele que gera a compreensão que é o humano. Daí reivindicar primeiro o conhecimento do humano na profundidade do seu ser. Esse conhecimento profundo do humano pelo próprio homem é que lhe dá abertura para uma vida mais harmônica com os outros seres, que faz certamente olhar para os outros seres com a corresponsabilidade de terminar a obra da criação iniciada pelo Criador. Sem se amar ou se conhecer não se conhece e não se respeita os demais seres, nem mesmo respeita seus próprios pares.

Essa compreensão do humano como princípio não parece ser somente cristã, donde justificaria a interface com argumentos de alguns bioeticistas. E, sendo este um distintivo cristão, poderá ser uma força motivadora para o diálogo com algumas expressões comuns em outras epistemologias tais como a responsabilidade na perspectiva de Hans Jonas e o respeito que caracterizam o avanço de uma ciência eticamente livre. O contributo viria ainda ao considerar algumas propriedades humanas, pouco racionais como emoções, valores e crenças, refletidas pela teologia, mas postas em discussão para o crivo da interdisciplinaridade da bioética que as tornaria mais completa e mais complexa em suas interpretações.

Essa interface aponta para um resultado que Ferrer e Álvarez dizem que reduzir a teologia e a religião à ética é empobrecê-las, e reduzir a ética à teologia e à religião constituiria um grave problema dentro da sociedade pluralista e secular em que vivemos . Para ambas, o centro de preocupação é o homem que exige abertura para coexistirem e dialogarem dentro do panorama da sociedade pós-moderna. É preciso, portanto, que se assegure este centro de preocupação comum, sem o qual não há discurso ético e nem “avanços” tecnicocientíficos.