A veracidade da alienação religiosa

“... Sede santos porque Eu Sou santo!”. (I Pedro 1: 16).

Está resolução proclamada na primeira epístola de Pedro, talvez, seja a síntese que rege grande parte do ideário cristão hodierno, isso porque desde os idos tempos medievais a lógica da perfeição tem sido tenazmente proclamada nos púlpitos e altares que jazem nas mais diferentes espécies de igrejas – principalmente católicas e protestantes -, sendo pautada por discursos que enaltecem a malignidade e perversidade oriunda dos pecados, tais como: “Deus não habita em templo sujo”, ou ainda, “Não dê lugar a carne (desejos), senão você irá para o inferno”. E é por essa razão que pode-se tomá-la aqui como uma constituinte, ou melhor, quase uma legislação, a qual orquestra todos aqueles que se vinculam a essas igrejas debaixo de um constante alerta, a fim de que os fiéis mantenham distância das impurezas do mundo, uma vez que as tais mancham seus corpos e mentes com o líquido viscoso e pegajoso do prazer canal evanescendo toda e qualquer concepção de Deus, e consequentemente, levando-os à condenação eterna junto ao próprio demônio no inferno - algo simplesmente pavoroso, diga-se de passagem.

Em função disso – e por estar à mercê desse desfecho calamitoso – grande parte dos cristãos enveredam através da via daquilo que chamam de “santificação”, o que nada mais é do que uma série de procedimentos de sublimação, ou trocando em miúdos, uma coleção ações que tendem a levar o crente a abdicação das vontades humanas em detrimento daquelas vindas do Criador (Deus).

Entretanto, esses ritos de exclusão do material – se é que podemos chamá-los assim -, com o passar do tempo e com constantes repetições, vão se tornando maçantes, monótonos e automatizados, tal qual o trabalho de um operário fabril, cujas rotinas retiram-lhe a autonomia da execução de cada processo, fazendo-o perecer como Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos”: uma peça do maquinário... Suas orações ficam sistematizadas, os jejuns passam a ser marcados pelos ponteiros do relógio, os cultos transformam-se em compromissos e as reverências em obrigações, deixando o fiel com a sensação de exaustão e culpa perante o ideal bíblico... : “ Sede santo...”, que só aumenta a cada nova falha.

Desse modo, o cristão se vê num imperceptível antro de alienação provocado simplesmente pela crença de que a realização dos procedimentos de santificação lhe proporcionaria a condição necessária para a isenção do mundo material, quanto essa lhe garantiu, apenas, seu próprio legalismo, tornando-o refém dos estigmas provocados pelos mandamentos, o que o distancia totalmente da sensação de liberdade descrita pelo Apóstolo Paulo:

“Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. (...) Porque não recebestes o espírito de escravidão, para, outra vez, estardes em temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai.”. (Romanos 8:1,15).

E é justamente dentre essa miríade de insatisfação que ele indaga: há alguma saída para esse sentimento? Será que todas práticas de cultos são vãs? Como tornar minha dedicação religiosa algo prazeroso?

Na tentativa de dispor uma solução plausível essas lógicas contraditórias, é que o raciocino abaixo está engajado.

Antes, porém, de se tracejar qualquer diretriz em busca de uma possível resposta, é preciso colocar em pauta a suma bíblica tangente à situação, cujo o emissor, fora, nada mais, nada menos que o próprio Jesus, que no evangelho de João, revela:

“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32).

Pelo que se pode ver, a condição para a liberdade, nesse contexto, é o conhecimento daquilo que é verdadeiro, ou seja, do incontestável. Contudo, esse conceito não se mostra nenhum pouco simples, visto que a verdade em si, no âmbito humano, não existe de fato. Uma prova disso é o próprio mundo acadêmico, que vive embasado sobre teses e teorias, para as quais sempre há alguma antítese. Em outras palavras, no mundo real, somente especulamos a verdade, mas ninguém pode dizer que a conhece. Todavia, mesmo assim, Jesus a coloca como pré-requisito para uma vida livre... A questão que não se cala, então, é: por quê? ...

Mediante a isso abre-se aqui um espaço para a análise de Miguel Foucault em seu texto “A Ordem do discurso”.

Nesse ensaio Foucault mostra que todo discurso tem como fim o poder; poder sobre algo, alguém, ou alguma coisa, seja ela material, ou não. A partir disso ele emenda o seguinte comentário:

“O discurso verdadeiro, separado do desejo e liberto do poder pela necessidade da sua forma, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade que desde há muito se nos impôs é tal, que a própria verdade — que a vontade de verdade quer — mascara a vontade de verdade”.

Tal trecho significa – colocando em ternos menos filosóficos -, que nem sempre o portador do discurso tem a capacidade de reconhecer que aquilo que move sua própria fala é uma necessidade insaciável de se justificar a si mesmo... uma inquietação por sua falta de compreensão diante de algo.

Mesmo assim, pode-se perguntar ainda: mas qual é a relação disso com o dito de Cristo? Essa conexão não é, em primeira instância simples, contudo, ela pode ser trazida à tona quando conta-se a história do primeiro pecado cometido pela humanidade, segundo o livro que dá início a bíblia cristã, o chamado Gênesis. Nele vislumbrar-se o princípio da criação do universo tendo Deus como seu progenitor, e atrelado a ela a história do primeiro casal: Adão e Eva, que depois de receberem a ordem direta de Deus para que não comecem da árvore plantada no centro do jardim onde eles viviam, a desobedecem cedendo à tentação de uma serpente que lhes oferece o objeto censurado.

Mas, sem velar em conta os detalhes, e fazendo uso da análise do padre jesuíta Contieri, o que rouba a atenção nesse enredo é a condição humana antes da “Queda”, que segundo o texto era de nudez. Uma característica que evidencia algo muito especial – apesar de parecer enormemente embaraçoso levando em conta os dias atuais -, que é a ideia de limitação, pobreza e incapacidade de cada ser humano se comparado a Deus. Isso porque antes do pecado tal circunstância não era em si um problema para o ser humano, haja vista que o primeiro casal não sentia vergonha de sua condição de nu, nem perante Deus, nem na companhia do outro. Em suma, o homem no tempo de “inocência” – classificação teológica do período - contentava-se em ser puramente humano, aceitando sua condição de “não-divino”. Entretanto, essa passividade é drasticamente modificada a partir do ingerir do fruto proibido, pois daí em diante o ser humano passou a não mais aceitar a escassez de suas capacidades, e então começou a desejar e a idealizar o posto impecável de Deus; negando, desse modo, ser uma criatura, e em decorrência disso, também, a existência do Criador. Essa característica, Contieri, descreve da seguinte forma:

“O ser humano que pretende ser como Deus se desumaniza”

Logo, na seguindo esse raciocínio, entende-se que quem profere discursos negando a necessidade Deus, ou enaltecendo as ações humanas, ignora, portanto, em função de seu próprio dito, a verdade do descontentamento e inquietude pessoal de desejar a condição de infalibilidade.

Assim, é possível considerar que a liberdade pronunciada por Jesus está incutida na disposição que o homem em aceitar sua própria pobreza, sua própria incapacidade, seus próprios limites. Pois, uma vez compreendida o homem deixara de idealizar a santificação como objeto de realização e passará a atribuí-lo ao âmbito da eternidade, que é, diga-se de passagem, somente divino. Com isso, diante da não negação dos limites, o ser humano pode tirar as cortinas de seus discursos ávidos pelo poder do conhecimento, e descobrirá que a verdade é apenas uma: Deus é algo maior que existência perecível. Somente a partir daí é que, talvez, possa-se atinar melhor sobre o que o rei Salomão nomeou como o “temor do Senhor” (Provérbios 9:10), visto que diante da aceitação o homem estará mais suscetível a vontade do Criador, tornando-se, desse modo, mais sábio, de acordo com a tradição bíblica.

Destarte, agora sábio - senão apenas dessa forma - o fiel cristão poderá desfrutar da verdade manifesta dos procedimentos de santificação, e enfim se verá livre da alienação ritualística, podendo, então, desfrutar de sua liberdade, podendo todas as coisas mesmo numa situação de contentamento (Filipenses 4:10-13).

A verdade das ações religiosas só se mostra quando se capaz de aceitar a si próprio.

Rodrigo Leme de Oliveira
Enviado por Rodrigo Leme de Oliveira em 04/08/2016
Reeditado em 22/06/2018
Código do texto: T5718640
Classificação de conteúdo: seguro