Porque Devemos Incentivar a Fitoterapia no Brasil

"Não há porque envergonhar-se de tomar do povo

o que pode ser útil à arte de curar."

HIPÓCRATES (460 a.C. - 377 a.C.)

    A utilização de plantas medicinais no atendimento à saúde é tão antigo quanto a própria Humanidade. Sabemos atualmente que os povos primitivos sempre buscaram no reino vegetal medicamentos para aliviar o sofrimento humano provocado por doenças ou acidentes. Através da experimentação e da observação dos animais, que também buscam nos vegetais alívio para seus males, os povos de todos os tempos e todos os continentes produziram ao longo da História um saber importantíssimo sobre as propriedades das plantas medicinais. Infelizmente esse conhecimento tem sido útil apenas aos grandes laboratórios multinacionais que, através de pesquisas, conseguem transformar o saber popular em medicamentos que serão vendidos no mercado por preços inacessíveis à maior parte da população mundial.
    Mas é possível reverter esse processo de expropriação internacional se o próprio povo se mobilizar para tentar melhorar as condições de saúde, através da formação de agentes populares de saúde que estudem noções básicas de medicina, higiene, sanitarismo e, principalmente, a fitoterapia, para que possam oferecer assistência primária de saúde ao povo necessitado que não tem acesso aos medicamentos produzidos pelos laboratórios.

    Mas não escolhemos a fitoterapia apenas porque é uma medicina de baixo custo financeiro. Preferimos a fitoterapia porque ela reune conhecimentos médicos acumulados ao longo dos séculos que estão preservados em uma imensa bibliografia e na experiência de médicos que se recusam a utilizar exclusivamente os medicamentos alopáticos. Aqui no Brasil, a fitoterapia ainda tem pequena expressão, apesar de possuir a flora mais diversificada do mundo. A maior parte das plantas medicinais são nativas do Brasil e no entanto não existe nenhuma faculdade de fitoterapia no Brasil! Além disso, atualmente os grandes laboratórios estão enviando pesquisadores para entrevistar pajés indígenas e curandeiros populares para identificar plantas e indicações médicas populares com o objetivo de patentear novos medicamentos a partir da experiência popular.

    Portanto, como as elites brasileiras não demonstram, nem nunca demonstraram preocupação com a saúde do povo e nem procuram impedir o patenteamento de plantas brasileiras, é o próprio povo que deve procurar encontrar o melhor caminho para solucionar seus problemas de saúde e impedir o patenteamento criminoso de nossas riquezas medicinais.

    No seio do povo é possível encontrar atualmente, especialmente no meio rural, praticantes da medicina popular, que é o primeiro estágio para o desenvolvimento da fitoterapia. É a partir do saber médico popular que a fitoterapia pode se desenvolver a partir do conhecimento sobre plantas medicinais produzido por mateiros, raizeiros, rezadores, curadores de cobra, parteiras, umbandistas, etc. Se houver uma aliança entre os praticantes da medicina popular, os agentes de saúde, que possuem noções básicas de atendimento à saúde e pesquisadores da área da botânica, farmácia, antropologia e medicina, poderemos criar em cada comunidade um novo modelo de atendimento à saúde que poderá promover, caso haja mobilização em torno da proposta, o fortalecimento definitivo da fitoterapia no Brasil, tal como aconteceu em países como a China e a Índia, que possuem atualmente uma fitoterapia avançada graças a um secular processo de mobilização popular.

    A Ciência reconhece que as plantas medicinais possuem ação curativa sobre o ser humano. É a presença de substâncias ativas produzidas pelo metabolismo secundário da planta, tais como, alcalóides, terpenos, glucósides, etc, que ajudam a explicar a ação da planta sobre o organismo humano. Com a identificação e o isolamento dessas substâncias, tais como, a morfina, a cocaína, a efedrina, a emetina, etc, inúmeros medicamentos começaram a ser produzidos pelos laboratórios. Com isso deixou-se de lado a utilização do conjunto da planta, com o pretexto de que era mais fácil controlar a dosagem do princípio ativo, a partir da utilização somente do alcalóide isolado pelos laboratórios.

    Entretanto, os fitoterapeutas defendem a utilizam do conjunto da  planta medicinal, possuidora portanto de princípios ativos, através de processos artesanais, tais como, a infusão (chás), decocção (cozimento de cascas e raízes), emplastros, cataplasmas, xaropes, pomadas ou até mesmo através de formulações farmacêuticas, tais como, tinturas, extratos fluidos e secos, óvulos, cápsulas, etc. desde que haja controle de qualidade no processo de coleta ou  de cultivo.

    Os fitoterapeutas consideram que a utilização de uma decocção da casca da quina é menos arriscada para combater a malária do que a utilização da quinina, alcalóide extraído da árvore para a produção de medicamentos contra a malária. Basta compreender a diferença entre mascar a folha da coca e o consumo do entorpecente cocaína, que tantos males tem provocado à Humanidade, gerando violência, debilitando a saúde, eliminando a esperança e mutilando vidas.

    Como as plantas medicinais dependem de condições ambientais diferentes não é possível encontrá-las ou produzi-las em qualquer lugar. Cada estado ou região possue plantas medicinais próprias. Portanto cada comunidade deve criar um receituário próprio, útil apenas para aquela região, já que cada comunidade deve produzir e colher as plantas que vão servir para a produção de medicamentos no próprio local.

    Entretanto é necessário evitar a desmoralização da fitoterapia, utilizando fontes inadequadas de informação, tais como, revistas comerciais, receituários comerciais, compilações sem nenhum compromisso com a fitoterapia verdadeira e inclusive com a legítima medicina popular, na medida em que são autores sem a necessária formação e experiência para promover a indicação de tratamentos fitoterápicos.

    Por isso é mais aconselhável recolher práticas médicas populares, já consagradas pelo uso na região, e experimentá-las, com o apoio de profissionais da área de saúde, do que seguir a orientação de tais pseudo livros e formulários de fitoterapia.

    É também necessário ressaltar que um raizeiro, apesar de analfabeto ou com pouca escolaridade, passa sua vida inteira dedicado a experimentação com plantas e ao tratamento de doenças e conhece o efeito das ervas no organismo humano. Por isso a união do praticante da medicina popular com o pesquisador científico é de vital importância para o fortalecimento, portanto, de uma fitoterapia brasileira, capaz de resolver os mais elementares problemas básicos de saúde de uma comunidade.

    Para iniciar o processo, é necessário que cada produtor rural reserve sítios destinados à produção de plantas medicinais. Além disso as plantas devem ser cultivadas com técnicas diferentes das utilizadas para a produção de alimentos.  Para ser medicinal, a planta deve produzir os princípios ativos em quantidade suficiente para torná-la medicinal. Não interessa portanto que produza bastante massa verde.

    Além disso, cada agricultor deve também reservar em sua propriedade uma área nativa destinada à coleta de espécies medicinais. Para isso os agentes de saúde devem estudar a região para indicar as espécies medicinais que devem ser preservadas nas matas ou capoeiras ainda existentes. Cada coletor deve ser orientado no sentido de não utilizar técnicas de coleta predatórias que prejudiquem a sobrevivência da espécie na área destinada à coleta.

    Assim cada comunidade poderia dispor de galpões adequados ao armazenamento de plantas secas, destinadas à produção de medicamentos. Evidentemente os medicamentos seriam produzidos a partir das necessidades de saúde mais prementes da comunidade. O atendimento curativo deveria também ser organizado em local próximo ao galpão de armazenamento e produção. Neste local também deve ocorrer o processo de formação de agentes de saúde locais, com a organização de aulas, a exposição de um herbário para educação de toda a comunidade.

    Deve-se, por outro lado, evitar a dependência exclusiva do atendimento médico. É importante que cada família disponha de recursos e conhecimentos próprios para atender necessidades básicas de saúde. Aprendendo de imediato a identificar casos graves e saber se deve recorrer ao agente de saúde local ou procurar um hospital público da região. Além disso dispor dos medicamentos, especialmente fitoterápicos, para qualquer eventualidade.

    Todos, portanto, devem se conscientizar da necessidade de tomar constantemente medidas preventivas de saúde, para evitar a necessidade de intervenções curativas posteriores. São estas preocupações preventivas constantes que elevam o nível de saúde da comunidade.

    Evidentemente para iniciar o processo é necessário formar pessoal capacitado a dirigir o processo de formação do setor de saúde. Entretanto, cada agente de saúde deve formar constantemente novos agentes. No final do processo todas as pessoas adultas devem conhecer os princípios elementares de manutenção preventiva da saúde e ser capaz de aplicá-los corretamente para a solução dos problemas. Quanto mais pessoas souberem cuidar de si mesmas melhor. Além disso as crianças devem receber esclarecimentos constantes à respeito das medidas preventivas a serem tomadas para manutenção da saúde.

    Como princípio geral, a saúde deve ser considerada, acima de qualquer outro, inclusive o financeiro, o bem mais precioso da comunidade.

    Por isso, cada comunidade deve dispor de cartilhas informativas produzidas localmente para esclarecimento de todos os membros da comunidade. As cartilhas devem conter noções básicas de higiene e sanitarismo, além de técnicas artesanais de produção de medicamentos a partir de plantas medicinais locais.

    Para o fortalecimento do projeto, deve-se buscar alianças com médicos, farmacêuticos ou pesquisadores das cidades próximas, dispostos a colaborar na identificação das espécies e na indicação de propriedades medicinais de plantas ou recursos medicinais artesanais.

    Entretanto é necessário que toda a comunidade se mobilize para se obter resultados satisfatórios. Se todos estiverem interessados nos objetivos finais a serem atingidos fica mais fácil organizar a comunidade.



                                            Prof. Douglas Carrara

                                         Antropólogo


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