O Cuidado de Enfermagem a partir do paradigma Ético-Estético ¹

O Cuidado de Enfermagem a partir do paradigma Ético-Estético ¹

Aline Cristina C. de Oliveira ²

O presente ensaio pretende fazer uma aproximação do estudo do cuidado de enfermagem com a estética e com a ética. Para tanto, faz-se oportuno definir o conceito de estética e de ética procurando identificá-los dentro do contexto do fazer do enfermeiro. A palavra estética vem do grego aisthésis que significa percepção, sensação. Ela estuda o julgamento e a percepção do que é considerado belo, a produção das emoções pelos fenômenos estéticos, bem como as diferentes formas de arte. Como se percebe ela adentra em sua origem no campo da subjetividade humana, a partir que sua janela para o mundo dá-se sob o prisma da percepção e da produção das emoções. Tal recorte é fecundo para refletirmos como a estética está imbrincada com a saúde e com o ambiente. Por outro lado a ética é originária do grego ethos, que significa “caráter”, “modo se ser”, “costumes”. De acordo com o Dicionário Aurélio (1999), ética é o estudo dos juízos de apreciação referentes a conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto. (SANT’ANNA e ENNES).

Concordo com Teixeira ao abordar a ética e a estética de forma indissociável, sendo que na enfermagem elas são essenciais, pois saúde envolve vários matizes e insere-se na complexidade, na dimensão social e ecológica do cuidado. Historicamente o conceito de saúde estava associado com a ausência da doença, sendo um equilíbrio, uma homeostase completa dos humores humanos. A Organização Mundial da Saúde a define como um completo estado de bem estar social. Aqui se percebe um conceito ideal, próximo a concepção do belo. Outro aspecto importante a ser considerado é sua relação direta com o meio, numa verdadeira interação simbiótica.

A estética na enfermagem é percebida, principalmente, sob a ótica do cuidado. Cuidado esse que assume formas específicas de se manifestar em determinados espaços como o hospital. Assim o ambiente destinado ao cuidado do corpo doente também assume o belo, a partir do momento em que nele está intrínseca e extrinsecamente organizada as concepções de cada época e seu entendimento sobre o processo saúde-doença. Kruse, citando Foucault, relata o cuidado ao corpo doente como um observatório da multiplicidade humana. Quando dispomos os corpos dos clientes em determinadas posições e assumimos determinados discursos estamos demonstrando através dessa disposição nossas concepções.

Outro aspecto importante a considerar é a ressignificação da ética formadora da enfermagem. Há ainda a forte influência de uma conotação caritativa relacionada à obediência, de caráter religioso de compaixão e abnegação, e isso se transfere ao tratar com o cliente, o qual é visto como dependente e submisso. Por outro lado a ética filantrópica imposta pelo estado burguês estabelece uma relação de coerção e manipulação, não só dos próprios clientes, bem como dos profissionais da saúde. As relações capitalistas engendram-se de tal forma que parece que o humano não é visto como sujeito de sua história e é igualado e “processado em partes” como um produto. Nessa ótica dicotômica, a doença parece ser mais lucrativa que a saúde e a pessoa doente passa a ser então um cliente, ou seja, apenas uma consumidora desses serviços.

Assim, entendo que nossa profissão sofre diretamente os reflexos da crise social que enfrentamos atualmente. Os valores alicerçados no consumismo e na quantificação perpassam os diversos setores sociais, inclusive a saúde. Enquanto docente não posso realizar uma práxis sem levar em consideração tais circunstâncias. Nesse sentido, foco a necessidade de uma reconciliação nas esferas estético, filosóficas e assistenciais no ensino da enfermagem. Uma prática sem orientação filosófica torna-se vazia, uma mera reprodução sem significado e valor.

Enquanto professora da graduação e do curso técnico de enfermagem, entendo a necessidade de buscarmos uma ressignificação de nosso saber e fazer pedagógico. A enfermagem como ciência da área da saúde também sofre influências diretas do “império capitalista mundial”, o qual coloca num mesmo plano de equivalência os bens materiais, os bens culturais, as áreas naturais etc. Guattari (2008). Se a enfermagem não pode ser dissociada da ciência do cuidado e se esse cuidado é constantemente submetido a esfera de produto, sofrendo um processo de ‘coisificação’, assim também ocorre com os profissionais desse cuidado, essa mesma relação de opressão e submissão.

Desde a formação até a prática profissional na enfermagem muito se fala da importância do cuidado do outro, do cliente, do paciente, do usuário, o qual deve ser humanizado e seguir determinadas características dentro da Sistematização da Assistência de Enfermagem³ (SAE). Contudo, o ser cuidador também precisa ser cuidado e se ver dentro desse processo. É importante considerar, neste momento, a concepção da terminologia cuidado, a qual assume uma perspectiva multifacetada transcendendo a esfera meramente biológica e considerando o ser sob uma ótica biopsicosociocultural dentro de seu contexto ecológico.

Entendo o cuidado de si como uma mudança de atitude para com a vida, sendo indispensável para superarmos a crise existencial de nosso tempo. Essa mudança de atitude implica em uma nova percepção, a qual passa necessariamente pelos três registros ecológicos identificados por Guattari (2008): o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana. . Concordo com Guattari (2008) no que tange superar essa fase paroxística de laminagem das subjetividades, dos bens e do meio ambiente. Talvez, para buscarmos alternativas para essa crise sócio-ecológica, temos que nos voltar para o campo da subjetividade, esquadrinhando o sujeito, ou os componentes de subjetivação, entendendo que esse sujeito nem sempre é evidente. Ultrapassar o pensamento cartesiano e enveredar pelo caminho das certezas provisórias, oportuniza-nos perceber um admirável mundo novo.

Entendo como Kruse (2004) que a enfermagem moderna veio trazer uma legitimidade aos seus profissionais, fugindo do escopo caritativo do fazer o bem e ajudar o próximo. Em contrapartida, começou a se produzir como uma ferramenta de controle, seguindo a tendência de uma prática de cuidado coercitivo. Essa prática exercida não somente em relação aos pacientes, bem como entre os próprios enfermeiros:

“(...) A minúcia da vigilância e o controle completo das ações são o centro de tudo, o que tira de cena a emoção e o sentimento. Penso que esse jeito de cuidar é produto de um saber, ao mesmo tempo em que produz saberes, que constituem enfermeiras de uma certa maneira, que olham para os corpos dos pacientes hospitalizados como se fossem corpos frios, abdicados de todo o governo de si mesmos, já sem vida(...)” (KRUSE, 2004, p.95).

Se somos como “observatórios da “multiplicidade humana” dentro das enfermarias como asseverava Foucault” (KRUSE, 2004, p.94), precisamos transcender a esfera meramente biológica do cuidado e entendê-lo para além da pirâmide de olhares que submete o controle dos corpos das enfermeiras, dos pacientes e até dos acompanhantes, reduzindo-os a cabeça, tronco e membros ao detalhe mais ínfimo de suas partes. Assim questiono-me: Por onde começamos?

Como fugir, ou melhor, o que agregar a uma medicina prescritiva, a qual parece enfatizar a doença como prioridade? Uma medicina que não preconiza o cuidado de si está sujeita a sofrer constantemente com as conseqüências de uma cura placebo, onde os efeitos são sedados e as causas esquecidas e não solucionadas, vindo a culminar na atual crise na área da saúde. Muitas vezes, o “tratar” e o “cuidar” são interpretados num mesmo patamar de valor, sendo que o primeiro se volta muito mais para a esfera biológica da patologia e o segundo procura a origem dos fatos, indo para além das “soluções prontas” e preocupando-se muito mais com o entorno do processo saúde-doença.

Nosso desafio enquanto educadores para o cuidado, consiste em instigar os discentes a buscar dentro de si um espírito crítico, reflexivo e criativo. Acredito que mediante essa postura podemos buscar nossa espiritualidade e impregná-la em nosso dia-a-dia, renovando certos hábitos de conformismos e verdades entendidas como absolutas. Isso não significa não termos referenciais, mas fazer deles construtos passíveis de mudanças, exercendo com consciência a prática da liberdade, o que Foucault (2006),chama de ética, ou seja, a prática da liberdade.

Enxergar a prática do cuidado como um processo de nuances estéticos requer um preparo além do meramente técnico. Questiono-me se a forma que ministramos nossas disciplinas, quer no ensino superior ou técnico, não remete os alunos de enfermagem a um olhar dicotômico e cartesiano, a partir do momento que o primeiro contato que eles têm com a realidade da profissão é o “corpo morto”, a anatomia do cadáver? Nosso prisma não é justamente o corpo vivo e suas fragilidades? Outra inquietação que tenho é o rigor das rotinas do cuidado, onde o corpo humano deve ser descrito e visto em partes? Talvez não seja incoerente exigir um cuidado humanizado quando para instigá-lo nos utilizamos de conceitos fechados, regras instransponíveis e de forma pré-determinadas de agir. E aqui podemos nos aproximar da Psicologia que considerou como um dos pontos importantes no estudo do fenômeno da resiliência4 durante muito tempo o foco centrado na compreensão e tratamento de patologias para somente mais tarde superar esse paradigma e se voltar mais para os potenciais e capacidades humanos (Dell’Aglio, Koller e Yunes, 2006, p.91). Pergunto-me se ainda nosso foco não é mais voltado para uma medicina medicamentosa, tendo como uma de suas principais conseqüências a iatrogenia5 dentro de uma ótica alopática6?

O cuidado visto a partir de uma ética que resgate aspectos humanos importantes como a estética, os sentimentos, a cidadania é capaz de assegurar o reencantamento e o brilho de nossas ações em prol da vida. Precisamos nos cercar de uma nova ética, a qual através de valores estéticos possa refletir um cuidado de enfermagem provido de afeto e sentimento. Assim não é ético tratar o ser humano como um objeto de produção em série e cuidar do outro sem conhecer a si próprio. Para finalizar penso que a ética vai além da ética codificada que é ensinada nós códigos de ética e deontologia da profissão, mas é algo que envolve nossas percepções, atitudes e comportamentos. A atitude ética implica numa sensibilidade que merece ser apreendida em conjunto com saberes técnico- científicos.

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¹ Artigo apresentado a disciplina de Educação Estético Ambiental do Programa de Pós Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande. Primeiro Semestre de 2010.

² Enfermeira. Mestre em Educação Ambiental- Doutoranda regular do Pós Graduação em Educação Ambiental pela Furg.

³ Sistematização da Assistência de Enfermagem: é um dos meios que o enfermeiro dispõe para aplicar seus conhecimentos técnico-científicos e humanos na assistência ao paciente e caracterizar sua prática profissional, colaborando na definição do seu papel. Lei do Exercício Profissional – Documentos Básicos de Enfermagem: COREN- SP.

4Resiliência: fenômeno que se supera o estresse e as adversidades. (p.119)

5Iatrogenia: Parte da medicina que estuda a ocorrência das doenças que se originam do tratamento de outras; patologia da terapêutica. (p.1119)

6 Alopatia: Método ou sistema de tratamento, que consiste no emprego de remédios que produzem no organismo efeitos contrários aos da doença. (p.112)

Referências

BACHELARD; G.- A Poética do Espaço- Martins Fontes: São Paulo 2008.

DELL’AGLIO, D.D.; KOLLER, S.H. e YUNES; M.A.M. Resiliência e Psicologia Positiva: Interfaces do Risco à Proteção. 1 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

COFEN. Conselho Federal de Enfermagem. BRASIL. Documentos Básicos de Enfermagem, 1997.

ESTÉVEZ, P. R.- A Alternativa Estética na Educação- Editora Furg- Rio Grande 2009

FOUCAULT, M. Ética, Sexualidade, Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forence Universitária, 2006.

FREIRE, P. e SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

GUATTARI, F. As Três Ecologias. 19ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1990.

MICHAELIS 2000- Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Edição Exclusiva: Melhoramentos.

KRUSE; M.H.L- Os Poderes dos Corpos Frios: das coisas que se ensinam às enfermeiras- Aben- 2004.

SANT’ANNA, S.R; ENNES; L.D.- Ética na Enfermagem- Editora Vozes- Coleção Ética nas Profissões.

TEIXEIRA; E.R.- O Ético e o Estético nas relações de Cuidado em Enfermagem. Revista Texto Contexto Enferm. 2005 Jan- Mar; 14(1): 89-95

Foca
Enviado por Foca em 13/07/2010
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