ANTROPOLOGIA DA PESSOA E RELAÇÃO FAMILIAR

PANORAMA DO HOMEM ATUAL

O verbo ‘viver’ é, certamente, um dos mais usados na linguagem cotidiana: ‘eu vivo bem’, ‘eu vivo mal’, ‘eu vivo com meus pais’ e assim por diante. Isso quer dizer que estão no mundo. Vivem correndo de um lado para o outro. Vivendo assim, os homens nem sempre sabem o que desejam. Simplesmente correm buscando melhores possibilidades de ‘vida’, quando acontece buscar.

Nesta luta quase sempre o homem se sente muito desamparado. O homem que apenas ‘vive’, isto é, que apenas está no mundo, sem perceber que ele deve estar no mundo com os outros, é um homem que vai se caracterizar pela solidão, pelo vazio e pela ansiedade. É um homem perplexo. É um homem inseguro. Este é o homem típico que trabalha tanto para a evolução do mundo, esquecendo-se de sua própria evolução, deixando de lado, para depois, aquilo que é essencial: existir, ser com o outro, comunicar-se, amar.

Vivendo deste modo, entra em progressiva instabilidade e intensivo processo de degradação estrutural.

SOLIDÃO - O homem atual vive em meio a tantas pessoas e não conhece nenhuma delas pelo próprio nome. Ele não se interessa por ninguém. Às vezes nem por si mesmo. É um paradoxo, pois ele tem à sua disposição meios de comunicação e possibilidades de entrelaçamentos humanos jamais visto. Este homem é voltado para ‘fora’ de si mesmo. A ausência de um relacionamento profundo e íntimo com seus semelhantes leva o homem a perceber-se solitário, isolado, marginalizado. Ele se torna um número a mais na sociedade de consumo.

Sair da própria solidão não significa apenas procurar um amigo, um homem ou uma mulher. Sair da solidão significa, antes de tudo, libertar-se do próprio egoísmo. Enquanto o homem estiver trancado dentro de si mesmo, enquanto ele não se abrir para a realidade profunda do mundo dos outros que estão ao seu lado, ele não conseguirá libertar-se da solidão. Ao contrário, se sentirá mais escravo dela. Estará sempre mais longe dos outros e, por consequência, sempre mais longe de si mesmo.

VAZIO – “É difícil precisar se o vazio é consequência da solidão, ou a solidão é consequência do vazio”. O homem que somente vive (postura estática) acaba não determinando quais os seus desejos, ideais e necessidades, porque não conhece seu verdadeiro ‘eu’. O ‘eu’ se constrói com o ‘eu’ do outro. A minha personalidade não é algo dado gratuitamente, mas nasce da troca de experiência, da luta e da harmonia que traço com aquele que está a meu lado.

O homem que não se conhece bem, frustra seus desejos, suas inclinações, seus ideais. Foge de si mesmo, de sua história; contudo não sufoca o impulso inerente à sua natureza de se completar, de se realizar, de se sentir cada vez mais aquilo ou aquele que ele próprio é.

Contudo, o homem atual está mais voltado para fora: ele se preocupa em saber o que os outros esperam dele, mas esquece-se daquilo que ele mesmo espera de si. Percebe-se uma preocupação intensa pela superficialidade. Nossas conversas giram em torno de loteria esportiva, futebol, política, modas, costureiros, cabeleireiros, economia, compras, etc. Nossas palavras jamais nos comprometem ou nos engajam. Jamais falam de nós mesmos. Bastam analisar bem, grande parte das músicas tocadas em nossos rádios, os filmes exibidos em nossos cinemas, as peças em nossos teatros, etc. quase sempre não possuem um conteúdo sério. São vazios de conteúdo. E qual a razão disto?

O motivo fundamental está dentro de cada homem: ele não se sente ele mesmo, ele não se reconhece. Sua imagem está pálida, desfigurada. Ele se cansou de fazer sempre as mesmas coisas, e dizer exatamente o mesmo todos os dias. Sua vida é uma rotina. Uma automatização. Seus dias, meses e anos são todos iguaizinhos. É a pessoa que perdeu a criatividade. Aí está a razão do vazio: a falta de criatividade do homem de hoje. Ele se habituou em encontrar tudo prontinho. Esqueceu-se que cada homem é chamado a criar sua ‘história’.

ANSIEDADE – a solidão e o vazio geram esta terceira característica do homem de hoje: a ansiedade. O vazio gera incerteza e insegurança no homem. O homem está desnorteado interiormente. Ele já não sabe distinguir os verdadeiros valores.

Nossa época é marcada pela presença do homem só, do homem insatisfeito consigo mesmo e com a sociedade em que vive. O homem se torna só para resolver sua problemática existencial. Tornando-se só, sua existência se transforma em um problema maior.

Para os homens de hoje as instituições já não oferecem mais confiança. Exemplo claro disso é a família: nada era feito sem a cobertura/proteção da família. O indivíduo só sentia necessidade vital de formar a família. Hoje o mesmo não acontece: não é mais a família quem decide. É o próprio indivíduo que opta por uma coisa ou outra. Em consequência tem-se a instabilidade emocional.

CONSEQÜÊNCIAS:

O homem atual, em sua maioria, encontra-se só, vazio e ansioso. O problema humano é fundamentalmente complexo. Só na superação dos próprios limites a pessoa encontra resposta; só numa visão lúcida além dos próprios horizontes a pessoa se percebe totalmente dependente dos outros e totalmente independente de qualquer situação que a destrua como tal. Hoje muito se fala dos jovens e também adultos e crianças que se entregam aos psicotrópicos. Um pouco mais grave dos que se entregam ao álcool, simplesmente. Tudo no intuito de encontrar um ‘mundo real tranquilizante’ que não está mais ao seu alcance.

Assim apresenta-se o dilema: ou me empenho para destruir a solidão, o vazio e a ansiedade, criando um mundo novo em mim e em torno de mim, ou então a solidão, o vazio e a ansiedade vão me levando a atitudes compensatórias sempre mais sérias que podem me conduzir até mesmo ao suicídio. As estatísticas demonstram: grande número de homens se mata em plena madrugada quando o silêncio mais profundo o incomoda. Sentindo-se sós, desprotegidos, vazios, a ansiedade toma conta deles, conduzindo-os ao extremo do desespero: a morte.

O HOMEM É CHAMADO A VIVER – “DEUS CRIA”

Diante dessa situação em que vive o homem é necessário que ele se coloque frente ao sentido de sua própria condição. Daí dizer em primeiro momento que este homem é chamado à vida para uma experiência de amor.

Na raiz da antropologia judaico-cristã está a consciência de que o homem é criado à imagem e semelhança do Criador. De fato, “No centro da consciência cristã dos pais e dos filhos coloca-se esta grande verdade e este fato fundamental: a vida é dom de Deus. Trata-se do dom que Deus fez chamando-nos à vida e a existir como homem ou mulher numa existência irreptível e carregada de inexauríveis possibilidades de desenvolvimento espiritual e moral: a vida humana é um dom recebido a fim de, por sua vez, ser dado. O dom revela uma característica particular da existência pessoal, ou antes da própria essência da pessoa” (Pontifício Conselho para a Família; Sexualidade Humana: verdade e significado; p. 17).

O conceito de pessoa tem origem nas palavras greco-latinas “prósopon/persona”, que quer significar máscara – que se coloca no rosto para ocultar a face. Assim este termo nos orienta para a dignidade da pessoa que está “por detrás” da realidade visível-biológica. Por detrás da realidade concreta e aparente, há uma outra realidade que não se apresenta. A máscara não serve somente para ocultar a face banal e quotidiana, mas usa-se, sobretudo, para representar “outrem” mais digno. A pessoa é mais do que aquilo que fenomenologicamente se manifesta sem, no entanto, haver divisão entre as duas instâncias. São realidades intrinsecamente unidas numa mesma substância. Esta unidade concretíssima, na qual está a natureza comum da espécie humana, com todas as suas características, é possuída pelo sujeito individual de modo absolutamente singular. A totalidade concretamente existente da pessoa transcende pelo seu valor a natureza comum e a soma de suas partes. A pessoa embora possuindo uma natureza, não se reduz a ela. Na pessoa manifesta-se a insubstituibilidade de seu ser.

Dizer pessoa é indicar uma peculiar dignidade de existência, que tem valor de fim que se afirma por si mesmo e nunca como meio usado por outro. (I. KANT, Os Pensadores, Tradução de Valério Rohlen e Udo Baldur Moosburger, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 31). A razão própria e específica da sua dignidade de pessoa é que difere da natureza comum dos outros bilhões de seres vivos de espécies diferentes. É deste modo que o personalismo contemporâneo assinala que a pessoa não pode ser considerada como objeto, mas como sujeito. Sua subjetividade é sinônima de tudo aquilo que não é redutível no ser humano. O objeto pode ser manipulado e usado como meio, mas o sujeito deve ser reconhecido como o outro que tem a mesma subjetividade que o seu interlocutor. Seja ele estando na maior deformação física possível.

Para o personalismo fenomenológico o caráter de ser pessoa confere ao indivíduo a individualidade e singularidade de existência humana, como ser “único” e “irrepetível”. Embora existindo e tendo existido no curso da história, a pessoa na fase embrionária é a mesma realidade adulta, modificada pelo tempo apenas.

O personalismo ontológico tomista de J. Maritain afirma que a pessoa não pode estar reduzida simplesmente a um aspecto do seu ser: corpo biológico, alma, razão, vontade, liberdade, espírito, que se faz presente já no seu início. Na verdade a pessoa é o conjunto desses aspectos e muito mais. Vai dizer Pascal que o homem excede infinitamente o homem.

VOCAÇÃO HUMANA: SER PESSOA

Mas, o Senhor disse: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Quando Deus diz que “não é bom que o homem esteja só”, afirma que sozinho o homem não realiza totalmente sua essência. Realiza-se somente existindo ‘com alguém’ – e ainda mais profundamente e mais completamente: existindo ‘para alguém’. É a abertura ao outro no dom de si. Inicia-se o processo do “outro” como personalização do “eu”.

Criando o ser humano à sua imagem e semelhança, Deus o chama à existência ao amor e por amor. O ser humano, enquanto imagem de Deus, é criado para amar. Deus é amor e vive em si mesmo a comunhão pessoal de amor. “O amor é, portanto, a fundamental e originária vocação do ser humano” (Familiaris Consortio, 11). Enquanto espírito encarnado, o homem é chamado ao amor nesta sua totalidade unificada. O amor abraça também o corpo humano e o corpo torna-se participante do amor espiritual.

Ontologicamente, o ser humano é um ‘ser’ aberto ao outro. Um ‘ser’ de buscas, que se complementa no outro. Enquanto ser-para-o-outro o homem não somente vive (inércia), mas existe. A irredutibilidade do seu ser é firmada ‘pelo outro’ e ‘para o outro’. Somente a partir do outro sua existência tem sentido. Dada essa condição, própria da sua natureza, o homem somente se realizará plenamente como homem, se souber criar laços de convivência e amor com os quais convive.

Não é fácil existir. É fácil viver, ou seja, é fácil estar no mundo. Existir exige um passo além. Exige fazer escolhas, empenho, compromisso, engajamento, responsabilidade, etc. Sair da solidão, do vazio e da ansiedade exige estar-com-os-outros-no-mundo e engajar-se no contexto em que o outro se encontra. É estabelecer relação íntima de corpo, mente e coração. É colocar a própria vida em risco e assumir o que o outro vive. Perceber que há muito mais de mim naquilo que dou, do que aquilo que possuo. Esquecer-se, não por abandono da personalidade, mas por ir ao encontro do mistério humano que é o outro ao meu lado. “A pessoa só se encontra quando se perde”.

Quando falamos em existir, queremos falar, antes de tudo, da comunicação. É estabelecer um vínculo afetivo entre o ‘eu’ e a outra pessoa. Alguém poderia perguntar: ‘mas o mundo hoje não é uma ‘aldeia global’? Porém já salientamos este grande paradoxo: embora com tantos meios, mas não há comunicação.

O homem não se conhecendo, não construindo o seu ‘eu’, dificilmente ele consegue perceber que o ‘tú’ é ‘seu outro eu’, seu alter ego. O equilíbrio que o outro me dá está no não que me é imposto, e no sim que me é solicitado.

Só o encontro íntimo e profundo com o outro me pode dar certeza de um engajamento altamente exigente e benéfico para o meu enriquecimento pessoal. A partir do entendimento desta ideia, percebe-se o que significa transcender. É o passo que vai além; que sai do mais profundo do eu no intuito de atingir o mais profundo do outro. No encontro com o ‘tú’ o ‘eu’ percebe sua riqueza interior, suas potencialidades, sua força criativa, sua capacidade de amar. Realiza-se então a maravilhosa descoberta da pessoa. O homem atual é chamado a descobrir a força do amor em sua vida, a existir a partir do amor, e perceber que sua vida não está amarrada e nem emaranhada na solidão, no vazio e na ansiedade. Ao contrário, ele se percebe chamado a dar um passo, a ir além de si mesmo, a ultrapassar-se. Aliás, o que é o amor verdadeiro, em última análise, senão o ultrapassar-se a si mesmo? Neste, modifico meus pensamentos, os conceitos arraigados em mim por novas verdades que o outro me apresenta. Abandono a certeza de tudo saber, para abrigar-me a perspectivas novas, que outros olhos enxergaram antes de mim. Rejuvenesço. Renovo meu ser. Arejo minhas ideias. Aprendo a dar um passo além daquilo que gosto, que penso, que sou. “O que salva é dar um passo”. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que se recomeça.

Se admitirmos que transcender é dar um passo além, só podemos concluir que meu ser se realiza enquanto ser na medida em que é um caminhar para o amor. Neste amor recíproco ‘cria-se laços’, e criar laços significa colocar-se numa atitude de ‘escuta’, não de alguns problemas de alguém, mas de escuta do próprio alguém. Não escuto colocações desencarnadas de alguém: escuto o próprio alguém. Cada argumentação me revela um pouco de sua história, cada sim ou não dito por ele, me mostra a sua fragilidade e a sua coragem. Eu não ouço palavras: eu ouço alguém, cuja experiência interior me mostra em que nível estão os laços criados. Criar laços é se colocar numa atitude de acolhimento ao outro que a mim se achega. É abraçar com o olhar, ou ainda, entender tudo que as palavras não são capazes de exprimir. Só no movimento de abertura para o outro, para receber o mundo do outro, para conhecer aquele que me dirige algumas palavras, que acontece o diálogo como forma fundamental da manifestação do existir. Existir é dialogar, na medida em que percebo que entender o outro é chegar ali, onde as palavras não têm alcance. Dialogar supõe paciência e paciência supõe tempo para amadurecer os laços que se criam pouco a pouco. Mas, paciência é algo profundamente desconhecido do homem de hoje.

VOCAÇÃO AO MATRIMÔNIO

Neste percurso de descoberta também a família possui sua dimensão vocacional. É nesta perspectiva que a teologia atual e o Vaticano II explicam o matrimônio. Não como contrato, mas como uma vocação. Os esposos cristãos “cumprindo sua missão conjugal e familiar, animados pelo espírito de Cristo… chegam cada vez mais a seu pleno desenvolvimento pessoal e a sua mútua santificação, e, portanto, conjuntamente, à glorificação de Deus (GS, 48). O Vaticano II considera o matrimônio, antes de tudo, como uma união de amor conjugal que se expressa e se realiza no encontro sexual. Esse amor tem valor em si mesmo. Somente depois se diz que esta união de amor conjugal está ordenada a ser fonte de vida. O Vaticano II entende o matrimônio como uma comunidade de amor. É o amor conjugal que vivifica e dá sentido a toda a vida matrimonial.

O amor conjugal exprime a sua verdadeira natureza e nobreza, quando se considera na sua fonte suprema, Deus que é amor. O matrimônio não é, portanto, fruto do acaso, ou produtos de forças naturais inconscientes (HV, 11). É uma instituição sapiente do Criador, para realizar na humanidade seu desígnio de amor. A comunhão de amor entre Deus e os homens, conteúdo fundamental da Revelação e da experiência de fé de Israel, encontra uma significativa expressão na aliança nupcial que se instaura entre o homem e a mulher. Palavra central no conteúdo da Revelação é afirmação de que “Deus ama o seu povo”, mesmo quando este lhe é infiel, adúltero, idólatra e desobediente.

A comunhão entre Deus e os homens encontra seu definitivo cumprimento em Jesus Cristo, o Esposo que ama e se doa como Salvador da humanidade, unindo-a a si como seu corpo. Revela assim a verdade originária e princípio do matrimônio. Esta Revelação chega à sua definitiva plenitude no dom do amor quando o Verbo de Deus assume a natureza humana. Neste sacrifício descobre-se o desígnio que Deus imprimiu na humanidade do homem e da mulher, desde a criação: o matrimônio dos batizados torna-se o símbolo real da nova e eterna Aliança.

Em sua Carta às Famílias, João Paulo II lembra que a “família é… uma comunidade de pessoas, para quem o modo próprio de existirem e viverem juntas é a comunhão: communio personarum”. Tal comunhão comporta “alguma semelhança entre a união das Pessoas divinas e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade”. Esta formulação identifica a identidade íntima de cada homem e de cada mulher: esta identidade consiste na capacidade de viver na verdade e no amor; melhor ainda, consiste na necessidade da verdade e do amor qual dimensão constitutiva da vida da pessoa. Esta necessidade de verdade e de amor abre o homem quer para Deus quer às criaturas: abre-o às outras pessoas, à vida em comunhão.

O amor conjugal, na Humanae Vitae (HV, 9), tem quatro características: o amor plenamente humano, amor total, amor fiel e exclusivo até a morte e amor fecundo. Nisto, o amor conjugal atinge aquela plenitude para a qual está interiormente ordenado: a ‘caridade conjugal’; e são chamados a viver a mesma caridade de Cristo que se doa na Cruz.

Em virtude da sacralidade do seu matrimônio, os esposos estão vinculados um ao outro da maneira mais profundamente indissolúvel. A sua pertença recíproca é a representação real, mediante o sinal sacramental, da mesma relação de Cristo com a Igreja. O matrimônio cristão reveste a dignidade de sinal sacramental da graça enquanto representa a união de Cristo e da Igreja. Como cada um dos sete sacramentos, também o matrimônio é um símbolo real do acontecimento da salvação, mas de modo próprio.

O dom do sacramento é, ao mesmo tempo, vocação e dever dos esposos cristãos, para que permaneçam fiéis um ao outro para sempre, para além de todas as provas e dificuldades, em generosa obediência à vontade do Senhor: ‘O que Deus uniu, o homem não separe’ (FC, 20). Deste modo, a comunhão conjugal caracteriza-se pela indissolubilidade e pela unidade na qual está a fonte da vida, símbolo da abertura para o amor pleno e Aliança definitiva com Deus.

MATRIMÔNIO E A VIDA FAMILIAR

Mediante a doação pessoal recíproca que lhe é própria e exclusiva, os esposos tendem para a comunhão das pessoas, em vista de um aperfeiçoamento mútuo, para colaborarem com Deus na geração e educação de novas vidas.

O matrimônio é o fundamento da mais ampla comunidade da família, pois o próprio matrimônio e o amor conjugal se ordenam à procriação e educação da prole, na qual encontram a sua coroação.

O amor conjugal, enquanto conduz os esposos ao ‘conhecimento’ recíproco e os torna ‘uma só carne’, não se esgota no interior do próprio casal. Deste modo os cônjuges, enquanto se doam entre si, doam para além de si mesmos a realidade do filho, reflexo vivo do seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do ser pai e mãe.

Tornando-se pais, são chamados a tornar-se para os filhos o sinal visível do próprio amor de Deus, do qual deriva toda a paternidade no céu e na terra (Ef 3, 15).

No matrimônio e na família constitui-se um complexo de relações interpessoais: vida conjugal, paternidade-maternidade, filiação e fraternidade mediante as quais cada pessoa humana é introduzida na família humana e na família de Deus, que é a Igreja.

O ambiente familiar é, pois, o lugar normal e ordinário da formação das crianças e dos jovens para a consolidação e o exercício das virtudes da caridade, da temperança, da fortaleza e, também, da castidade. Como igreja doméstica, a família é, realmente, uma escola de enriquecimento humano (educação moral e espiritual). Numa família cristã os pais têm força para orientar os filhos para um verdadeiro amadurecimento cristão da sua personalidade.

A família, embora rica destas forças, tem necessidade de apoio, mesmo da parte do Estado e da sociedade, segundo o princípio de subsidiariedade. É urgente promover não apenas política para a família, mas também políticas sociais, que tenham como principal objetivo a própria família como instrumento de sustentação da relação, no cuidado com a educação dos filhos e dos idosos.

A formação dos filhos para o verdadeiro amor é a melhor preparação para a vocação ao matrimônio. Na família, as crianças e os jovens poderão aprender a viver a sexualidade humana com a densidade e no contexto de uma vida cristã. As crianças e os jovens podem descobrir gradualmente que um sólido matrimônio cristão não pode ser considerado o resultado de conveniências ou de mera atração sexual. Pelo fato de ser uma vocação, o matrimônio não pode deixar de envolver uma escolha bem meditada, um empenho mútuo diante de Deus, e a súplica constante da sua ajuda através da oração.

Os filhos devem ser formados para serem fortalecidos na formação à castidade em família, momento em que os adolescentes e jovens aprendem a viver a sexualidade na dimensão pessoal, recusando qualquer dicotomia entre sexualidade e amor.

Uma educação cristã da castidade na família não pode deixar de mencionar a gravidade moral e a perturbação à concepção do verdadeiro amor que comporta a separação da dimensão unitiva e da dimensão procriativa no âmbito da vida conjugal, que se realiza pela contracepção (procura-se o prazer sexual e intervindo no ato conjugal para evitar a concepção) e pela procriação artificial (substituição do ato conjugal pela técnica) (HV, 12). É necessário apresentar aos jovens as consequências, cada vez mais graves, que derivam da separação entre sexualidade e a procriação quando se chega a praticar o esterilização e o aborto ou a assumir a prática da sexualidade dissociada do amor conjugal, fora do matrimônio. O amor leva os pais a uma noção correta dos seus próprios corpos, lançando como meio o recurso natural para o planejamento familiar. O espírito de renúncia, fortalecido pelo amor, que uma vez torna-se também fortalecido pela renúncia, levam à plenitude do dom de si. Os pais servirão verdadeiramente a vida dos seus filhos, se os ajudarem a fazer da própria existência um dom, respeitando suas escolhas maduras e promovendo com alegria cada vocação.

A família cristã é capaz de oferecer uma atmosfera permeada daquele amor a Deus que torna possível um autêntico dom recíproco. As crianças que fazem esta experiência estão mais dispostas a viver segundo aquelas verdades morais que veem seus pais praticarem em sua vida. Os pais inspiram dessa maneira o bom exemplo e a liderança essenciais para fortalecer a formação dos seus filhos. Terão confiança neles e aprenderão aquele amor que vence o medo. A família é a primeira e fundamental escola de sociabilidade: enquanto comunidade de amor, faz crescer na percepção do amor autêntico. A educação ao amor autêntico comporta o acolhimento da pessoa amada, o considerar o seu bem como próprio e, implica, portanto, em educar no verdadeiro relacionamento com Deus, com os irmãos, com os companheiros do mesmo sexo e do sexo oposto.

Educando para o amor cristão adquire-se e fortalece algumas virtudes necessárias para o bom desempenho da personalidade frente aos desafios do mundo atual: o autodomínio, o espírito de liderança, confiabilidade, altruísmo, pudor e modéstia e assim por diante.

Contudo, não se devem ignorar as dificuldades reais que são apontadas hoje para os cônjuges e os filhos como a degradação moral e social, em que os pais são chamados a intervir. Provocadas pela falta de sentido e de amor fecundo na relação familiar, o Documento de Aparecida aponta algumas mazelas que merecem reflexão para se obter uma sociedade verdadeiramente saudável.

“Vemos com profunda dor a situação de pobreza, de violência intra-familiar (sobretudo em famílias irregulares ou desintegradas), de abuso sexual, pela qual passa bom número de nossas crianças: os setores da infância trabalhadora, crianças de rua, crianças portadoras de HIV, órfãos, meninos soldados e crianças expostas à pornografia e à prostituição forçada, tanto virtual quanto real”.

Constata-se “com preocupação que inumeráveis jovens do nosso continente passam por situações que os afetam significativamente: as sequelas da pobreza, que limitam o crescimento harmônico de suas vidas e geram exclusão; a socialização cujos valores já não acontecem primariamente nas instituições tradicionais, mas em novos ambientes não isentos de forte carga de alienação; sua permeabilidade às formas novas de expressões culturais… São presas fáceis das novas propostas religiosas e pseudo-religiosas. As crises, pelas quais passa a família hoje em dia, produzem neles profundas carências afetivas e conflitos emocionais”.

É nesta perspectiva que João Paulo II conclamou as famílias: “Família, torna-te aquilo que és!” (FC, 17), ou seja, voltar ao princípio do gesto criador de Deus, se quiser conhecer e realizar segundo a verdade interior não só do seu ser, mas também do seu agir histórico. Segundo o plano de Deus, íntima comunidade de amor, a família tem a missão de se tornar cada vez mais aquilo que é: a visibilidade do invisível. Deve-se dizer que a essência e os deveres da família são, em última análise, definidos pelo amor. Por isso, é-lhes confiada a missão de guardar, revelar e comunicar o amor.

QUESTÕES A SEREM COMPARADAS

1) Há países que já legislaram sobre uniões de fato. O Pacto Civil de Solidariedade reconhece um estatuto para os casais de fato, incluídos os homossexuais, equiparando-os, em alguns direitos e obrigações, com as uniões matrimoniais (Assembléia Francesa, Pacto Cicil de Solidariedade, 13 de outubro de 1999). (VIDAL, Marciano, Moral Cristã em tempos de relativismos e fundamentalismos, Aparecida-SP: Santuário, 2007, p.135).

2) Definição de família para o Conselho da Europa: “Um conjunto de pessoas que vivem habitualmente sob o mesmo teto e que por outra parte estão ligadas entre laços de parentescos, de afinidade, de afetividade ou amizade”. (p. 148).

3) Definição de família para a socióloga Maria Ângeles Duran: “a família é uma continuidade simbólica que transcende a cada indivíduo e a cada geração, que encadeia o tempo passado e o tempo futuro”. (p. 147).

4) Definição de família pela Igreja em sintonia com a ONU: “família é a unidade básica da sociedade e que esta se baseia no matrimônio como associação de vida em comum entre marido e esposa, aos quais é confiada a transmissão da vida”. (p. 149).

REFERÊNCIAS

BÍBLIA DE JERUSALÉM, São Paulo: Paulus, 1995.

COMPÊNDIO VATICANO II, Petrópolis-RJ: Vozes, 1998, 27ª edição.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, Nº 1601 – 1665.

JOÃO PAULO II, A missão da família cristã no mundo de hoje, São Paulo: Paulinas, 2010, 23ª edição.

_______________, Carta às famílias, São Paulo: Paulinas, 1994.

_______________, Discurso do Papa João Paulo II aos participantes na assembléia plenária do Pontifício Conselho para a Família, 18 de outubro de 2002.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA, Sexualidade humana: verdade e significado, São Paulo: Paulinas, 2007.

PAULO VI, Humanae Vitae, São Paulo: Paulinas, 2001, 9ª edição.

DOCUMENTO DE APARECIDA, Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano, Paulinas, 2007.

VIDAL, Marciano, Moral Cristã em tempos de relativismos e fundamentalismos, Aparecida-SP: Santuário, 2007.

______________, O matrimônio: entre o ideal cristão e a fragilidade humana, Tradução de STORNIOLO, Ivo, Aparecida-SP: Santuário, 2007.

PAGOLA, José Antônio, Originalidade do matrimônio cristão, São paulo, Paulinas, 2007.

SCHIRATO, Sérgio José, Homem 70, São Paulo: Loyola, 1975.

KANT, I, Os Pensadores, Tradução de Valério Rohlen e Udo Baldur Moosburger, São Paulo: Abril Cultural, 1980

Rogério Jolins Martins
Enviado por Rogério Jolins Martins em 04/06/2015
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