Bioética e Religião: uma interface

O pensamento no século XX culminou na luta da modernidade em conceber uma ciência autônoma, isolando-a das instituições religiosas, da metafísica e também da filosofia, com temor de que estas pudessem contaminá-la com idéias supersticiosas e dogmáticas. Entretanto, o imperativo de que a ciência e a técnica podem mais que aquilo que se deve, levaram alguns pensadores à análise da sua não neutralidade, fazendo emergir o discurso ético como parâmetros e balizas nas discussões. A bioética surgiu neste ambiente histórico conturbado e mais precisamente devido a fatores fundamentais tais como a proteção dos sujeitos vulneráveis nas pesquisas científicas, em decorrência do distanciamento entre as ciências e as humanidades, que tornou a ciência incompleta em seu objetivo fundamental de servir ao homem.

Para alguns autores, a bioética se caracteriza como um ramo da filosofia. Para outros, trata-se de uma campo de reflexão próprio. Outros buscam sua interação com a teologia moral ou vice-versa. Para alguns, a ética normativa ou a bioética prescindem de Deus, mesmo considerando que existe uma proximidade na reflexão sobre valores e religião dentro da chamada experiência moral. Sobre esta relação, filósofos e teólogos com inspiração cristã, ou simplesmente não religiosos, mostram a marcante contribuição da religião para o desenvolvimento da ética e, posteriormente, da bioética. Um exemplo que pode ser dado neste diálogo é o texto publicado por Fermin Roland Schramm, autodeclarado agnóstico, intitulado Espiritualidade e bioética: o lugar da transcendência horizontal do ponto de vista de um bioeticista laico e agnóstico .

A experiência moral como construção humana se desenvolve independentemente do espaço em que se situa o homem: seja na religião ou em outros espaços que se procuram refletir acerca dos saberes, da historicidade da ética e da preocupação bioética, a opção pluralista do reconhecimento das diferenças, algumas mais fundamentadas com expressões básicas tais como as que caracterizam a responsabilidade na perspectiva de Hans Jonas , a justiça a partir de John Rawls , a alteridade na visão de E. Lèvinas e o respeito que no avanço de uma ciência eticamente livre e responsável. Posicionamentos considerados pouco racionais, tais como emoções, valores, crenças e tradições, emergem como contributo de experiências diversas que, a partir do seu campo próprio de reflexão, torna a bioética mais completa e mais complexa em suas interpretações.

Na religião a teologia com sua linguagem e interpretação busca clarificar para si e para os outros sua compreensão acerca da realidade humana e sua interação com todo o Universo. Com seu pressuposto claro, estará apta a uma presença credível na discussão bioética. Martins aponta duas condições necessárias para esta interlocução : a primeira condição é conseguir uma exposição compreensível e plausível das suas posições, acessível com os instrumentos racionais comuns à generalidade dos interlocutores. Essa disposição consiste em colocar à disposição da comunidade que dialoga elementos da reflexão teológica que possam ser integrados numa estrutura argumentativa comum. A segunda condição é mostrar em que consiste a especificidade do seu contributo no contexto do discurso ético. No debate interdisciplinar, não basta que cada participante proponha uma perspectiva genérica sobre o tema, mas espera-se que cada interveniente dê um contributo capaz e enriquecer a discussão, com os elementos específicos de cada um.

Na interface com a bioética, a teologia pode oferecer um grande contributo quando, para ela mesma é importante a compreensão de certos fenômenos como os fundamentalismos religiosos, e, inclusive, científicos. Dos Anjos chama atenção para a dificuldade de aceitação do discurso religioso veiculado pela teologia na bioética, que é recebido de forma variável, entre a simpatia e a antipatia, a indiferença, a desconfiança, a integração e a total separação . É grande a resistência de alguns bioeticistas em assimilar para sua reflexão os dogmatismos da reflexão teológica. Contudo, a mesma resistência deveria existir em relação aos mais diversos campos do saber, pois precisa-se reconhecer que os discursos da ciência também não são neutros e nem desprovidos de interesses em suas proposições.

Para Dos Anjos o que de fato incomoda, tanto em grupos religiosos como em comunidades científicas e semelhantes, é a convicção transformada em pretensão de monopólio da verdade. Esta corta as possibilidades de diálogo, torna as posições rígidas e confere um perfil sectário às convicções. Este pode ser o principal fator responsável pela suspeita que tem pesado sobre confessionalidades religiosas, mas que atinge também outros tipos de grupo. Para o grupo que não se abre ao diálogo há uma forte tendência de isolamento, de modo a não perceber a complexidade das realidades, quando cresce-se sempre mais, a consciência de que as realidades são por demais complexas para serem compreendidas por uma só forma de saber isoladamente. Por isso, o diálogo será possível e proveitoso se a teologia e as outras ciências se libertarem de alguns preconceitos.

Depreende-se que no intercâmbio há a possibilidade do crescimento da teologia e da bioética. A reciprocidade, dentro da pluralidade, tem na vida ética, e na reflexão bioética, a possibilidade de aprofundar e amadurecer as particularidades, numa colaboração mútua e contínua que ajuda ou eleva ao crescimento. Assim elas não se separam, mas se juntam; não se dividem, mas crescem com a mesma finalidade. Não deve haver lugar para disputas, pois ambas oferecem sua própria compreensão acerca da realidade. Ferrer e Alvarez dizem que reduzir a teologia e a religião à ética é empobrecê-las, e reduzir a ética à teologia e à religião constituiria um grave problema dentro da sociedade pluralista e secular em que vivemos . Para ambas, o centro de preocupação é o homem que exige abertura para coexistirem e dialogarem dentro do panorama da sociedade pós-moderna. É preciso, portanto, que se assegure este centro de preocupação comum, sem o qual não há discurso científico, teológico ou experiências éticas. Precisa-se considerar que, as reflexões bioéticas surgiram como necessidade da interação entre os mais diferentes campos de saber na tentativa de que o agir humano não ponha em perigo a continuidade de uma vida verdadeiramente humana sobre a terra .

Rogério Jolins Martins
Enviado por Rogério Jolins Martins em 06/06/2015
Código do texto: T5268133
Classificação de conteúdo: seguro