OS TRABALHADORES DA CHÁCARA

Os trabalhadores da chácara

Carta de um leitor de Caxias do Sul: “Sei que você é especialista

em exegese, e gostaria que me auxiliasse na compreensão da

parábola dos “trabalhadores da vinha” (Mt 20, 1-16) cujo texto

é de difícil entendimento.

Caro amigo,

De fato, o trecho que você citou não é dos mais fáceis para a compreensão dos leitores. Tanto assim que há algum tempo eu cheguei a escrever um livro (“O dom de Deus – Um Pai que vem ao nosso encontro”, Ed. Ave-Maria, 1997) para auxiliar pessoas em dúvida sobre o assunto. Vamos começar pelo texto bíblico:

1 “De fato, o Reino do Céu é como um patrão, que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para a sua vinha. 2 Combinou com os trabalhadores uma moeda de prata por dia, e os mandou para a vinha. 3 Às nove horas da manhã, o patrão saiu de novo. Viu outros que estavam desocupados na praça, 4 e lhes disse: ‘Vão vocês também para a minha vinha. Eu lhes pagarei o que for justo’. 5 E eles foram. O patrão saiu de novo ao meio-dia e às três horas da tarde, e fez a mesma coisa. 6 Saindo outra vez pelas cinco horas da tarde, encontrou outros que estavam na praça, e lhes disse: ‘Por que vocês estão aí o dia inteiro desocupados?’ 7 Eles responderam: ‘Porque ninguém nos contratou’. O patrão lhes disse: ‘Vão vocês também para a minha vinha’. 8 Quando chegou a tarde, o patrão disse ao administrador: ‘Chame os trabalhadores, e pague uma diária a todos. Comece pelos últimos, e termine pelos primeiros’. 9 Chegaram aqueles que tinham sido contratados pelas cinco da tarde, e cada um recebeu uma moeda de prata. 10 Em seguida chegaram os que foram contratados primeiro, e pensavam que iam receber mais. No entanto, cada um deles recebeu também uma moeda de prata. 11 Ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: 12 ‘Esses últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor do dia inteiro!’ 13 E o patrão disse a um deles: ‘Amigo, eu não fui injusto com você. Não combinamos uma moeda de prata? 14 Tome o que é seu, e volte para casa. Eu quero dar também a esse, que foi contratado por último, o mesmo que dei a você. 15 Por acaso não tenho o direito de fazer o que eu quero com aquilo que me pertence? Ou você está com ciúme porque estou sendo generoso?’ 16 Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mt 20, 1-16).

É muito interessante, e rica em questionamentos, a chamada “parábola dos trabalhadores da vinha”, onde um patrão saiu para contratar operários para trabalhar em sua chácara. Muitos, ociosos, usaram a excludente do ninguém nos contratou... No fim da jornada, o dono pagou igual a todos, mesmo que uns tivessem mais “tempo de casa” que os outros.

A expressão vinha é tipicamente lusitana e aparece como tantas outras, e surge em conseqüência das origens das nossas Bíblias do Brasil, cujos estrangeirismos, especialmente os vindos de Portugal, nunca foram alterados. Se falarmos em vinha, hoje em dia, pouca gente vai entender. Alguns até vão pensar que se trate do passado do verbo vir: “eu vinha por uma avenida iluminada...”. Na verdade, vinha é uma chácara, onde se cultivam parreiras, isto é, árvores que fornecem uvas. Assim, a expressão bíblica “trabalhadores da vinha” aponta para agricultores que trabalham no cultivo de parreiras.

À primeira vista, para quem lê a parábola de forma meio apressada, o procedimento do patrão parece conter uma injustiça. A perícope que vamos estudar aqui tem como objetivo fazer com que os ouvintes de Cristo (de ontem e de hoje) entendam o comportamento misericordioso de Deus. Tal comportamento está fora das concepções e dos quadros estreitos em que querem inserir as perspectivas humanas de todos os tempos sobre a justiça. A parábola tem como escopo enfatizar a justiça do Reino. Através dessa narrativa, Jesus quer mostrar o caminho que conduz a essa justiça.

A parábola manifesta-nos que a recompensa de Deus é gratuita, e que toda a salvação é dom, isto é, fruto de sua misericórdia. Mais do que isso, ensina-nos que o que realmente conta é a intensidade de nosso compromisso cristão e não sua duração. E revela-nos também que o trabalho a serviço do Senhor é em si mesmo uma graça e uma recompensa, pois o Reino é um dom. E como tal, gratuito. O relato dos desempregados que esperavam nas praças para que os donos das propriedades os contratassem como diaristas, não é um caso imaginário, mas uma realidade da Palestina do tempo de Jesus. Na história, parece que o patrão tenta nivelar a remuneração, fato que provoca inveja e revolta nos demais.

O trato humano do patrão que oferece emprego em sua chácara, inflete diretamente na idéia do Deus misericordioso que chama ao amor, à vida e às riquezas do seu Reino. Essa atitude humanitária revelada por Jesus é uma pálida imagem da generosidade do Pai que quer acolher a todos. As primeiras comunidades cristãs valiam-se das figuras desta parábola para ensinar que também os pagãos, embora não tenham vivido os primeiros tempos da Igreja, têm os mesmos direitos à remuneração que Jesus veio oferecer.

No mundo há um paradoxo gritante entre a justiça de Deus e a dos homens. O empregador humano visa sempre seu interesse. Deus quando vocaciona o homem para trabalhar em sua obra, está começando a salvá-lo. Querer enxergar e julgar as coisas, como fizeram os trabalhadores da parábola, usando critérios econômicos, sociais ou culturais, pode não ser o correto. A atitude humana do patrão, não é entendida pelos diaristas da primeira hora (os que tinham mais “tempo de casa”), que se mostram surpreendidos, que vêem os contratados no fim, ganharem a mesma diária completa, igual a deles.

Deus dá a todos, por amor, oportunidades iguais. Há os chamados desde o princípio; há os sensibilizados à última hora. Todos são bem-vindos; todos amados... Há os que se escondem atrás de desculpas e subterfúgios. No Reino de Deus ninguém é marginalizado. Todos têm o direito de participar daquilo que o Senhor quer dar. Ali não há lugar para ciúme nem para excessiva auto-valorização. A parábola precisa ser alvo de uma leitura mais próxima ao ministério de Jesus, criticado pelos fariseus, por sua aproximação com os pecadores (operários da última hora). A partir da compreensão da “parábola dos talentos”, onde os bens foram distribuídos,

a cada um conforme a sua capacidade... (Mt 25, 15)

e de outras manifestações bem claras, como a decepção de Jesus, no que tange ao desconhecimento do poder da graça, da riqueza dos dons e da magnitude do Reino,

ah! se você conhecesse o dom de Deus! (Jo 4, 10)

podemos, aos poucos buscar a compreensão da atitude do patrão, vista, num primeiro momento como uma injustiça, afinal, uns trabalharam todo o dia, enquanto outros, apenas umas poucas horas. Que justiça é esta? Deus dá seus dons a quem ele quer, da forma como bem entende. Isso faz parte do seu projeto:

Por acaso não tenho o direito de fazer o que eu quero com aquilo que me pertence? (v. 15a).

Deus é o Senhor dos dons e os distribui conforme seus projetos, e de acordo com a capacidade de cada um. Aqui, a parábola mostra que o Reino é um dom, presente gratuito, sem merecimentos anteriores, igual para todos, que o Pai nos manda através de seu filho Jesus. Não tem lugar para inveja ou ciúme:

Ou você está com ciúme porque estou sendo generoso? (v. 15b)

O ciúme, como um sentimento negativo da humanidade, está presente em todos os lugares, até no seio das comunidades cristãs. Se alguém se distingue, trabalha mais, tem idéias melhores ou estudou mais algum assunto, é visto com desconfiança, destratado como quem “quer aparecer”, ou acusado de tentar manipular as lideranças para assumir o poder. O ciúme, infelizmente, é uma realidade presente em vários compartimentos sociais. Inclusive nas igrejas. Ao invés de louvar a Deus pelo dom que ele obsequiou um irmão, em geral as pessoas procuram deslustrar esse mérito, torcendo a visão, como se fosse algo mau ou negativo. É preciso muita unção para entender o mistério da distribuição dos dons de Deus.

Às vezes, nossa limitação humana não nos deixa compreender que alguém, recém convertido, um passageiro que subiu no último trem, seja admitido na mesma comunhão com Deus, que nós, que somos cristãos há quarenta anos, e carregamos o “peso dos mandamentos” a vida inteira. Parece – se não enxergarmos sob a luz da fé e da partilha dos dons – que Deus está sendo injusto com a gente...

Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos (v. 16).

Esta é uma expressão que Jesus utiliza mais de uma vez, como chancela da mudança de situação que a instauração do Reino dos céus provoca. Ser último ou primeiro depende mais do amor com que se acolhe o chamado do que de lugar ou posição. Aos que julgam possuir mais méritos que os outros, considerando-se mais santos ou convertidos, é bom esclarecer que a faculdade de usufruir o Reino dos Céus é totalmente gratuita. Lá, como na casa do pai “rico em misericórdia”, tem lugar igual para o filho que nunca saiu, como para aquele que se evadiu, errou e quis voltar. Compreender isso é entender a essência da misericórdia de Deus.

Os evangelhos deixam claro que Jesus é o mestre da equidade, por isso ele passa toda a sua vida pública exigindo que a justiça praticada por seus seguidores ultrapasse a dos teólogos (doutores da lei), fariseus (escolhidos) e dos sacerdotes (cf. Mt 5, 20). A remuneração combinada era boa e justa, pois todos os trabalhadores a aceitaram. Uma moeda de prata, para trabalhar um dia, era excepcional. A moeda de valor é o Reino. Na essência da parábola, Jesus diz: “trabalhe para mim e eu lhe darei o Reino”. Não importa o tempo que trabalhamos para ele, mas sim a fidelidade que empregamos nessa tarefa. Os trabalhadores não quiseram admitir que o patrão tratasse a todos em pé de igualdade. Afinal, alguns estiveram disponíveis desde a manhã...

Deus não tem os mesmos pensamentos nem os caminhos dos homens (cf. Is 6, 8). Ele pensa e age diferentemente de nós. Assim, não julga por aquilo que a pessoa fez ou produziu, mas pela orientação geral que ela deu à sua vida. O Pai se guia pela misericórdia e não pela lógica das leis humanas, por isso sua justiça nem sempre é entendida pelos homens. A justiça que os trabalhadores pleitearam era semelhante a dos doutores e fariseus. Jesus emprega a justiça divina, rica em bondade e amor. O que rege a justiça dos cristãos deve ser, não a lei em si, mas a misericórdia, o perdão, o amor. Nisto consiste a plenitude da justiça. A misericórdia de Deus, é bom que a gente não perca de vista a profundidade desse mistério, está acima da própria justiça.

Um abraço.