Contra o Trinitarianismo Social

INTRODUÇÃO

O Trinitarianismo Social (doravante TS) é uma das maneiras contemporâneas de tentar dar sentido à doutrina da Trindade. É a ideia de que a Trindade forma uma sociedade única de seres divinos distintos, cada um dos quais tem sua própria exemplificação da divindade[1]. Ela admite que há três pessoas na Divindade que não são, de modo algum, o mesmo deus; mas o monoteísmo é garantido pelas relações especiais mantidas entre as pessoas.

O TS formulado pelo professor Edward Wierenga[2] entende que não devemos dizer que as três pessoas da Trindade são Deus, mas que elas são divinas. Ou seja, elas têm todos os atributos da divindade, mas elas não são idênticas a Deus. Embora existam três pessoas divinas realmente distintas, há apenas um ser - o complexo de que esses três entes distintos são os constituintes - que possui a propriedade de ser idêntico a Deus.

A TRINDADE EGÍPCIA

Para começar a perceber os problemas do Trinitarianismo Social, podemos compará-lo à teologia de Amon-Rá que dominou da 18° à 20° dinastia do Egito, como faz Michael Rea em artigo publicado no Journal of Theological Studies[3]. Cher-El L. Hagensick, em uma crítica à Trindade[4], cita supostas trindades pagãs nas quais os cristãos poderiam ter se baseado. Entre elas está a tríade egípcia Amon-Rá-Ptá, que foi vista como um único deus trino cujo rosto era Rá, Ptá seu corpo, e Amon sua identidade oculta. O próprio Hagensick afirma a seguir que isso não prova que a Trindade cristã venha da “trindade” egípcia, mas mostraria que do Egito veio a ideia de uma triunidade em Deus; contudo, ele não provou essa relação de casualidade de forma alguma, o que torna sua opinião em nada mais que achismo. Ainda assim, essa “trindade” era, na verdade, três deuses perfeitamente unidos, e não um único deus.

Precisamos ter em mente, em primeiro lugar, que a religião egípcia estava em constante evolução. Deuses eram periodicamente adicionados, atributos de deuses existentes eram modificados e mitos conflitantes desenvolvidos. Michael Rea cita especialistas em sincretismo egípcio para argumentar que essas combinações não representavam a absorção de um deus por outro ou a identificação de um deus com outro, mas sim a introdução de uma nova divindade composta, formada pelas outras como partes de um quebra-cabeça. O objetivo do artigo de Rea é mostrar que o trinitarianismo social é perigosamente semelhante à teologia de Amon-Rá. Isso não é, sozinho, uma prova de que o TS é falso, uma vez que muitos conceitos do Cristianismo estão presentes em religiões anteriores, o que se encaixa perfeitamente na doutrina bíblica de que Deus se revela aos homens por meio da natureza e da Sua imagem neles. Mas tal semelhança deve nos despertar a desconfiança.

É claro que há muitas diferenças entre a Trindade Social e a teologia de Amon-Rá. Especialmente duas: essa reconhece outras divindades além de Amon-Rá-Ptá e os seus deuses não têm uma relação de interdependência necessária. Mas a comparação nos mostra que a interdependência mútua necessária entre as pessoas divinas de uma religião não asseguram o monoteísmo. Os defensores dessa tese precisam ainda desenvolver uma longa tradição de estudos a respeito do significado do monoteísmo que possa ser aplicado a outras religiões para ser respeitado.

A TRINDADE SOCIAL NÃO É A TRINDADE ORTODOXA

O Trinitarianismo Social também tem problemas teológicos. Para começar, ele parece discordar do Credo de Atanásio, que ensina que “o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus” (15). Para Wierenga, a divindade é um atributo das pessoas da Trindade, mas eles não são idênticos a Deus. O problema é que é difícil distinguir isso de um triteísmo. Wierenga defende que no triteísmo há três seres que são idênticos a Deus, mas na Trindade há pessoas divinas, não três pessoas idênticas a Deus. Só que a própria distinção entre “ser Deus” e “ser divino” é difícil de justificar, historicamente, filosoficamente ou biblicamente. Ao contrário, segundo Rea, embora a distinção entre monoteísmo e politeísmo seja complexa em alguns casos, ao comparar os estudos sobre a teologia egípcia com os argumentos do Trinitarianismo Social de que ele é monoteísta, conclui que eles não são suficientes.

O trinitarianista social se preocupa com o fato de que o Cristianismo reconhece mais de uma pessoa divina; para isso não ser politeísmo, seria preciso repensar o significado de politeísmo. Contudo, para permanecer monoteísta, o trinitarianista social depende de redefinir o significado de monoteísmo. Para Plantinga[5], por exemplo, parece que é possível ser monoteísta e crer em vários deuses, contanto que eles sejam uma comunidade cuja divindade derive de uma mesma fonte (no caso da Trindade, o Pai), ou compartilhe de uma única natureza divina (como nós humanos compartilhamos uma natureza humana única). E Richard Swinburne[6] defende que o deus da Bíblia é um indivíduo composto cujas partes ou membros são completamente interdependentes, à semelhança de Amon-Rá-Ptá.

INTERPENETRAÇÃO

O professor Karen Kilby, analisando os problemas do trinitarianismo social[7], explica que esses teólogos muitas vezes apelam para o conceito Patrístico de perichoresis, a interpenetração, uma empatia perfeitamente intensa na Trindade. Kilby, contudo, os acusa de projetarem em Deus os seus próprios ideais. Isso acontece em três etapas: primeiro, eles usam o conceito de interpenetração para nomear aquilo que não conseguem entender, aquilo que torna as três pessoas da Trindade um só; depois eles enchem esse conceito com noções emprestadas dos relacionamentos humanos, sobre o que une os seres humanos em uma comunidade; por fim, usam essa união das pessoas da Trindade de maneira emocional como um exemplo de como devem ser os relacionamentos entre as pessoas, a fim de defender causas como o feminismo.

Desenvolvendo o conceito de Interpenetração, o teólogo Oliver D. Crisp[8] afirma que ele tem sido usado para preencher uma lacuna conceitual na reflexão sobre a Trindade e sobre a união entre as duas naturezas de Cristo; ele tem a ver com o que faz com que as três pessoas divinas não sejam três deuses ou as duas naturezas de Cristo não sejam duas pessoas. A resposta é que as três pessoas se interpenetram umas às outras, assim como a natureza divina interpenetra a natureza humana, sem confusão e sem mistura. Esse é um mistério, não é possível entendê-lo plenamente, e muitas tentativas de fazer isso levaram teólogos a ensinarem heresias.

Quanto à interpenetração das naturezas de Cristo, Randall Otto[9] afirma que perichoresis é a atribuição das prerrogativas de uma natureza à outra, o que foi posteriormente chamado de Comunicação de Atributos. Crisp, porém, enfatiza que as duas doutrinas não são exatamente a mesma coisa. Segundo Berkhof[10], comunicação de atributos é a doutrina de que o que é dito de uma das naturezas de Jesus pode ser dito da pessoa toda. Por exemplo, Deus não pode morrer, mas a pessoa divino-humana de Jesus morreu na cruz. O homem não é onipresente, mas a pessoa divino-humana de Jesus é onipresente. Isso não significa, como entende o papismo, que o divino é humanizado e o humano é divinizado. A Divindade não pode participar da fraqueza humana, e a humanidade não pode compartilhar de nenhuma das perfeições incomunicáveis divinas, pois as duas naturezas não se misturam. Crisp chama essa interpretação de “comunicação de atributos fraca”, e é esse o entendimento tradicional dos reformados.

Contudo, há uma forma mais “forte” de comunicação de atributos, que entende que há uma transferência real de propriedades entre a natureza humana e a divina, tradicionalmente abraçada pelos luteranos. Ele então aponta alguns problemas nessa interpretação. Primeiramente, se as duas naturezas compartilham todos os seus atributos, sem terem nenhum que a distinga da outra, então as duas naturezas são uma coisa só. É uma questão de lógica: se duas coisas têm exatamente as mesmas propriedades, então elas são idênticas. Assim Cristo não teria mais duas naturezas, mas uma só, um tipo de fusão entre a divina e a humana.

Agora, se apenas alguns atributos forem comunicados entre as naturezas, isso ainda implicaria que a natureza humana de Jesus não é totalmente humana, e que natureza divina não é totalmente divina. Isso porque se a natureza humana de Jesus é onipresente, por exemplo, como geralmente os luteranos afirmam, então ela não é plenamente humana; do mesmo modo se ela for onipotente, eterna, onisciente, etc. Igualmente, se a natureza divina for limitada de alguma forma, recebendo algum atributo da natureza humana, então ela deixa de ser divina. A humanidade de Jesus e a divindade só são preservadas se elas forem mantidas separadas.

Ainda que um único atributo seja comunicado de uma natureza à outra isso ainda seria problemático, pois nos levaria a conclusões logicamente impossíveis, como que uma das naturezas de Jesus é onipresente e limitada no espaço ao mesmo tempo, ou onisciente e ignorante sobre alguns assuntos ao mesmo tempo, etc.. Só podemos dizer que Jesus é limitado e infinito em seus atributos (poder, conhecimento, etc.) se mantermos suas duas naturezas separadas.

Após essa curta análise do significado da Comunicação de Atributos, Crisp afirma que ela tem um sentido ligeiramente diferente da Interpenetração das Naturezas. Esta envolve uma relação assimétrica entre as duas naturezas de Cristo. A natureza divina de Cristo interpenetra sua natureza humana sem confusão, sem se misturar com ela e sem haver qualquer transferência de atributos divinos para a natureza humana. E a natureza humana não interpenetra a divina em qualquer sentido. As duas permanecem unidas, mas distintas, assim como Deus interpenetra toda a Criação, sustentando-a a cada momento, mas Deus não se mistura com a Criação.

Mas o mais importante para a nossa crítica ao trinitarianismo social é a interpenetração de pessoas, ou seja, aquilo que une as pessoas divinas em um único ser. Como diz o decreto do Concílio de Florença: Por causa desta unidade, o Pai está inteiramente no Filho e totalmente no Espírito Santo, o Filho está inteiramente no Pai e totalmente no Santo Espírito, o Espírito Santo está inteiramente no Pai e inteiramente no Filho. Como eu disse, os trinitários sociais se apropriam desse conceito para defender sua tese. Mas a versão social da interpenetração de pessoas não é a única. Contudo, antes de entendermos esse conceito, precisamos meditar no próprio significado de "pessoa".

O QUE É UMA PESSOA?

Grande parte do debate trinitário envolve a definição dos termos. Segundo o Papa Bento XVI[11], o conceito de pessoa, e toda a ideia por trás dele, é uma criação cristã, surgida da interação entre a filosofia humana e a revelação divina. Ele apareceu durante a tentativa de responder duas questões fundamentais: “o que é Deus?” e “quem é Cristo?”.

O primeiro pensador a aplicar essa ideia foi Tertuliano, no século II. O conceito de "pessoa" surgiu da interpretação das Escrituras, uma vez que os teólogos perceberam que, para explicar o fato de que Deus dialogou com o homem, era necessário se aprofundar na noção de “eu”, “tu” e “ele”. À luz desse conhecimento sobre o divino, a verdadeira natureza da humanidade foi esclarecida por uma nova luz. Pessoa é relacionamento. Não dizemos apenas que a pessoa do Pai gera o Filho, mas o Pai é a própria ação de gerar. O Pai só é Pai porque tem um Filho.

Bento XVI também faz uma crítica à definição de Boécio de que pessoa é a substância individual de natureza racional. Melhor do que essa é a definição de Ricardo de São Vitor, para quem pessoa é a existência incomunicável de natureza espiritual.

João Calvino, nas Institutas, Vol. 1, define pessoa como uma subsistência na essência de Deus que, enquanto relacionada com as outras, se distingue por uma propriedade incomunicável. Mais adiante, demonstra que as pessoas não são uma divisão na Trindade, mas uma distinção; cada uma é o todo de Deus, embora as três sejam distintas nas relações que mantém entre si.

Thomas Hobbes estabelece sua concepção de "pessoa" no capítulo XVI de Leviatã[12]. Uma pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas. Nesse sentido ele ensina mais adiante que Deus é três pessoas porque Ele teve três representações: a primeira, o Pai, em Moisés e nos sumo-sacerdotes; a segunda, o Filho, em Jesus Cristo; e a terceira, o Espírito Santo, nos apóstolos e bispos. A pluralidade de pessoas se dá com a pluralidade de representantes. Essa é uma definição bastante defeituosa, mas útil como contraste com interpretações mais ortodoxas.

E Karl Barth propôs que a fórmula “um deus em três pessoas” para a Trindade é inadequada. Isso porque, nos últimos séculos, o termo “pessoa” ganhou um sentido que seria diferente do significado original, de modo a incluir um atributo de autoconsciência, fazendo com que Deus tenha três mentes e três vontades distintas. Por isso ele preferia a expressão “três modos de ser”, que tornaria mais claro o que os antigos queriam dizer com “pessoas”[13]. Quando falamos da Trindade, diferente do que ensina o trinitarianismo social, não estamos falando de três divinos, mas três vezes um único eu divino, um Deus com uma única mente e uma única vontade.

Voltando à interpenetração de pessoas, Crisp afirma que há uma versão "forte" e uma versão "fraca". A "forte" afirma que todas as propriedades de cada pessoa da Trindade é comum às outras duas. O problema disso é que, se fosse verdade, as pessoas da Trindade seriam indistinguíveis. Ao contrário, há uma distinção entre as pessoas porque elas possuem propriedades que as outras não têm. Essas propriedades são puramente distinções nas formas como cada pessoa se relaciona umas com as outras. Por exemplo, a propriedade da filiação, ou seja, o ser gerado eternamente do Pai, pertence unicamente ao Filho, e é isso que o torna Filho. Portanto, a interpenetração das pessoas da Trindade (na versão "fraca", a mais ortodoxa) significa que elas compartilham todas as suas propriedades EXCETO aquelas que as individualiza dentro das relações intratrinitárias.

DISTINÇÃO E RELAÇÃO

Uma vez estabelecido que, na Trindade, há distinções e relações, precisamos entender que tipo de distinção e que tipo de relação são essas. Segundo Joseph Owens[14], existem três tipos de distinções: real, conceitual e verbal. A distinção entre o ferro e a madeira é real, a distinção entre o ferro e o metal é conceitual (a única diferença é que metal é um conceito mais amplo que INCLUI o conceito de ferro) e a distinção entre minha esposa, Day e Dayana Andrade é verbal (as três expressões se referem à mesma coisa, só os nomes são diferentes). O modalismo, por exemplo, acredita que a distinção entre as pessoas da Trindade é apenas verbal, mas nós cremos que ela é real.

Por outro lado, existem dois tipos de relações. Uma relação real é quando duas coisas estão relacionadas independente da interpretação humana, enquanto a relação da razão acontece apenas na mente humana, como a relação entre uma bola pequena e uma bola grande[15]. A relação das pessoas da Trindade é do primeiro tipo, não do segundo.

Para Tomás de Aquino, as únicas relações reais possíveis são aquelas baseadas em quantidade, ações ou paixões. Não pode ser baseada em quantidade porque Deus não é plural, Ele é absolutamente Um. Se cremos na Impassibilidade de Deus, as relações também não podem ser baseadas em paixões, já que Deus é ato puro, Nele não há potencialidades, mudanças ou paixões. Logo, as relações na Trindade são relações de ações, ações internas, imanentes.

Para Aquino, só existem duas ações imanentes possíveis em Deus: intelecto e vontade. Segue-se que o Filho prossegue pelo caminho do intelecto como Palavra, e o Espírito Santo por meio da vontade como Amor. Desse modo, o termo “pessoa divina” nada mais é que as relações no Ser indivisível de Deus[16].

UMA ALTERNATIVA VANTILIANA

Para Van Til, contudo, que Deus é um ser em três pessoas não é toda a verdade sobre a Trindade[17]. Em certo sentido, devemos afirmar que a Trindade também é uma única pessoa[18]. Essa afirmação de Van Til depende da sua apreensão da doutrina da Interpenetração. Isso porque, uma vez que as três pessoas se relacionam na interpenetração, elas têm uma única vontade, uma única mente e uma única consciência. Nesse sentido a Trindade seria uma única pessoa.

Contudo, relembrando o que diz Barth, o sentido antigo da palavra “pessoa” excluí a ideia de consciência, de modo que dizer que a Trindade é três pessoas não significa dizer que ela tem três centros de consciência. Desse modo, a Trindade é três pessoas no sentido antigo e uma única pessoa no sentido mais moderno que envolve a ideia de auto-consciência, e é nesse último sentido que podemos nos dirigir a Deus como uma única pessoa.

Aqui podemos ver outra forma de distinguir a teologia ortodoxa do trinitarianismo social: o TS entende que a Divindade é composta por três consciências divinas que se relacionam de tal forma que são como se fossem um único deus, enquanto a ortodoxia entende que a Trindade é formada por uma única consciência divina que se relaciona consigo mesma como três pessoas reais. Digno de nota, contudo, é o fato de que Van Til parece caminhar por uma via mais complexa: ele entende que Deus é uma consciência e três consciências ao mesmo tempo. Isso porque as três consciências se interpenetram de tal forma que as três consciências podem ser interpretadas como uma só. Ao manter essa aparente contradição, Van Til apela para o mistério.

A questão do mistério é fundamental aqui. Ao tentar explicar aquilo que está acima da nossa compreensão, ignorando o mistério, os defensores do TS acabam por tentar diminuir o tamanho de Deus para fazê-lo caber nas nossas cabeças. Ao tentar explicar a Trindade como uma interpenetração de três seres distintos que se tornam um só, o Trinitarianismo Social acaba por negar a verdadeira unidade de Deus. Isso faz com que o TS não seja uma Trindade de verdade, mas uma tríade de deuses perfeitamente unidos, como Amon-Rá-Ptá.

Além disso, o TS parece ferir a doutrina da Simplicidade Divina. O teólogo escolástico Pedro Abelardo explicou esta doutrina da seguinte forma: Deus não pode ser dividido em partes, é completamente desprovido de acidentes, não pode ser alterado de forma alguma e não pode haver nada Nele que não seja Ele mesmo[19]. Em outras palavras, o ser de Deus é idêntico a cada um dos seus atributos. Isso inclui as pessoas divinas: Deus não pode ser dividido em Pai, Filho e Espírito Santo, mas Ele é todo Pai, todo Filho e todo Espírito Santo. Desse modo, Deus não pode ser um complexo de três seres divinos perfeitamente unidos, mas é um único Deus simples.

Ao apresentarmos a doutrina da Trindade, precisamos encontrar uma maneira de manter a perfeita unidade de Deus e a distinção real entre as pessoas divinas. Se para defender a Trindade diante das objeções dos rivais do Cristianismo for necessário corromper sua tri-unidade, como faz o TS, então a Trindade fica melhor sem defesa. Mas, ao contrário, Van Til nos mostra que não só é possível defender a Trindade diante dos nossos adversários, como só é possível defender a verdadeira Trindade. James Anderson, em artigo publicado no Calvin Theological Journal[20], nos ajuda a entender um pouco contexto do uso da Trindade na apologética vantiliana, analisando o argumento transcendental de Van Til. Segundo o apologeta, o único sistema que permite qualquer conhecimento é o Cristianismo Trinitário, de modo que ou ele é completamente verdadeiro, ou não é possível descobrir verdade alguma. O Cristianismo é a única cosmovisão que atende às pré-condições para o raciocínio.

Primeiro, precisamos ter em mente o Problema do Um em Muitos. Nas palavras de Armstrong[21], há coisas que têm determinadas propriedades e estão em certas relações, mas isso é muito enigmático filosoficamente, pois a mesma propriedade pode pertencer a coisas diferentes e a mesma relação pode relacionar coisas diferentes. Aparentemente, pode haver algo idêntico em coisas que não são idênticas. As coisas são uma ao mesmo tempo em que são muitas. Por exemplo, duas pessoas manifestam a unidade no fato de elas serem pessoas humanas e pluralidade no fato delas serem duas pessoas diferentes. Para termos conhecimento de uma delas, precisamos ao mesmo tempo entender o que a unifica aos outros seres humanos e o que a separa deles, para poder distingui-la.

Segue-se que, para termos conhecimento de objetos no mundo, a realidade precisa ser tal que sua unidade e pluralidade estejam relacionadas, mas permaneçam distintas. Se o mundo for apenas pluralidade, a realidade é um conjunto de coisas que são totalmente diferentes e não relacionadas entre si, de modo que nós jamais podemos saber qualquer coisa sobre elas, porque não temos com o que relacionar umas às outras. Por outro lado, se o mundo for apenas unidade, segue-se que a realidade é monista, uma única coisa indiferenciada, o que faz com que nada possa ser realmente conhecido. A única resposta coerente para esse dilema, para Van Til, é a Trindade. Deus exibe a perfeita união e perfeita pluralidade. A Criação reflete a unidade e a pluralidade de Seu Criador.

Este argumento de Van Til pode ser sintetizado em seis premissas: (1) a ontologia do universo é tal que a unidade é definitiva e não há pluralidade, ou a pluralidade é definitiva e não há unidade, ou unidade e pluralidade são definitivas ao mesmo tempo; (2) se a unidade é definitiva e não há pluralidade, então o conhecimento do universo (mesmo em parte) é impossível; (3) se a pluralidade é definitiva e não há unidade, então o conhecimento do universo (mesmo em parte) é impossível; (4) o conhecimento do universo não é impossível; (5) logo, a ontologia do universo deve ser tal que a unidade e a pluralidade são definitivas ao mesmo tempo; (6) só o cristianismo, pela Trindade, permite que unidade e pluralidade existam eternamente ao mesmo tempo.

Aqui percebemos que a apologética de Van Til não apenas defende um teísmo geral, como muitos apologetas fazem, mas especificamente o cristianismo ortodoxo – em oposição às heresias trinitárias e interpretações da Trindade não-tradicionais, como o trinitarianismo social. Aqui entra mais uma vez a doutrina da Interpenetração, pois é ela que mostra como a pluralidade pode ser unidade ao mesmo tempo. O mistério decorrente disso leva Van Til a crer que não existe fatos brutos, todo fato é um fato interpretado, uma vez que toda a Criação é o resultado de uma ação de alguém auto-consciente e, por isso mesmo, interpretada por ele.

Por fim, podemos citar a teologia trinitária de Schleiermacher[22], que lembra um pouco o trinitarianismo social, pois ele reivindica uma identidade entre a Trindade Imanente e a Trindade econômica através do uso da circunscrição do amor divino para a construção das pessoas da Trindade. Mas o mais importante é que, para Schleiermacher, a Trindade econômica seria apenas um meio-termo entre o monoteísmo judeu e o politeísmo pagão, feita para atrair ambos os grupos. Essa é uma hipótese que carece de comprovação mais elaborada, visto que o fato Trindade poderia ser interpretado de modo oposto; ao invés de dizermos que o meio-termo que ela coloca entre monoteísmo e politeísmo é uma prova de que a doutrina tem preocupação em converter grupos distintos, poderíamos inferir que o fato dessa doutrina ser difícil de aceitar tanto para monoteístas quanto para politeístas é uma prova de que seus defensores tinham muito mais preocupação em serem fiéis do que em serem convincentes. Eis a lição que aprendemos: não devemos tornar as doutrinas bíblicas mais fáceis de serem aceitas, seja moral, seja logicamente. Só a Verdade, em toda a sua plenitude, pode libertar o homem das trevas.

[1] BROWER, Jeffrey. The Problem with Social Trinitarianism: A Reply to Wierenga.

[2] WIERENGA, Edward. Trintiy and Polytheism. Faith and Philosophy.

[3] REA, Michael. Journal of Theological Studies, Vol. 57, Abril de 2006.

[4] HAGENSICK, C. The Origin of the Trinity: From Paganism to Constantine.

[5] PLANTINGA, Cornelius. Social Trinity and Tritheism.

[6] SWINBURNE, Richard. The Christian God. Oxford: Clarendon Press, 1994.

[7] KILBY, Karen. Perichoresis and Projection: Problems with Social Doctrines of the Trinity. New Blackfriars, Outubro de 2000.

[8] CRISP, O. Problems With Perichoresis. Tyndale Bulletin 56.1, 2005.

[9] Em "The Use and Abuse of Perichoresis".

[10] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática.

[11] RATZINGER, Joseph. Concerning The Notion Of Person In Theology. Communio: lnternaiional Catholic Review, 17, Outono de 1990.

[12] MALMESBURY, Thomas Hobbes de. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.

[13] BARTH, Karl. Church Dogmatics, Vol 1.1, Doctrine of the Word of God. Vol. 2. London: T&T Clark, 2010.

[14] OWENS, J. An Elementary Christian Metaphysics. Houston, Texas: Center for Thomistic Studies, 1963.

[15] AQUINO, Tomás. On the Power of God. London: Burns Oates & Washbourne, 1934.

[16] BAKER, Thomas. A Thomistic Look at the Trinity with Concentration on the Kinds of Distinctions and Relations Among the Divine Persons in Light of Simplicity.

[17] TIPTON, Lane. The Function of Perichoresis And The Divine Incomprehensibility. W.R.J. 64, 2002, p. 289-306.

[18] VAN TIL, Cornelius. An Introduction to Systematic Theology. Phillipsburg, Nova Jersey: Presbyterian & Reformed, 1974.

[19] BROWER, Jeffrey. Trinity. Disponível em: <https://philpapers.org/archive/BROT-3.pdf>

[20] ANDERSON, James. If Knowledge Then God: The Epistemological Theistic Arguments of Alvin Plantinga and Cornelius Van Til. Calvin Theological Journal, Abril de 2005.

[21] ARMSTRONG, D. Universals and Scientific Realism I: nominalism and realism. London, New York, Melbourne: Cambridge university press, 1978.

[22] WALTER, Gregory. Trinity as Circumscription of Divine Love according to Friedrich Schleiermacher.