Sobre razões para a morte

Conheci pessoalmente o doutor Marcos Smith há pouco tempo.

Ele é neurologista e estava em meio de amigos mais antigos, quando conversávamos sobre os assuntos de que mais gosto de falar: nossas origens “espirituais” e como atuam a sensibilidade, a memória e a imaginação à construção de nossa personalidade e dos valores que formam (ou deformam) nossa identidade cultural, histórica.

Na Verdade, somos vivos circunstanciais, mas muitos desejam prolongar suas vidas para além da morte, ou da suspensão das sinapses cerebrais que nos proporcionam provar a Vida ao usufruto de gerais e particulares visões do mundo.

Neurologista-espiritualista – ele é simpatizante do Espiritismo – chamou-lhe sua atenção, a despeito de meus espiritualismos, minhas considerações materialistas sobre a importância do fundamento bioquímico-neural de nossos cérebros e mentes à inevitável sensação da Vida, que Se nos engendra ininterruptamente, e em organismos vários, à Sua imagética-objetivação e construção dos valores fundamentais que formarão culturas, realidades (algumas pretensamente humanas, outras nitidamente desumanas) – quer no lado ocidental ou oriental do planeta, e todas resultados de submissões à potência da Arte, indispensável instrumento de ação às objetivações de muitos outros mundos que a Natureza não nos legou (onde há roupas, livros, quadros, músicas, colheres, camisinhas, espaçonaves e, entre outras bugigangas, noções de moralidade, ética, conceituações e valorações daquilo a que chamamos “Vida”, “Espírito”, “Deus”, “Amor” e todo o resto das coisas que dizem respeito à essência de nossa tendenciosa civilidade).

A discussão que o Dr. Marcos propõe, debatida por ele no programa “Fórum”, da TV UFPB, em companhia de outros seus colegas, não é comum entre médicos. Como cientista, além de sua simpatia pela idéia de nossas vivências em outras possíveis dimensões espirituais da Vida, o que justifica sua preocupação (que vai além de pré-estabelecidas formas de sua ética profissional) são observações das dolorosas tentativas de prolongação da Vida em corpos em condições vegetativas, como também suas investigações das reações bioquímico-cerebrais às construções mentais das noções e razões dos seres que não mais seremos, quando vítimas de morte cerebral.

Ao contrário de grande parte de seus colegas de profissão – que, por razões várias, defende a sustentação prolongada de pacientes terminais nas Unidades de Tratamento Intensivos de hospitais – o Dr. Marcos Smith propõe uma reflexão sobre a necessidade da eutanásia.

Fora o fato de que cada penitente numa UTI rende aos hospitais uma pequena fortuna (para quem não tem planos de saúde, em média mil reais a diária numa UTI será mesmo de matar), ele quer saber qual razão de ordem humanitária pode defender a longa permanência dum corpo numa UTI – mesmo se um pré-morto corpo jovem que, constatadas a falta de condições de retorno da consciência de si mesmo ao usufruto de sua vida, mantém-se insistentemente presente numa sofrida existência capenga, também por insistência da família.

Porque, fora questões financeiras e/ou médico-éticas, são também os paradoxais resultados de nossa formação religiosa empecilho à adesão da família brasileira a eutanásia. Ao mesmo tempo em que alega ter fé num Deus-todo-poderoso, que receberá “os Seus” em Seu reino de perfeição e eterna bem-aventurança, por amor de nossas permanências no mundo, e de suas próprias, os "cristãos" de nossas famílias oram para que todo o poder de Deus se concentre à tarefa de nos livrar das portas da morte – cuja não transposição, pelo que aprendemos, não nos pode levar à pretendida Vida eterna e ao Seu encontro.

Para o espanhol Fernando Savater, catedrático de Filosofia da Universidade Complutense de Madri, em seu livro "Os dez mandamentos para o século XXI", analisando o mandamento “Não matarás”, pergunta: “quando um médico não sabe como curar uma pessoa, e sequer pode aliviar satisfatoriamente o sofrimento do doente, que direito ele tem de mantê-lo vivo?”.

De seu ponto de vista de neurologista, também não parece lógico ao Dr. Marcos Smith manter artificialmente em funcionamento os pulmões e o coração de um morto. Aqui, entram em discussão questões de ordem bioquímica-filosófica, que referendam as virtuais formas de nossos eus. Se um cérebro não gera uma mente em condições de abrigar qualquer virtual inquilino, ele (o inquilino), de fato, já não está mais presente: está morto.

O problema é que, além dos normais equívocos entre as opiniões daqueles que se dizem “espiritualistas”, há ainda uma confusão de ordem conceitual entre as ações daquilo que se considera “eutanásia”, e do que se conceituou uma “distanásia” – ou mesmo uma "mistanásia", para complicar as coisas.

“Se o significado de distanásia for entendido como prolongar o sofrimento”, esclarece um texto não assinado, pescado na internet, “ele se opõe ao de eutanásia, que é utilizado para abreviar esta situação. Porém, se forem avaliados seus conteúdos morais, ambas convergirão: tanto a eutanásia quanto a distanásia serão consideradas eticamente inadequadas”, enquanto a “mistanásia” parece ser praticada sem problema por aqueles que promovem negócios em torno das deficiências e doenças alheias.

“Também chamada de eutanásia social ” – continua o texto – “foi sugerido o termo ‘mistanásia’ para denominar a morte miserável, fora e antes da hora”. Dentro da grande categoria da “mistanásia” focalizam-se três situações: “primeiro: a grande massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; segundo: há os doentes que conseguem ser pacientes para, em seguida, se tornar vítimas de erro médico; e, terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas de má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos”.

Além disso, encerra o texto, “a mistanásia é uma categoria que nos permite levar a sério o fenômeno da maldade humana” – embora particularmente eu não possa conceber a maldade como um atributo humano, mas sim inequivocamente desumano.

Entre as críticas aos sistemas de avaliação da presença da Vida e da morte propostas pelo Dr. Marcos Smith, e qual procedimento adequado a uma possível aceitação de mortais procedimentos, há ainda a “ortatanásia” que, segundo conceituações, é a “atuação correta frente à morte”, onde se adota cuidados paliativos adequados, prestados aos pacientes nos momentos finais de suas vidas; talvez a forma como a esposa do personagem robô Andrew, no filme "O homem bicentenário" (EUA, 1999), pede para que a enfermeira suprime sua própria vida num futuro onde a Medicina ainda não abdica de sua luta inútil pela manutenção de nossas vidas eternidade à dentro e a Justiça reconhece a necessidade plena do usufruto da liberdade de decisão das pessoas sobre a manutenção ou suspensão de suas próprias vidas terminais ou a de seus entes queridos.

Março de 2006