Em Defesa da Flora Medicinal

     A medicina popular pode ser considerada uma herança cultural das três culturas básicas, formadoras da consciência cultural do povo brasileiro. A fitoterapia, por exemplo, é em parte herança que os índios nos legaram. Deles recebemos a maioria dos nomes de plantas e suas utilidades. Os portugueses e os negros trouxeram sementes e hábitos medicinais caseiros, provenientes de seus habitates culturais. E isso pode ser comprovado pela enorme quantidade de plantas de origem européia e africana aqui aculturadas e largamente utilizadas pela população para fins medicinais.
     Tal acervo cultural vem- se transmitindo através das gerações, sob bases estritamente tradicionais. Sempre relegada a segundo plano, a medicina popular na verdade representa para o povo brasileiro, constantemente assolado pela miséria, abandono e pela inexístêncía de cuidados médicos científicos e sanitários, um recurso terapêutico valioso, apesar de que, na maioria das vezes, incerto e precário. A difusão desta medicina se dá, mesmo nas grandes cidades, onde existam feiras, mateiros (comerciantes de ervas) com suas bancas de folhas, raizes, cascas e sementes, ou então nas poucas lojas comerciais especializadas.
     Mas a fonte de difusão e aplicação da medicina popular se encontra no vasto interior brasileiro, onde quase sempre a única medicina existente é a exercida pelos curandeiros, as "curiosas", benzedeiras e "curadores de cobra". Dos 3.950 municípios do Brasil, 1.895 não contam com nenhum profissional da medicina - médicos ou enfermeiros, 2.191 não têm hospitais. (Opinião nº 96).
Toda a ciência não teria se desenvolvido se, paralelamente, não se desenvolvesse o conhecimento empírico da realidade. A medicina sempre se utilizou da observação empírica em auxílio a suas pesquisas e descobertas. O uso dos vegetais é o resultado de pesquisas sobre dados oferecidos pelo uso popular. No entanto, a ciência, mesmo que não trabalhe desta maneira, acaba confirmando a observação popular.
     Há quanto tempo que o nosso caboclo não vinha colocando a casca de queijo embolorado sobre as feridas "brabas ou arruinadas"? Se este fato houvesse sido estudado há mais tempo, quem sabe a penicilina não teria sido descoberta muito antes? Fatos semelhantes se repetem e exigem, portanto, uma tomada de posição, por parte da ciência, quanto à avaliação crítica de tais recursos populares.
Realmente esses recursos são inumeráveis, mas distribuídos de maneira muito desigual e espalhados pelo imenso território nacional, o que somente permite a sua avaliação, dependendo da insistente investigação e pesquisa ou então do acaso. Esses recursos surgem e são utilizados pelo povo sem nenhuma conotação valorativa.
      A flora brasileira fornece abundantemente esses recursos. Por isso, proliferam os hemostáticos, diuréticos, purgativos, afrodisíacos, cicatrizantes, anestésicos, febrífugos, calmantes, depurativos, etc. Um exemplo: a raiz do jaborandi (Ottonia anisum), mastigada, deixa a boca anestesiada por muitas horas, acalmando as dores de dentes. A iagina, substância extraida do caapi (Banisteripsis caapi), usada no tratamento da malária e do mal-de-Parkinson. Durante a gripe espanhola, de 1918, o melão-de-São-Caetano ( Momordica charantia), erva tão comum em terrenos baldios, foi usada com sucesso como preventivo e mesmo para a cura da enfermidade. A espinheira santa (Maytenus ilicifolia), planta do sul do país, é um excelente cicatrizante de úlceras estomacais, tendo, inclusive, sua eficácia comprovada por vários médicos. Recentemente, o avelós ou dedo-de-cão (Euphorbia tirucalli), planta largamente encontrada nas regiões áridas do nordeste, foi estudada pelo Instituto Nacional de Tecnologia de Recife e poderá ser utilizada com sucesso no combate às doenças tropicais. A pata-de-vaca (Bauhinia forficata) tem sido muito utilizada com sucesso no combate ao diabetes melitus.
     Como estas, existem para mais de mil plantas, cujas propriedades medicinais são mais ou menos conhecidas e utilizadas pelo povo. Para um pais que possui tal coleção de plantas medicinais, é razoável que troquemos os nossos vegetais por drogas importadas, produzidas por empresas multinacionais e que muitas vezes nada mais são do que alcalóides isolados de plantas brasileiras, sob o disfarce de uma fórmula química complexa e uma intensa propaganda perniciosa para a saúde do povo e a economia nacional?
     Atualmente, o estudo das ervas medicinais está em abandono. As informações sobre a flora medicinal, ainda são as fornecidas por Caminhoá (1877), Martius (1854), Peckolt (1888), Pio Correa (1934) e Hoehne (1939). As edições recentes de livros sobre a flora medicinal nada mais são do que copilações em que são reunidas tais pesquisas, que se desenvolveram, na maioria das vezes, de modo precário, de acordo com declarações dos próprios autores, que se confessavam impotentes diante de uma realidade, tão exuberante como a brasileira e também diante do descaso das autoridades brasileiras pela salvaguarda de nossas riquezas naturais.

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(*) Publicado no jornal Opinião do Rio de Janeiro (RJ), em 21/05/1976.