A RENOVAÇÃO DA CONSCIÊNCIA (estudos com Marie-Louise von Franz - primeira parte)

🦋A renovação da consciência ou como dizem por aí, no momento atual: ampliação da consciência, não é algo que se controla ou se diz: “agora vou renovar a consciência e agora, não.” A ampliação da consciência é algo que diz sobre nós, que nos revela como seres humanos, é um dos nossos atributos e em ressonância com toda a natureza. Portanto, não é algo para se “pré-ocupar” ou buscar, ela se faz por si em nós, naturalmente.

🦋Eu diria que um dos sinais dessa condição em nós é a própria capacidade de refletir. Isto, pois, qualquer ser humano possui essa condição e o faz, mesmo que inconscientemente. Seja questionando assuntos do nosso dia-a-dia, relacionamentos ou mesmo temas de estudos ou mais profundos sobre a nossa condição, enquanto seres espirituais. Às vezes, não se tem a intenção de absolutamente nada, diante de alguma reflexão ou questionamento, apenas faz-se, sem saber o porquê. Porém, é justamente a “necessidade” de renovação de consciência que ativa isso em nós e nos incita a ir para um outro patamar no que tange ao que pensamos ou mesmo sentimos, diante de alguma situação.

🦋Você já se questionou porque decidiu “ir por um caminho e não pelo outro”? Por que escolheu a profissão ou atividade que faz sempre e não outra coisa? Haverá sem dúvida algumas respostas, mas não necessariamente, responderá plenamente a sua decisão. E não estou dizendo que precisa responder, mas apenas dizendo que esse impulso diz de algo mais em nós, de uma condição que nos impulsiona, naturalmente, a nos ampliar, enquanto, consciências. Portanto, reafirmo: não é uma busca, mas um impulso natural que dependendo da sua jornada ou da unicidade que você é, encontrará em si e/ou fora de si mesmo, os meios, pelos quais, te levará a esta renovação.

🦋O que quero ressaltar com tudo isso, além dos meus estudos propriamente, sobre a alma humana, é mostrar que a ideia de “buscador” que muitos se denominam não é algo restrito a apenas alguns eleitos e nem tão pouco, diz da própria condição natural em nós. Afinal, não se busca nada conscientemente, em alguns momentos. E mesmo que sejam conscientes algumas buscas, sempre haverá algo que nos impulsiona a isso, anteriormente, mas que não acessamos e diz dessas forças arquetípicas em nós que nos revelam como seres para além dos sentidos comuns. Por isso, digo que essa força em nós, que nos impulsiona à renovação de consciência, é arquetípica. E, além disso, gostaria de abordar um pouco como esse renascimento da consciência em nós, se processa.

🦋Para falar sobre isso, Marie-Louise von Franz em “Mitos de Criação” vai falar sobre os pares de opostos tão presentes na teoria junguiana. A mesma diz do quanto subvalorizamos esse aspecto, pois, é algo tão básico que deixamos de explorar mais e melhor o assunto. E no que diz respeito à ampliação da consciência ou mesmo para quem trabalha diretamente com isso, é importante saber como isso se processa. Então, a mesma vai iniciar dizendo que antes de qualquer material inconsciente tornar-se consciente, haverá uma divisão onde uma “parte” desse material virá à consciência e outra permanecerá inconsciente. Uma emergirá (virá à luz) e outra permanecerá submersa (ficará à sombra). Sendo assim, antes da consciência de qualquer aspecto, em sua origem o mesmo encontrava-se inteiro e não dividido, e como diz von Franz, era representante da totalidade em si mesmo.

🦋Sendo assim, tornar-se consciente, implica em dividir-se, separar em si mesmo determinados aspectos. Portanto, apenas parte encontra-se à luz e a outra parte, permanece inconsciente. Então, há algo que não sabemos de nós mesmos porque o que ficou submerso também diz de nós, mesmo que não tenhamos acesso a isso, mas está lá, dividiu-se para permitir que algo viesse à luz. Portanto, o ser humano é um ser cindido, dividido, separado em si mesmo – guarda em si inúmeras partes submersas, inconscientes, à sombra. E como a nossa natureza nos impulsiona à consciência, lá estaremos nós de novo, experienciando algo para trazer esse material submerso, à luz – como num ciclo infinito e ampliando sempre a consciência que somos.

🦋E essa divisão ou separação pode ser encarado como algo positivo ou criativo, no sentido de que é a partir dessa divisão que podemos, racional e conscientemente discernir, discriminar, diferenciar e ordenar, ou seja, é a partir disso que temos nossas referências para lidarmos com as circunstâncias da vida e fazer nossas escolhas de acordo com aquilo que ressoa conosco ou diz da nossa unicidade, mesmo que ainda não plenamente – o que serve ou não serve para mim, o que é bom ou não, enfim. Isso nos auxilia no que tange ao racional, mas no que tange ao emocional, os fatores deixados à inconsciência darão outro tom.

🦋Nossas experiências não são ditadas apenas pelo racional, mas também pelo emocional e sendo assim, essas partes submersas irão, mesmo que silenciosamente, influenciar em nossa trajetória. E esta influência, se dá, principalmente, pela projeção – nós e o externo (pessoas e situações). E também aqui vejo as forças arquetípicas em nós atuantes nos levando à ampliação da consciência, pois, independente de nossa vontade consciente, atraímos pessoas e situações ou como gosto de dizer: a vida nos traz situações que diz, justamente, desses aspectos deixados à sombra de nós mesmos.

🦋Esmiuçar ou explorar mais esses aspectos básicos da teoria junguiana (pares de opostos), nos permite ver mais claramente o nosso funcionamento psíquico e compreender um pouco mais algumas coisas que se tornam paradoxais e complexas ao tentar entender, na prática. E é complexo mesmo entender tudo isso; a alma humana é abundantemente rica e compreendê-la está para além do entendimento sobre a mesma, principalmente, quem se disponibiliza a atender ou cuidar da alma, junto a outras pessoas. Viver em si essa complexidade de forma consciente, o mais possível, para mim, é fundamental para quem deseja assistir a outro, enquanto psicoterapeuta. E viver isso, implica não somente verificar isso em sua vida intelectualmente, mas reconhecendo a vivência íntima e isto, sem dúvida, nem sempre sozinho será possível, por isso, a terapia ao psicoterapeuta é tão importante. Ele antes de sua profissão é um ser humano, portanto em si, esse cuidado, precisa vir primeiro e fará muita diferença, em seus atendimentos e postura diante do seu paciente. E isto, fica muito claro isso, pois, a teoria nasce da vivência e não o contrário. Foi através da vivência que Jung trouxe todo o seu legado e então, não há como mantermos a mesma postura quando tomamos consciência disso tudo, em nós – vivendo. Muda-se consideravelmente, e como num reencontro compreendemos melhor a teoria, propriamente.

🦋Ainda apontando esses pares de opostos na condição humana, Marie Louise von Franz, fala sobre certos movimentos da mente humana que nos aprisionam, primeiramente, para em outro momento levar-nos a ampliação – um estreitamento anterior promovendo a ampliação subsequente. Sintam o que a mesma diz:

“...o que é deveras estranho é que a mente humana, tem a tendência a se apegar, custe o que custar, aos velhos esquemas, chegando ao ponto inclusive de distorcer os fatos. As pessoas se tornam emocionalmente apegadas às suas hipóteses de trabalho, como se elas fossem a verdade eterna e, então, naturalmente, isso se transforma numa prisão que bloqueia o desenvolvimento da consciência, tanto quanto, antes, a havia ajudado a progredir . É o que acontece com a maioria das ideias arquetípicas usadas como hipóteses de trabalho. Se lhes damos uma ênfase exagerada ou nos apegamos emocionalmente às mesmas, elas se tornam uma prisão e, quando isso começa a ocorrer, ou seja, quando rompemos as grades da gaiola que elas armaram, deparamo-nos com uma ampliação da consciência e a abertura de novas possibilidades de vida. Esse é um tipo de processo básico, presente em cada passo dado para frente, em cada incremento da consciência. Eis porque é descrito como um dos primeiros e mais básicos eventos de tantos mitos cosmogônicos.”

🦋Aqui, von Franz, também quer nos mostrar que esse movimento que nos limita, inicialmente, onde nos apegamos a determinadas hipóteses como verdades eternas, isto, vai nos levar a uma unilateralidade que com o tempo ou a vivência, vamos nos sentir sufocados, isso se torna um peso ou ainda, vamos sentir de alguma forma que não é o suficiente para explicar algumas experiências. Então, é apenas diante disso que abrimos as grades e permitimos que a ampliação aconteça. E esse movimento dual (limitação/ampliação – ego/consciência) pode ser visto ou presenciado em muitos mitos de criação, mostrando-nos o quanto é poderosa a natureza da alma. Resta-nos em muitos momentos, apenas nos render, egoicamente falando, a este poder. Para referir-se ao quanto nos sentimos sufocados diante do apego a certas verdades, von Franz, cita alguns mitos de criação onde o Céu e a Terra eram apenas Um, estavam unidos (totalidade), mas essa união estava sufocando o seres que habitavam ali e então, a partir disso é que Terra e Céu foram separados. E aí vemos também os pares de opostos que Terra/Céu podem representar nos mitos, basicamente - Consciente / Inconsciente. Em outro momento, transcreverei um desses mitos que achei bastante ilustrativo para então, compreendermos melhor tudo isso.

🦋Que possamos refletir o quanto, conceitos tão básicos dentro da teoria junguiana, por vezes, são negligenciados por nosso intelecto ávido em absorver outros temas e deixando-os de lado não poderemos dar sustentação a outros conceitos ou mesmo compreender certas condutas em nós e muito menos, em nosso paciente.

Kátia de Souza - 14/07/2021