O DILÚVIO UNIVERSAL

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Todas as várias vertentes do Cristianismo insistem sobre um conceito fundamental: o que está escrito na Bíblia, principalmente no A.T., deve ser considerado verdade histórica. Em particular, no Art. 1219 do Catequismo Católico lemos o seguinte: «A Igreja viu na arca de Noé uma prefiguração da salvação pelo batismo. Com efeito, graças a ela, um pequeno grupo, ao todo oito pessoas, foram salvas pela água. Nas águas do dilúvio, destes-nos uma imagem do Batismo, sacramento da vida nova, porque as águas significam ao mesmo tempo o fim do pecado e o princípio da santidade». Essa afirmação encontra respaldo nos documentos produzidos pela Congregação pela Doutrina da Fé (ex Santo Ofício), onde lemos que: «Uma primeira vitória sobre o mal está representada na história de Noé, homem justo, que, guiado por Deus, escapa ao dilúvio com a sua família e com as diversas espécies de animais».

A veracidade desse evento é atestada por historiadores cristãos, em particular pelo acadêmico jesuíta Pe. Anton Deimel (1865-1954) especialista em assiriologia que, com muito afinco, enfatiza registros de enchentes locais em algumas regiões da Mesopotâmia esquecendo, ao mesmo tempo, de fornecer provas que até um estudante de Geologia consideraria necessárias para afiançar um fato tão catastrófico e global.

Assim como a Ciência moderna reconhece concordemente que a queda de um asteroide deu fim, 65 milhões de anos atrás, ao mundo dos dinossauros sendo a prova contida numa fina camada de irídio encontrada em todos os continentes, é evidente que um dilúvio realmente universal teria deixado uma imensa camada de lodo recheada pelos restos de bilhões de animais e pessoas que sucumbiram numa época relativamente recente. Lembramos que, de acordo com a narração Bíblica, as águas ultrapassaram de sete metros a altura do Monte Everest (8.849 metros) permanecendo durante 150 dias seguidos. Considerando que a enchente de Ur de 4.000 anos atrás deixou uma camada de detritos alta até quatro metros, a gerada pelo Dilúvio seria tão consistente que os ossos de nossos ancestrais punidos por Javé deveriam aparecer a cada golpe de enxada, até no semi-árido nordestino.

Mas, na realidade, quanto a arca poderia ter subido acima do nível do mar sem causar danos aos seus próprios hóspedes? Vamos supor que a enorme caixa, apesar da sua conformação totalmente inadequada para a navegação, tenha sido constantemente mantida na longitude de desembarque no Monte Ararate. Os quarenta dias de chuva incessante numa altura alcançada pelos jatos comerciais (quarenta graus negativos), teria resultado no congelamento da família de Noé e da maioria dos animais com a transformação da água em gelo, aprisionando a arca que nunca teria conseguido pousar nos mais de cinco mil metros de altura do Ararate. Decerto os exegetas e os apologistas saberiam, mais uma vez, dar uma explicação racional, mas é difícil que um cientista consiga nessa façanha.

Mesmo aceitando acriticamente esta parte da história, não é possível negar que o Dilúvio não teria destruído apenas as espécies animais, mas também teria dado fim a todas as formas de vida vegetal na terra. A salinização da água da chuva - originada pela sua mistura com a água do mar - e o ter ficado durante alguns meses sob uma espessura de vários quilômetros dessa mistura letal, teriam levado à morte as árvores e as plantas, além de causar o envenenamento e o apodrecimento das sementes, gerando, destarte, uma esterilidade completa do solo. Por outro lado, a redução da taxa salina nos oceanos também teria tido efeitos devastadores sobre a flora e a fauna marinha, inclusive com o desaparecimento do plâncton.

Sem falar que um aumento desproporcional da massa da Terra teria levado a uma mudança indeterminada na órbita do planeta e uma mais que provável variação catastrófica das relações gravitacionais, pelo menos entre os planetas internos do sistema solar. No entanto, sabe-se que estudiosos como Deimel não são particularmente interessados no que é óbvio, mas apenas no que concorda com suas verdades e não nos explicam, por exemplo, de onde veio toda essa água e onde foi parar quando ela evaporou.

Vamos agora considerar forma e dimensões da arca: um paralelepípedo de 150 metros de comprimento, 25 de largura e 15 de altura, divididos em três andares. É evidente até mesmo para quem não é especialista, que esse objeto teria quebrado assim que as águas começaram a levantá-lo. Nem mesmo com maquinários modernos e com a ajuda da tecnologia atual seria possível fazer navegar esta ridícula caixa de madeira. Então, como se pode imaginar que um fazendeiro, sem a menor noção de engenharia naval, possa ter produzido um “navio” usando apenas pregos, madeira e betume? Mesmo supondo que a arca tivesse conseguido boiar, ela teria virado na primeira onda de certa consistência ou na primeira rajada de vento lateral. No entanto, para ter certeza de que a arca teria afundado imediatamente, a Bíblia diz que ela foi equipada com uma porta lateral, mostrando claramente que os escribas judeus e seus inspiradores babilônios não tinham a menor experiência de navegação marítima.

Além disso, desconhecendo totalmente a zoologia, os autores do conto bíblico não explicam como uma superfície menor que a dum campo de futebol poderia ter abrigado todas as espécies de seres viventes, pelo menos terrestres, durante um ano inteiro comendo unicamente vegetais. Sem contar que, segundo cálculos recentes, para encher a arca com um fluxo de um casal por espécie por segundo, teria levado nada menos de que 5.000 anos para abrigar a todos (só de formigas existem 22.000 espécies diferentes e 48.349 de aranhas). E como fizeram esses animais a sobreviver num mundo pós-apocalíptico totalmente coberto de lodo, onde não havia nada para comer e onde não crescia absolutamente nada? São considerações que valem também para Noé e a sua família que deveriam ter sido mais prolíficos que coelhos para povoar novamente todo o planeta.

Basicamente, todas as antigas mitologias, dos Egípcios aos Maia, narram de uma grande enchente; em particular, o sumério Utnapistim recebeu dos deuses o dom da imortalidade por não ter permitido que a vida não fosse varrida da Terra. Ele narra o evento relatando particulares que, em seguida serão incorporados no A.T., embora de forma mais simplória.

Ninguém nega que, como as demais mitologias, a do dilúvio tenha uma base em fatos realmente ocorridos. Entre as hipóteses sobre uma inundação real está o aumento do nível do mar depois do fim da era do gelo. Outra hipótese é que um meteoro ou um cometa caiu no oceano Índico em torno de 3.000-2.800 a.C., o que gerou um tsunami gigante que inundou terras costeiras.

De alguma forma, a hipótese literal de um dilúvio planetário, assim como descrito no Gênesis, é incompatível com a compreensão moderna da história natural, especialmente a geologia e a paleontologia. No entanto, mesmo se tratando de um evento, ou de vários eventos locais, a Igreja, defendendo a tese que o dilúvio foi universal chega a conclusões teológicas de valor universal, pois, admitir que a Bíblia possa estar errada iria abrir uma brecha em todo o seu edifício dogmático que levaria à queda dessa religião mitológica.

Enfim, é interessante observar que, mesmo aceitando como verídica a narração do A.T., devemos chegar à conclusão que Javé se comportou de forma bastante vingativa, igual um ser humano, antes de tudo não tendo conhecimento dos eventos futuros, ou seja, que os homens teriam se comportado mal seja antes que depois do Dilúvio. Com isso o atributo da “onisciência divina” vai às favas, mas cai por terra também a imagem de um Deus sereno e imperturbável que jamais deveria se arrepender de suas ações. Por um momento, Ele entende a inutilidade de cada forma de violência prometendo que nunca mais irá castigar a humanidade com outra enchente, mas, em seguida, voltará a se comportar come um tirano sedento de sangue e mandará exterminar mulheres, velhos, crianças e até os animais dos povos que seguiam outros Elohim.

Surpreende que, ainda hoje, inúmeras pessoas não consigam se dar conta que essa divindade pode ser considerada tudo menos que um “Deus de amor”.

NOTA: Também esse artigo foi adicionado ao meu E-livro intitulado: "Viagem ao centro do Cristianismo" que pode ser baixado na minha escrivaninha.