*A Inquisição ou Santo Ofício.

    A Inquisição ou Santo Ofício

Sempre que eu escuto alguém falando em “caça às bruxas”, a primeira impressão é de que essa pessoa pertence ao time do achismo.

De cada dez pessoas que abordei, depois de falar essa expressão, dez não sabiam coisa alguma sobre o assunto. Uma me disse que tinha acontecido na Idade Média. Quando eu a questionei sobre quando tinha começado a Idade Média, não obtive resposta. Quando indaguei em que ano da Idade Média começara isso, a resposta foi “não sei”.

Gente que não sabe quando começou, nem onde, nem como e nem o porquê da Inquisição. Pessoas que nunca leram nada sério sobre o assunto e ficam iguais a papagaios, repetindo bordões. Isso vale igualmente para muitos professores de História. Então, de cara, eu indico três livros: “A Inquisição: um tribunal de misericórdia”, de Cristian Iturralde, várias editoras, inclusive Amazon.com.br; “A Inquisição em Seu Mundo”, do prof. João Bernardino Gonzaga, editora Saraiva; e “A Inquisição na Espanha”, de Henry Kamen, um escritor britânico que escreveu pela Yale University Press, mas já existe tradução em Português.

Primeiro de tudo, temos que admitir que a História é feita em seu tempo e, como tal, não pode ser julgada fora de seu contexto e de seu mundo. Não se pode, a bem da verdade, fazer julgamento sob as luzes do Direito de hoje, de um caso acontecido em tempos remotos. Se o fizer, será apenas malabarismo no trapézio com iminente risco de queda.

Rolava o ano de 2011 e eu trabalhava em Alagoinhas-BA, quando um macumbeiro sacrificou uma criança, num ritual satânico. A sorte dele foi que a polícia chegou a tempo de salvá-lo do linchamento da população, que já estava fazendo justiça a seu modo.

A pergunta que faço é: “Se fosse teu filho – que Deus te livre e te guarde! – qual seria tua reação?”

Pois bem, as bruxas da Idade Média não eram nada santinhas!

Dito isso, vamos aos fatos:

Na Idade Média, o povo tinha uma religiosidade mais intensa e também um alto grau de ignorância e crença em superstições. Hoje não é diferente. Ofender o rei poderia resultar em pena de morte e ofender a Deus era muito mais grave ainda.

Então, por aí, já se pode imaginar o que significava um crime de heresia.

O que forçou a criação da Inquisição foi o aparecimento de uma grande onda de hereges violentos. Antes, tenho a dizer que a heresia nunca nasce de um ser estúpido e sim, de um homem muito inteligente, pois só uma pessoa especial pode sustentar como verdade uma heresia.

Pedro Valdo era analfabeto – não confundir inteligência com escolaridade – e, certo dia, disse ter recebido uma revelação. Daí por diante, passou a pregar o Evangelho, em desacordo com a Igreja e, mesmo assim, conseguiu arrebanhar um imenso número de seguidores, que ficaram conhecidos como ‘valdenses’. Andavam aos bandos, em vida promíscua.

Berengário e Amaury Bène eram filósofos e professores de Teologia em universidades. Este último disse que tudo estava em Deus. Nesse caso, por conclusão, até o capeta também estava em Deus. Baruch Espinosa também afirmou a mesma idiotice e acabou sendo excomungado duplamente, tanto pela Igreja Católica como pelo judaísmo. Arnaldo de Bréscia, os Cátaros e Gnósticos engrossaram esse time.

Os Cátaros, também conhecidos como Albigenses, acreditavam na metempsicose. Abusavam sexualmente das mulheres e os filhos delas nascidos eram sacrificados em rituais satânicos e depois, queimados, para aproveitarem as cinzas. Por onde passavam, eles queimavam cruzes, incendiavam igrejas, hostilizavam o clero, tal como acontece ainda hoje. Em 2019, doze igrejas católicas foram incendiadas na França e uma em Monte Santo, na Bahia. Mas somente teve repercussão a de Notre Dame de Paris.

Pois bem, o rei Roberto II, o Piedoso, em Orleans, na França, prendeu de doze a quatorze desses líderes. Como não se arrependeram e ainda se disseram felizes porque iam morrer, foram condenados à fogueira, em 1022. Azar o deles!

Portanto, oficialmente, a inquisição foi instaurada na Idade Média Ascendente, em 1017, em Orleans, e terminou na Espanha, em 1834. Durou, portanto, a bagatela de 817 anos. Para quem não sabe, a Igreja detestou essa novidade, tanto que o rei foi excomungado pelo Papa Bento VIII.

Para a turma do achismo, que acha que quem inventou a Inquisição foi a Igreja Católica, se ligue: a Igreja só entrou nessa briga em 1231, consequentemente, 214 anos depois de seu início. E isso aconteceu para dar aos acusados um julgamento justo, pois era comum, tal como aconteceu em Alagoinhas, a população fazer justiça com as próprias mãos. Até então não havia julgamento digno.

Jorge Pimentel Cintra disse: “De certa forma, a Inquisição foi a reação de defesa de uma sociedade, para a qual a defesa da fé era importante como a saúde ou os direitos humanos para a sociedade atual. A Inquisição representou um claro progresso com relação aos tribunais e julgamentos da época, como reconhecem muitos juristas atuais: era o tribunal mais justo e brando de seu tempo”.

Falou-se que a Igreja torturava, esfolava e moía; no entanto, o historiador Jean Antônio Llorente, crítico da Igreja, disse que as prisões dos tribunais da Inquisição eram secos, bem abobadados, e que eram uns palácios, se comparados com outros cárceres europeus. Que nenhum dos encarcerados pela Inquisição era mantido acorrentado ou carregado de grilhões.

É comum, também, se dizer que a inquisição levou para a fogueira milhares e milhares de pessoas. Isso não passa de desinformação ou de má-fé. Até mesmo os maiores críticos da Igreja desmentem essa afirmação. A Enciclopédia Iluminista Francesa, de 1765, atesta os exageros nos ataques à Igreja. Henry Charles Lea, escritor protestante, disse, em seu livro “‘Histoirede L’Inquisitionaumoyen age”: “A inquisição não foi uma organização arbitrariamente concebida e imposta ao mundo cristão pela ambição e pelo fanatismo da Igreja. Foi antes o produto de uma evolução natural – poder-se-ia dizer quase necessária – das diversas forças de ação do século XIII”.

Muitas pessoas não gostavam da intromissão da Igreja, pois achavam que ela era condescendente. Para o povo daquela época, ninguém poderia ser absolvido de seu crime, apenas por demonstrar arrependimento, como, diga-se de passagem, ainda hoje também pensamos. Quem perdoa é Deus; a lei condena e o Estado executa.

Os crimes de heresias e feitiçarias eram não apenas crimes religiosos, como também um crime contra a sociedade.

O professor Bernardino Gonzaga diz: “Aos sábados, começava a festança, quando todos deveriam beijar o traseiro de satã, representado pela figura de um bode. Seguiam-se comidas e bebidas fartas, em meio a imensas orgias e depravações sexuais, inclusive com o demônio presente, e era voz corrente que também se procedia ao sacrifício ritual de crianças.”

É possível que algum leitor entenda a afirmação acima como sendo uma fantasia, inverdade, invencionice. Pois bem, na década de 70, aqui em Aracaju, um radialista chamado Luiz Howarthconstruiu um templo, em forma de caixão, ao qual ele batizou de “igreja do diabo” e se autodenominou “O Papa do Diabo”. Isso revoltou a população sergipana que cobrou do governador Augusto Franco a demolição do templo. Hoje, um governador não tem mais poderes para tanto.

O que ninguém deve saber é que existiam três tribunais: o Tribunal Civil, o Episcopal e a Inquisição propriamente dita, que julgou apenas 20% dos casos.

O braço secular – o Estado – realizou na Espanha 44.674 julgamentos, numa média de 279 processos por ano. Foram condenados à morte 840 réus (1,8%), 13 réus foram condenados à revelia e, em seus lugares, foram incendiados bonecos.

Enquanto isso, no que se refere aos tribunais eclesiásticos, a História mostra que esses foram infinitamente mais indulgentes. Dos 125.000 processos jugados, resultou em pena capital: 59 pessoas na Espanha, 36 na Itália e 4 em Portugal, totalizando 99 vítimas, ou seja, 0,0008%.

As maiores matanças de bruxas aconteceram na Lituânia, Suíça, Dinamarca, Polônia, Alemanha e Noruega. Das 772 sentenças proferidas pelo inquisidor Bernardo Guy, em 15 anos de atuação, apuraram-se os seguintes resultados: 139 absolvições, 132 penas canônicas, 152 obrigações de peregrinações, 307 prisões e 42 foram para o espeto quente.

Sob as sombras da História, hiberna um acontecimento tenebroso, patrocinado por Lutero, Calvino e os reis da Inglaterra, que ficou conhecido como a Inquisição Protestante e que acabou resvalando até aqui no Brasil.

Eu não estou aqui para instigar ninguém, pois não é meu objetivo, mas a grande maioria protestante do Brasil não sabe ou se faz de sonsa. Irei lembrar apenas um grupo de 80 católicos que foram massacrados sob o comando de protestantes calvinistas holandeses, em 1645, no Rio Grande do Norte. Crianças foram degoladas e partidas ao meio. Quem duvidar, pesquise.

Outro registro triste é que passaram para os povos de hoje a ideia de que os inquisidores eram pessoas estabanadas, insensatas, truculentas. Ao contrário disso, eram pessoas piedosas e, por vezes, piedosas até demais. Eram sacerdotes versados em Direito Canônico. Eles eram fiscalizados, dentro das limitações da época, seja de transporte como de comunicação. É verdade que aconteceram casos destoantes, de juízes que extrapolaram em suas sentenças, mas isso não era a regra comum.

Qualquer juiz que cometesse abusos ou fraudes de qualquer espécie seria excomungado e deposto de suas funções, como foi o caso do Inquisidor de Carcassonne, na França. Nesse item, registro o caso de Roberto, Inquisidor-Mor da França, no século XIII, que se tornou violento na repressão à heresia. Informado sobre isso, o Papa Gregório IX destituiu-o das funções e mandou encarcerá-lo.

Os tribunais:

• Os tribunais eram montados em ambientes simples, sem pompas, e o corpo de juízes era composto por três ou quatro sacerdotes franciscanos ou dominicanos, sob a supervisão de um chefe. Tinha um inquisidor, um diretor espiritual, um escrivão e guardas;

• O processo corria em Segredo de Justiça, para que se evitassem agressões ao acusado e aos seus familiares;

• Os réus se apresentavam espontaneamente, sem escoltas;

• Ao réu era apresentada a denúncia crime e ele tinha um prazo de três a quatro semanas para formular sua defesa;

• Era permitido ao acusado ser assistido por um advogado ou pessoa idônea;

• O acusador que fizesse denúncia falsa incorreria no mesmo crime do acusado;

• Em qualquer etapa do processo, caso o acusado se sentisse prejudicado na ação penal, poderia apelar para um tribunal especial em Roma;

• As penalidades iam de deportação, expropriação, multas, destituição de cargos públicos, retratação ou arrependimento, compromisso de fazer uma peregrinação, participação nas Cruzadas, até o uso de uma cruz costurada na roupa, como demonstração pública do arrependimento do herege. As piores penas ao impenitente eram de confiscação dos bens, prisão por um determinado tempo de vida ou prisão perpétua e, em último caso, ele era entregue ao braço secular – o Estado – que o mandava para a fogueira, vivinho da silva. A Prisão perpétua, no entanto, foi abolida pelo Papa.

Como se pode notar, a condenação à morte não fazia parte da execução padrão. Como também é de se saber que muitos se arrependiam de “mentirinha”, pois ninguém era besta! A pena de peregrinação é outra piada, convenhamos. Os condenados à morte não eram executados imediatamente, tinham um dia e uma noite para refletir e se arrepender. Todavia, tinham aqueles idealistas que preferiam morrer a abdicar de sua crença ou ideais. Os cátaros, por exemplo, eram tão fanáticos que praticavam a Endura, espécie de suicídio sagrado.

Dentre os casos mais comentados da Inquisição, temos Galileu Galilei, Giordano Bruno e Joana D’Arc.

Galileu Galilei – Em 1982, muitos astrônomos, como Oven Gingerich e Joseph Zycinscki, durante um simpósio coberto pelo Washington Post, disseram que a tese heliocêntrica defendida por Galileu não podia apresentar em seu favor razões convincentes para a época. Galileu dizia que o fluxo e o refluxo das marés eram prova de que a terra se movia em torno do sol. Afirmação falsa. Quem provou, de fato, que a terra se movia no espaço foi Jean Bernard Léon Foucout, físico francês, em 1851, ao dependurar um pêndulo no Panteon de Paris. Quem duvidar, vá ver, que ainda está lá, girando ininterruptamente.

A tese da heliocentricidade da terra nem foi de Galileu e sim, do padre polonês, Nicolau Copérnico, que apresentou um sistema matemático sobre o assunto. Aliás, esse assunto remonta a tempos ainda mais remotos. A Igreja ofereceu resistência, porque percebeu que apenas pouquíssimos astrônomos da época concordavam com Galileu e Copérnico.

Àquele tempo, acreditava-se no geocentrismo. A Bíblia não afirma isso, mas em algumas traduções no Salmo 92,2 consta que “o Senhor Deus firmou a redondeza da terra que não será abalada.” Eis aí o motivo da encrenca.

Galileu não foi acusado, torturado ou condenado por heresia. Ele foi acusado de desobedecer a uma ordem da Igreja, o que, de fato, é verdade. A Igreja queria que ele dissesse que era apenas uma teoria, já que nada estava provado. A partir de 1610, Galileu passou a defender as ideias de Copérnico e recebeu admiração por cientistas jesuítas. Também não é verdade que Galileu, ao recuar, tenha dito baixinho com seus botões, em bom nordestinês: “Tá bom, bixim, eu desdigo, mas continuo”.

Giordano Bruno–era um frade dominicano que se tornou um dos maiores hereges de todos os tempos. Queria fundir a fé católica ao panteísmo. Passou a duvidar da Trindade, uniu-se a Calvino e teve vida errante. Disse que Moisés não recebera de Deus os Dez Mandamentos. Esculachou com Aristóteles. Ainda assim, teve oito dias para se retratar. Como não recuou, morreu feito churrasco na fogueira, para deixar de ser broco. Achei foi pouco e, como dizemos lá no Piauí: “Bempregado”!

Joana D’Arc – esta, de fato, foi condenada e morreu na fogueira, vítima da Inquisição, de inquisidores venais e de testemunhos falsificados. O que ninguém fala é como ocorreu o julgamento, que foi muito mais civil que religioso; muito mais político que herético. O cenário de fundo tem como foco uma guerra entre Inglaterra e França. Quem estudou sobre A Guerra dos cem anos, suponho que saiba que Joana D’Arc foi a grande heroína desse evento. De posse de uma espada que nunca usou e empunhando um estandarte de tecido, conseguiu expulsar os ingleses. Isso os ingleses não engoliram. Hoje se sabe que a política esteve presente em todo o julgamento, conforme afirmam os escritores desse assunto.

Para concluir:

Em 1998, o Papa João Paulo II abriu os arquivos do Santo Ofício, para que se fizesse uma devassa sobre a Inquisição. Então, de 29 a 31 de Outubro, foi realizado, no Vaticano, um Simpósio Internacional sobre a Inquisição, com a participação de, pelo menos, 29 historiadores de várias partes do mundo e de religiões diferentes, sob a supervisão do historiador italiano, Agostino Borromeo, professor da universidade La Sapienza de Roma, que resultou num volume de mais de 780 páginas, com o título de L’inquizisione.

Pois bem, de posse desse documento, o professor Felipe Aquino fez um resumo, que resultou num livro de 300 páginas, com o título “Para entender a Inquisição”, da editora Cleófas.

Eu não teria espaço para dissecar um assunto tão rico de acontecimentos num tempo tão exíguo, mas uma coisa teríamos de nos perguntar: Sendo a Inquisição tão demoníaca como se pinta, por que diachos era chamada de Santo Ofício? Não faria sentido. Na contramão da história, ainda aparece gente como o senhor Dan Brown que, se valendo de documentos apócrifos, escreve coisas falaciosas que muita gente entende como verdadeiras.

De minha parte, espero apenas ter colaborado no clareamento da verdade.