É conhecido de todos os leitores da Bíblia Sagrada que Jesus falava muito por meio de parábolas para transmitir verdades sobre conceitos morais, éticos e explicar realidades complexas para a época como salvação, o Reino de Deus e o Evangelho em si. Ele usava elementos simples e conversas do dia a dia para passar sua mensagem, e podemos observar uma semelhança nesse principio didático em “As crônicas de Nárnia”, escrito pelo famoso professor de Literatura Medieval e Renascentista da Universidade de Oxford, C.S. Lewis (Clive Staples Lewis – 1898-1963). Grande parte da sua fama atual veio por meio de seus livros infanto-juvenis, que são cheios de visão do mundo cristão, ora explícitas, ora intrínsecas no seu enredo.
     “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, talvez uma das mais famosas crônicas que englobam a coleção de “As Crônicas de Nárnia”, foi a primeira a ser publicada e também a ser adaptada para o cinema, embora seja a segunda na ordem cronológica. Uma obra de ficção, mas com uma base verdadeira e já conhecida. Nessa crônica conhecemos os irmãos Pedro, Edmundo, Lúcia e Suzana, que tiveram que sair de casa para se protegerem dos ataques aéreos que aconteciam durante a guerra na cidade de Londres, indo morar num lugar bem distante da cidade, na casa de um velho professor. Para encontrar uma nova forma de lidar com esta fase, os irmãos começam a explorar as possibilidades de entretenimento que a casa pode proporcionar, quando encontram um caminho para outro mundo no guarda-roupa: Nárnia. Neste mundo, as crianças entram em contato com criaturas mitológicas e animais falantes, e descobrem que aquele lugar vive um inverno eterno, pelo poder da Feiticeira Branca. Apenas a chegada de Aslam, o Rei Leão pode mudar essa realidade.
     Sem mais delongas, vamos agora para a intertextualidade entre a crônica e a Bíblia, que está presente em quase todo o enredo de traição e redenção; pecado e salvação. Uma das primeiras alusões ao livro sagrado é o fato de Lewis chamar as crianças de “filhos de Adão” e “filhas de Eva” quando é citada a tradição na qual somente os humanos poderiam ocupar o trono: “Uma velhíssima tradição já anunciava que, quando dois filhos de Adão e duas filhas de Eva se sentarem nos quatro tronos, então será o fim, não só do reinado da feiticeira, mas da própria feiticeira” (LEWIS, 1950, p.139). A seguinte passagem também deixa isso muito claro: “Aslam decreta que o trono de Nárnia só pode ser ocupado por Filhos de Adão ou Filhas de Eva”. (DURIEZ, 2005, p.174). Temos aqui então a representação bíblica do homem e da mulher, o qual um dos mandamentos é dominar todas as criaturas: “(...) Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1.28).
     Como mencionado anteriormente, Nárnia se encontrava escravizada pela magia da feiticeira que colocou naquele mundo um frio implacável do inverno eterno, acontecimento este que nos leva a mais uma referência bíblica em que Paulo fala sobre a criação quando escreve sua epístola aos romanos: "a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus" (Rm 8.20-21). E assim, como nós esperamos o nosso Redentor, o Leão da tribo de Judá (Ap 5.5) nesse mundo de angustias, Nárnia também esperava por Aslam para a resgatar do terrível inverno: "O mal será bem quando Aslam chegar. Ao seu rugido a dor fugirá. Nos seus dentes, o inverno morrerá. Na sua juba a flor há de voltar." (LEWIS, 1950, p.137).
     Outro ponto bíblico importante abordado na crônica é o pecado e a redenção individual, representado por meio de Edmundo, o retrato do ser humano pecador e egoísta, perdido nos seus desejos. Depois da traição de Edmundo havia um preço a ser pago: "Sabe que todo traidor, pela lei, é presa minha, e que tenho direito de matá-lo!" (LEWIS, 1950, p.165). O pecado tem um preço, como diz Paulo na carta aos romanos: "porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 6.23). Sim, o pecado leva a morte, mas há um redentor que nos perdoa e nos dá a vida eterna! E mais, quando perdoado não há mais acusação para quem está em Cristo, assim como Lewis escreveu após o encontro de Aslam e Edmundo: “Aqui está o quarto Filho de Adão. E... bem... não vale a pena falar do que aconteceu. O que passou, passou” (LEWIS, 1950, p.164), também escreveu Paulo: “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo” (II Cr 5.17). Muitas vezes somos atormentados pelos nossos pecados, nos deixamos abater por julgamentos de pessoas vãs, mas que tomemos o exemplo de Edmundo quando perdoado, que mesmo acusado pela feiticeira diante de todos continuou simplesmente a olhar Aslam, seu redentor: "– Há um traidor aqui, Aslam! – declarou a feiticeira. Todos os presentes entenderam. Mas Edmundo, depois da conversa pela manhã e de tudo mais, não deu bola. Continuou simplesmente a olhar para Aslam” (LEWIS, 1950, p.165). Então, esse é o ponto: Acima de Deus, não há tribunais superiores. Se Deus é aquele que nos absolve ninguém pode buscar outras acusações contra. A sentença de Deus é decisiva e completa. “Agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus (...) Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica." (Rm 8.1,33).
     A redenção em Nárnia é cumprida quando Aslam vai ao matadouro em silêncio e por amor, por causa da traição de Edmundo: "Mas ficou quieto, mesmo quando os inimigos rasgaram a sua carne de tanto esticarem as cordas." (...) "rodearam Aslam zombando dele”. (LEWIS, 1950, p.170). O momento que claramente faz analogia a profecia de Isaías, cumprida em Cristo: “Mas ele foi transpassado por causa das nossas transgressões, foi esmagado por causa de nossas iniquidades; o castigo que nos trouxe paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos curados (...) Ele foi oprimido e afligido, contudo não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado para o matadouro, e como uma ovelha que diante de seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca”. (Is 53.5,7). Mais adiante, também como nos Evangelhos, as primeiras pessoas a verem a ressurreição de Aslam foram mulheres: Susana e Lúcia. "Olharam. Iluminado pelo sol nascente, maior do que antes, Aslam sacudia a juba”. (LEWIS, 1950, p.174).
     E por fim, o que acontecera com as estátuas que ainda prevaleciam sob a magia da Feiticeira? Vejamos: “Aslam aproximou-se do leão de pedra e soprou (...) e as estátuas voltaram à vida por todos os lados”. (LEWIS, 1950, p.177). Especialmente nesse acontecimento encontramos até mesmo uma semelhança entre outro livro muito famoso de Lewis, “Cristianismo Puro e Simples” que cita: "Uma pessoa que deixasse de ter Bios [vida natural] para ter Zoé [vida espiritual] teria de ter passado por uma transformação tão radical quando uma estátua que deixasse de ser pedra esculpida para um ser humano real. É disso precisamente que o cristianismo se ocupa. Este mundo é uma grande loja de esculturas, nós somos as estátuas e há rumores por aí de que alguns de nós, algum dia, despertaremos para a vida" (p. 210). Com duas referências do próprio autor em livros diferentes, ainda encontramos uma intertextualidade no livro de Ezequiel, possível ponto de partida da ideia de Lewis: “E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne”. (Ez 36.26).
     Em Nárnia tudo era frio e sombrio. A feiticeira e seus servos, sempre tiveram muito medo da profecia de Aslam voltar se cumprir. Aslam voltou. Foi morto e ressuscitou, trouxe vida e primavera a Nárnia. A lição que “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa” nos traz é que não importa o quão sombrio esteja esse mundo, o quão confuso e cheio de dor se revela a cada dia. O nosso Aslam chegará. Ao som do seu rugido, todo o mundo se curvara. Existe um Deus que fez sua obra bela e reina sobre todas as circunstâncias.
Débora Thamyres

REFERÊNCIAS

BÍBLIA LEITURA PERFEITA. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018.

LEWIS, C. S. As Crônicas de Nárnia. Trad. Silêda Steuernagel, Paulo Mendes Campos. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

DURIEZ, Colin. Manual Prático de Nárnia. Tradução de Celso Roberto Paschoa. Osasco: Novo Século, 2005.

LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples. Trad. Gabriele Greggersen. 1 ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.
Abra a Porta e Débora Thamyres
Enviado por Abra a Porta em 21/12/2020
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