AS CROSTAS DA ALMA

 

 

     Aquele padre tinha fama de muito sábio e muita gente costumava ir à sua paróquia em busca de conselhos. Um dia ele recebeu a visita de um jovem muito rico, que acabara de herdar uma grande fortuna. Mas por ter sido criado numa família muito religiosa, ele tinha algumas ideias restritivas com respeito à riqueza, inspiradas por ensinamentos bíblicos, que interpretavam a posse de muitos bens como um perigo para alma. 

“ Padre”, perguntou ele. Como devemos interpretar a parábola contada por Jesus, a respeito de ser mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar nos reino dos céus?”

O padre se levantou e pediu que o jovem o acompanhasse até a janela da sacristia. A janela estava fechada, mas através dos vidros ele podia ver, ao fundo, uma favela, onde centenas de homens, mulheres e crianças maltrapilhas, magras, de rostos macilentos e aparência doentia, subiam e desciam as ruas estreitas e lamacentas.

̶  O que você vê através desses vidros?- perguntou o padre.

    − Vejo uma favela, com a gente que nela vive. Pobres, tristes, famintos, mal vestidos –, respondeu o rapaz.

Então, o padre o pegou pela mão e o conduziu para a frente de um espelho.

− E agora, o que vê?− perguntou o padre.

−Vejo uma pessoa bonita, bem vestida, saudável− respondeu o rapaz.

− Você agora está vendo a si mesmo e não está vendo os outros − disse o padre. Na janela, você via os outros.

− Repare− continuou ele− que tanto o vidro da janela, quanto o cristal do espelho são feitos da mesma matéria, ou seja, o vidro. Mas no vidro do espelho há uma camada de prata, que não deixa que os olhos vejam o que há além dele; todavia, essa camada de prata retém a luz que bate sobre ela e reflete os objetos que nela se conformam. Assim pode ser entendida a questão da riqueza: você pode ser o vidro da janela e ver o mundo em que vive e fazer alguma coisa por ele, ou pode ser um espelho que reflete apenas a si mesmo. Depende de você, ser uma luz que atravessa o vidro, ou uma luz que é aprisionada dentro de um cristal. 

̶  Não deixe a prata aprisionar a sua luz, ̶  completou o padre. ̶ Pois no céu só se entra em forma de luz. 

 

A Kabbalah ensina que não existem vácuos no universo, assim como nos átomos que o formam. Toda vez que um vazio se forma nele, a energia que lhe dá vida se movimenta para preenchê-lo. Por isso o mundo é um complexo unificado de relações que se entrelaçam, se completam e formam um desenho escatológico, com princípio, meio e finalidade (mas não um fim).

Ás vezes podemos experimentar um sentimento de vazio existencial, que nos leva a pensar que a vida não tem sentido, e que nós somos apenas minúsculos grãos de poeira perdidos nas solitudes cósmicas. E que não temos importância alguma no quadro geral dos acontecimentos que constituem a vida do universo, pois este, sendo regido por leis naturais, pouco se importa com os nossos desejos e aspirações.

Mas isso é apenas um momento de prostração do nosso ego, que ao mesmo tempo em que nos eleva às maiores alturas quando obtemos alguma vitória, também nos atira no mais baixo dos subterrâneos quando as coisas não acontecem como desejamos. Por isso se diz que Satã é o nosso ego. Foi ele que nos levou a comer o fruto do conhecimento e também provocou a nossa expulsão do paraíso. Deu-nos as asas da sabedoria para alçarmos os vôos mais ousados e também o lastro da ignorância que nos leva à mais profunda das depressões.

Ego é uma espécie de “casca espiritual” que adere à nossa alma na medida em que vamos vivendo. É uma crosta que se forma em volta da nossa mente, formada por pensamentos, sentimentos, desejos e memórias das nossas experiências de vida, que se torna mais dura e pesada quanto mais nos apegamos à ela.

A ciência se aproximou da religião com as descobertas mais recentes da física quântica. Ela comprovou que, no mais íntimo da estrutura atômica dos componentes da matéria universal existe um “quanta” de energia que justifica a existência desse elemento e dá-lhe uma finalidade própria, para que ele se ajuste no grande quebra cabeça que é o universo. Essa verdade já havia sido intuída por taumaturgos e filósofos espiritualistas do passado, que viam a alma humana como uma espécie de grão de energia confinada em um invólucro material. Essa intuição foi comprovada pela observação científica que verificou que toda massa é formada por energia em movimento. Essa comprovação também foi feita pela equipe internacional de físicos do Centro de Física Teórica de Marselha, com o auxílio de um supercomputador, onde se verificou que a massa do próton provém da energia liberada por quarks e glúons. Como toda a matéria física de que é composta o universo é feita de prótons e elétrons, conclui-se que a totalidade da massa física do universo provém de energia em movimento. Essa constatação também já havia sido feita por Einstein, há mais de cem anos, na sua famosa equação: E=mc².

Por isso a Kabbalah sustenta que nossa alma é pura energia. Que ela é uma centelha expulsa do Princípio Único que deu origem ao universo. Essa origem, segundo a moderna ciência astronômica, está situada em uma grande explosão que espalhou múltiplos fragmentos pelo vazio cósmico, gerando o todo universal. Os cientistas chamam Big Bang a esse Princípio e os sábios cabalistas de Kether, a primeira séfira da Árvore da Vida. A Bíblia diz que Deus tirou a luz das trevas e com ela fez o céu e a terra. São informações que coincidem e se complementam.

A idéia contida nesse conceito é a de que cada centelha de energia originada dessa explosão é uma “alma”. Conforme o movimento e as interações a que se sujeita, ela assume um desenho e uma composição física e espiritual, Assim se formam os elementos químicos e também todas as formas de vida que existem no universo. Dessa maneira, conclui-se que todas as realidades universais são “massas” aderidas á uma centelha enérgica originária da manifestação originária do Princípio Criador. Por isso, quanto maior e mais pesada é a “massa” aderida à nossa alma, maior também a dificuldade que temos em nos livrar dela quando desencarnamos. Essa é a razão de Jesus ter falado sobre a dificuldade de uma pessoa rica entrar no Reino dos Céus. Não é a riqueza em si, que nos impede, mas o nosso apego a ela. Porque o apego aos bens materiais, muitas vezes, forma uma “massa” pesada e densa que adere à nossa alma e dificulta a sua volta para o Criador. Por isso todas as doutrinas espiritualistas encarecem a necessidade de uma purificação da alma para que essa possa encontrar a salvação. Faz sentido, como podemos ver.