TOC-TOC

Se há alguém nessa cidade que conhece bem as calçadas do centro de Curitiba, esse alguém deve ser o calceteiro da prefeitura, que monta os "peti-pavês", e eu...

 

As calçadas do centro de Curitiba são reconhecidas por serem verdadeiras obras de arte sob os nossos pés.

 

Estas calçadas do Centro de Curitiba refletem bem o Movimento Paranista, que alcançou o auge em 1920, quando alguns intelectuais buscavam símbolos para consolidar a imagem do estado do Paraná, recém emancipado de São Paulo(1853).

 

O Paraná era antes província de São Paulo.

A Araucária (e derivados) e a erva mate foram os símbolos escolhidos, porque eram produtos legitimamente paranaenses.

 

Lange de Morretes foi quem criou os desenhos estilizados geometricamente de pinhões, pinhas, pinheiros, erva mate e que compõem o belíssimo quebra cabeças de pedrinhas preto e brancas, que enfeitam as calçadas curitibanas.

 

Mas apesar da beleza e do contexto histórico, ouço muitos curitibanos reclamarem que são tortas, desniveladas, cheia de buracos, que tem que cuidar para não torcer o pé...

 

Não discordo, mas para mim, sinceramente, isso nunca foi o pior. Vou contar o porquê:

 

Aos 7 anos desenvolvi TOC (Transtorno Obcessivo Compulsivo). Foi algo bárbaro para uma criança. Nem gosto de lembrar da minha infância por isso.

 

Foi estrodoso. Avassalador.

 

E entre várias esquisitices e manias absurdas, frequentes, incessantes...

 

...eu não podia pisar nas pedras pretas das calçadas.

 

Em alguns dos anos que estudei lá, ia a pé da rua General Carneiro até o Colégio da Divina Providência, na Rua do Rosário.

 

Era um percurso diário, ida e volta, que foi me familiarizando com o calçamento da área central da nossa cidade.

 

A saída de casa pela General Carneiro era uma verdadeira prova de fogo!

 

Paralelepípedos brancos e pretos se alternavam de fora a fora na calçada.

 

Se pisasse em uma pedra preta, vinha imediatamente uma voz que gritava no méu cérebro:

 

- TEU PAI VAI MORRER!!!

 

E eu retornava dois passos atrás fazendo uma penitência pelo meu pecado mortal de ter pisado na pedra preta e refazia os passos à frente tentando não resvalar na pedra escura.

 

UFA!

 

Mais uns 15, 20 metros à frente...Outro resvalo na pedra preta...E a voz amaldiçoava:

 

- TUA MÃE VAI MORRER!!!

 

E eu ficava refém daquela voz que me escravizava...

 

E chegava na esquina e dobrava, descendo a Rua Benjamin Constant.

 

Era um bálsamo!

 

Eram dois paralelepípedos pretos e dois paralelepípedos brancos dispostos verticalmente até a Rua Mariano Torres.

 

Três quarteirões para seguir em paz...

 

Vale lembrar que nesta época, a Rua Mariano Torres ainda era a "Rua do Rio" (Rio Belém a céu aberto).

 

Sem calçamento, só terra batida.

 

Mas aí começavam os petit pavês...

 

Na altura do Teatro Guaira, as pedrinhas formavam ondas pretas e eu serpenteava como uma cobra pelas pedras brancas

 

(Tudo isso tentando parecer uma pessoa normal para as pessoas que passavam na rua.

 

Não queria que pensassem que eu era uma maluca).

 

Eu tinha consciência que isso era absurdo mas não conseguia controlar essa "força" ou essa "coisa", que me obrigava a agir assim...

 

Aprendi a escolher os "melhores" percursos...

 

Com menos pedras pretas. Mas eram inevitáveis...Todas as ruas centrais tinham( e tem).

 

Chegava na rua XV, na calçada ao lado da Praça Santos Andrade, onde havia os desenhos de pinhões com as pedrinhas quadradinhas.

 

Bem...Onde estavam os benditos pinhões, eu tinha que me esgueirar pelo cantinho da calçada.

 

E aí havia uma folga até o próximo pinhão.

 

Nem era tããão difícil...

 

Ali na frente da Universidade Federal já complicava...

 

Tinham os pinhões e os pinheiros...

 

Só dava para passar de um lado.

 

Mas o pior estava por vir...

 

O trecho em frente dos Correios ficava complicado...

 

Pedras brancas e pretas se equivaliam em desenhos grandes e para sair de uma base branca e chegar em outra branca, tinha que andar saltando...

 

Às vezes, para esses casos, a melhor solução era andar sobre o meio fio...

 

(Considerava o meio fio um "pique". Me punha a salvo!)

 

A Rua XV era fácil.

 

Não sei se já era chamada Rua das Flores mas sempre foi tranquilo andar lá.

 

Pinhões separados e no meio da rua uma larga faixa, toda em pedrinhas brancas.

 

Praça Generoso Marques.

 

Complicação de novo!

 

Desenhos modernos, tipo geométricos, em formatos de bolas, losangos, semi-círculos e quadrados, que eventualmente se sobrepunham.

 

Complicado.

 

Isso se estendia até a Praça Tiradentes.

 

Nessa época não havia as faixas de pedestres, mas depois que foram pintadas nas ruas, virou uma tortura.

 

Eu evitava, mas às vezes tinha que enfrentar...

 

Só podia pisar nas faixas brancas porque o asfalto era considerado preto.

 

Tinha que saltar!

 

De uma faixa branca até a outra e até a outra e assim por diante...

 

Tipo salto triplo só que era muito mais que 3 saltos seguidos...

 

Saía pulando ou então, abria bem uma das pernas e juntava a outra.

 

Depois seguia repetindo até a última faixa.

 

Imagine o que as pessoas que passavam na rua, achavam ao ver uma criança fazendo isso.

 

Não entendiam nada.

 

Ao chegar na Rua José Bonifácio, ao lado da Catedral Metropolitana, era moleza.

 

Linhas retas de petit pavês pretos e poucas curvas...

 

Nada que atrapalhasse muito.

 

Poderia também subir direto pela Rua do Rosário(Rua do Colégio). Era mais fácil ainda!

 

Só pedras brancas!!!

 

Ou esqueceram de colocar pedras pretas lá ou o calceteiro da prefeitura teve pena de mim e deu uma forcinha...

 

Poderia ainda falar dos desenhos dos calçamentos das ruas Marechal Deodoro, Monsenhor Celso, José Loureiro e todas as ruas do Centro de Curitiba.

 

Mas ia cansar muito vocês...

 

Vou encerrar falando da rua que eu achava a pior de todas:

- A Rua Barão do Rio Branco.

 

Os desenhos formados pelos petit pavês eram predominantemente feitos com as pedras pretas e sobravam poucas pedras brancas...

 

Só dava para passar lá se fosse voando senão morreriam todos da minha família (Depois do pai, da mãe, a "voz" falava que morreriam irmãos, avós e assim por diante...).

 

Essa rua eu nunca passava, de jeito nenhum.

 

As pessoas me achavam esquisita...

 

Meu apelido era UM-DOIS, UM- DOIS. Até entre familiares...

 

( Por causa dessa coisa de estar sempre voltando dois passos atrás, estar serpenteando, pulando, refazendo algo como abrindo e fechando uma gaveta, torneira, porta, escrevendo e apagando o tempo todo a mesma palavra na sala de aula, colocando e tirando a mesma peça de roupa, sentando e levantando de uma cadeira umas "trocentas" vezes seguidas...

 

E rezando sem parar Ave Marias, Pai Nossos, Salve Rainha...

 

Porque achava que se eu rezasse, me livraria desse pesadelo...(Achava que estava exorcizada...)

 

Mas teria que rezar um Pai- Nosso inteiro ou Ave Maria sem pensar em nenhum palavrão e isso era tarefa impossível.

 

Era só começar a reza e os palavras iam pulando pra dentro da minha cabeça...

 

Os mais horríveis que começavam com " c", com "B", com "m".

 

E para me "limpar" e Deus me perdoar, achava que tinha que continuar rezando até conseguir.

 

Todas as noites, dormia na exaustão após algumas horas de infrutíferas tentativas de conseguir fazer uma oração perfeita e imaculada. Nunca consegui.

 

E vivia em missas... Antes só aos domingos, depois também durante a semana ...

 

Cheguei a ir todos os dias numa fase da adolescência

 

Quando meu pai me proibia( ele teve uma irmã que virou freira...), eu dava um jeito de escapar e “compensar”...

 

No dia seguinte dava um jeito e ia em duas missas...

 

Tinha uma missa que começava 6h30 da manhã na Igreja Bom Jesus da Rui Barbosa e eu ia antes do colégio, que começava às 7h20, ali perto. Era um jeito de escapar da vigília do meu pai.

 

Fazia o segundo grau no Dom Bosco, ali na Emiliano Perneta esquina com Jesuino Marcondes.

 

Sabia os horários das missas de todas as igrejas centrais para poder contornar.

 

E busquei também outras alternativas espirituais.

 

Frequentei Centros Espíritas.

 

Bem mais tarde passei a ir na Igreja Presbiteriana da Comendador...

 

Frequentei uns bons anos todos os domingos, sem faltar nenhum.( Era parte da minha doença ser sempre obsessiva em tudo)

 

Me fez bem um tempo. Depois, não mais.

 

Enfim.

 

Poderia falar por horas das repetições que representavam os meus dias).

 

E olha... Não foi por falta de assistência...

 

Eu era de uma família de muitos médicos...

 

Mas ainda havia pouco conhecimento nessa área da psiquiatria.

 

A Psicologia estava começando como uma ciência.

 

Enfim, meus pais achavam que com amor e carinho passaria.

 

Nunca passou!

 

Mas o TOC passou a ser conhecido,muitos anos depois...

 

Iniciei com as medicações, que no começo eram intoleráveis, pelos inúmeros efeitos colaterais.

 

Hoje é algo bastante controlado, medicação segura e comum (fluoxetina diariamente 20mg).

 

Já nem sofro por causa disso. Até quase nem lembro porque agora só faço o “jogo do contra”

 

Quando vem a voz que meus filhos vão morrer, eu páro e penso: -Deus não iria tirar meus filhos por causa disso...

 

Se eu concordar em fazer isso, vou estar menosprezando a inteligência e a capacidade de amar de Deus...

 

Mas os remédios são absolutamente essenciais para você conseguir parar e discernir ...

 

Pena que não tinha isso antes.Tanto sofrimento teria sido evitado.

 

Tive três filhos e nenhum desenvolveu. Graças a Deus.

 

Acho que medicaria (por conta)com fluoxetina desde a mamadeira.

 

Ouço muitas pessoas por aí, que tem mania de arrumação e limpeza, dizendo que tem TOC.

 

Não duvido.

 

Só sei que o meu era exacerbado mesmo.

 

Nada que se compare. A ponto de não ter condições de ter uma vida feliz e produtiva por muitos anos.

 

Mas enfim, consegui nem seu como encontrar formas de dominar a fera.

 

Hoje não é mais meu algoz. Mas o foi por metade da minha vida e eu diria que durou uma eternidade

 

 

Obs.: Meu pai e meu avô materno brigaram e houve o afastamento da família para sempre.

 

Éramos muito ligados.

 

Acho que foi o gatilho para desenvolver a doença na primeira infância tão brutalmente.

 

Falo isso para os pais que, quando se separam, às vezes não conseguem mensurar a dor que causam aos filhos.

Pensam que é melhor separar do que ficarem sob o mesmo teto brigando na frente das crianças.

 

Não sei dizer nada. Só sei que para as crianças é sofrimento demais e às vezes, essa dor pode se manifestar de formas inesperadas

Karin Romanó
Enviado por Karin Romanó em 27/08/2022
Reeditado em 30/08/2022
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