"Duvidar de tudo ou crer em tudo, essas são duas soluções
            igualmente   cômodas, 
            porque uma e outra nos dispensam de refletir".

                                                                                                        Henri Poincaré (1854-1912)

    Todos os povos da humanidade tiveram, no início de sua existência, grandes privações e duras necessidades. Nutrição, vestuário, e a doença sempre foram as principais as que mais ocupação exigiam de homens ainda desprovidos de recursos, que somente um vagaroso progresso, ao longo de vários e intermináveis séculos, lhes trariam. Entretanto os primeiros recursos contra a doença humana nasceram justamente no seio desses homens rudes e maltratados na luta pela sobrevivência e vão buscá-los inicialmente nos seres que em abundância os circundavam: os vegetais. E, como obtiveram bons resultados, desenvolveram suas observações e foram levados a criar uma prática médica, para que conhecessem e distinguissem o que lhes era de utilidade ou nocivo no mundo dos vegetais. O primeiro passo da pesquisa científica estava dado. E assim o gênio inventivo de cada um foi-se transmitindo, de geração em geração, com observações acumuladas, que foram aperfeiçoando e alargando o campo do conhecimento da doença humana e dos recursos para combatê-la. Com o tempo passaram a experimentar os produtos dos reinos mineral e animal e não tardou a surgir as explicações das causas das doenças. Através do que se passou a chamar de magia, pode-se construir uma ciência, primitiva de certo, mas nem por isso desprovida de técnica e de uma eficácia toda especial.
   O mágico é um homem que, por dom, por experiência ou por revelação, conhece a Natureza; sua prática tem origem nos seus conhecimentos. É neste ponto que a magia mais se aproxima da ciência moderna, sendo mesmo, algumas vezes, nesse sentido muito sábia.

    Os feiticeiros e mágicos foram os primeiros envenado res, os primeiros cirurgiões, os descobridores dos mistérios da metalurgia. Mas, é claro, não sabiam que estavam conhecendo pouco a pouco a Natureza, porque no seu pensamento, a Natureza não era um objeto, uma coisa; a Natureza, os vegetais, os animais, os minerais, eram seres com vida própria e poderes de coação sobre os homens. E obviamente, de tal força tinham muito medo, e  se defendiam como podiam, isto é, usando os próprios poderes que atribuíam aos seres que temiam.

    Assim, quanto mais valente um guerreiro, mais interessados ficavam seus inimigos em matá-lo para comer-lhe a carne, que supostamente possuía a valentia que desejavam para si. Quando um membro da tribo adoecia com a doença que hoje conhecemos como hepatite, os indígenas buscavam de imediato curá-lo com um vegetal que, também tivesse o "'sangue" amarelo por dentro, isto é, a seiva amarela. Os povos da Ásia atribuiam ao bode todo o pecado da tribo ou tudo aquilo que consideravam impuro e num cerimonial levavam-no para o deserto para que morresse afastando e impedindo toda possibilidade de maldição ou represália contra o grupo (explica-se assim a expressão "bode expiatório").

    Entretanto nesse universo mágico, as experimentações ocorriam e os fenômenos naturais eram observados e é dessa maneira que os alqui- mistas, na idade média européia, descobrem o ácido sulfúrico ao tentar descobrir a fórmula do elixir da longa vida ou a transmutação dos metais em ouro. É ainda dentro desse universo de pensamento, que os indígenas brasileiros descobrem o poderoso veneno do curare, de utilidade na caça e na guerra, já que a carne dos animais mortos com as flechas envenenadas do curare podia ser comida sem incovenientes. Os  nhambiquaras brasileiros limitam-se a cortar em volta da ferida a carne impregnada de veneno ao ser introduzido no estômago é neutralizado.

    Sabe-se atualmente, que o curare é fabricado com cascas e raízes de diversos vegetais que variam de acordo com a região da Amazônia de onde vieram. Ao lado das árvores do gênero botânico Strychnos, princípio ativo dos curares, numerosas outras plantas geralmente venenosas, mas de propriedades muito     diferentes, entram frequentemente na composição do curare.

    E foi tal substância, de fabricação misteriosa e sistematicamente ocultada pelos indígenas da Amazônia, que serviu de base para as experiências fisiológicas do fundador da medicina experimental, o Dr. Claude Bernard, no século passado. E foi como aprendiz de feiticeiro, que ele se apresentou em 1854, no College de France, para fazer a demonstração de suas "descobertas".


Prof. Douglas Carrara
Antropólogo
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1) Publicado no Correio do Sul de Varginha (MG) em 31/05/1990
2) Publicado na Hora Democrática de Magé (RJ) em 03/02/1982
3) Publicado no jornal Folha de Magé de Magé (RJ), em 26/10/1979.