O ângulo social da loucura

A ponte entre a razão e a loucura constitui uma estreita passagem, podendo ser comparada de modo análogo a um espectro, de forma que a sanidade se situe como um ponto de equilíbrio tênue, enquanto que os níveis de alteração das faculdades mentais crescem proporcionalmente até atingir o polo que delimita a condição de loucura como distúrbio.

O conceito de loucura é efêmero, visto que se constrói à partir do dinamismo que permeia a sociedade, e simultâneo, devido aos diversos povos, práticas e crenças existentes. Contudo, a imposição de uma cultura considerada erroneamente correta e exemplar depende de uma vertente civilizacional predominante, que busca meios de silenciar, isolar e adestrar aqueles que não se adequam à mesma, pois são vistos como uma ameaça selvagem ao sistema destituído de humanidade.

Vivemos em um mundo globalizado, em crescente desenvolvimento e arranhado pela padronização, onde expressar os pensamentos "fora da caixa"pode ser uma atividade perigosa, e a inteligência criativa, caso não siga os preceitos socialmente estipulados, é vista como rebeldia ou conspiração. Em oposição à filosofia de Thomas Hobbes, manifesta na obra "O Leviatã", Jean-Jacques Rosseau levanta uma crítica através da afirmação de que o homem é bom por natureza, mas que a sociedade o corrompe. Somos social e arbitrariamente configurados, o que acomete de modo hostil o estado psicológico de muitos indivíduos, e mais que isso, somos motivados a punir àqueles que não doutrinam sua essência. Portanto repito, a sociedade o corrompe.

A perspectiva clínica da psicose não pode ser encarada de modo isolado, visto que é um produto que não se desvencilha de outras áreas, como a filosofia, a antropologia e a neuropatologia, é ainda um termo enigmático e tão desafiador quanto a compreensão da subjetividade e da mente humana. A reversão do quadro das doenças mentais ainda caminha a passos contraditórios, visto que são amplamente ligadas à práticas delituosas e à expansão psicofóbica. No Brasil este estigma não é recente, podemos analisar um momento notável da psiquiatria nacional no início do século XIX no manicômio do município de Barbacena, em Minas Gerais. O mesmo contava com uma política de segregação dos doentes, que eram mantidos sob tutela, sofriam com os maus-tratos, torturas, com a precariedade infraestrutural e principalmente pela defasagem médica, o que os levou à dizimação. Métodos de tratamento desumano não se dissiparam com o passar dos anos, mas nos dias de hoje, enfatiza-se a eficácia de terapias que estimulam a percepção artística, literária e musical, implantadas por meio de ideais revolucionários.

A loucura está intrinsecamente relacionada à realidade, pois sem a interpretação dos fenômenos que nos cercam, a partir daquilo que se constrói, inexistiria a possibilidade de conjecturas a respeito de dimensões paralelas. É crucial que nos questionemos sobre o papel de nossos sentidos e se os mesmos são capazes de nos fornecer informações sobre o real, caso ele exista, sem abolir ideias que emanam do campo existencialista, de que ele pode ser meramente uma criação, um produto de nossa ilusão. Em sua obra "Dom Quixote", Miguel de Cervantes, por exemplo, parte da premissa de um estado de loucura consolidado pelo excesso de realidade, o que demonstra com efeito a total sanidade como causa de transtornos. Distúrbios esquizofrênicos ainda, não se definem pela distorção da realidade, mas pela percepção crua da mesma, tal qual como ela é. A loucura pode ser uma fenda propícia à fuga em períodos de instabilidade, uma maneira essencialista de ser, ou ainda, a suposta tragédia daqueles que estão imunes à lucidez exacerbada, e que segundo Nietzsche, foram vistos dançando e julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 01/03/2020
Reeditado em 30/10/2021
Código do texto: T6877777
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