FUNDAÇÃO CASA - UM NOVO LAR

Muito mais do que uma reforma estrutural, Fundação Casa é hoje exemplo de transformação social e espiritual para dezenas de adolescentes

Faz tempo que a maior instituição governamental para menores de São Paulo – a antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) –, pivô de incontáveis rebeliões, deixou de pautar as páginas policiais de jornais e noticiários de TV. Para ser mais preciso, desde que novas e radicais medidas administrativas foram tomadas, a começar pelo projeto encaminhado à Assembleia Legislativa propondo a alteração do nome para Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente – ou Casa. A lei 12.469, sancionada pelo governador do Estado Cláudio Lembo em dezembro de 2006, não significou somente uma mudança de nomenclatura, mas a revitalização de uma instituição praticamente falida, desacreditada e jogada às traças pelo poder público estadual. Em pouco mais de dois anos, o que se observa agora são ações práticas voltadas para a recuperação social de adolescentes infratores, no sentido de resgatar-lhes a auto-estima e a dignidade, promovendo estudos e oferecendo uma nova oportunidade em suas jovens vidas.

E em meio a tantos rostos ainda imberbes e carregados de espinhas, é a Bíblia, folheada a olhos atentos, que denota, não somente o aumento do número de convertidos – muitos jovens já foram, inclusive, batizados e integram grupos de discipulado nas próprias unidades – como também uma significativa melhoria no comportamento coletivo. De acordo Sérgio de Oliveira, diretor da Divisão Regional da Vila Maria, depois do efetivo trabalho desenvolvido por organizações não-governamentais e pelas igrejas evangélicas, os internos se tornaram mais maleáveis e educados. “Eles mesmo se disciplinam e servem de exemplo a outros meninos”, afirma o evangélico, membro da Primeira Igreja Batista da Penha, ao mesmo tempo em que comemora o fim das rebeliões e uma maior abertura dos portões para a comunidade. “Hoje é totalmente possível abrir a unidade para visitas, sem qualquer possibilidade de uma rebelião ou tentativa de fuga”, resume, com conhecimento de causa; afinal, já são mais de vinte anos de fundação e testemunha de inúmeras tentativas de fuga.

Para muitos, essa reforma estrutural é fruto do trabalho da atual presidente Berenice Maria Giannella, que introduziu o conceito de “unidade educadora” e não apenas corretiva, suplantando aquela insígnia de “fábrica de criminosos” que antes denegria o nome da instituição. De acordo com dados internos, desde a reformulação pedagógica e a descentralização do atendimento, antes concentrado em grandes complexos da capital, a taxa de reincidência caiu de 29% para 14,18%. Com as rebeliões praticamente a zero, a Fundação Casa abriu suas portas para a participação social, e o que não faltou foi apoio vindo dos mais diversos segmentos, como os religiosos, sempre com a incumbência de despertar a fé em lugares onde haja maior abstinência de sentimentalismo cristão. Apesar de divergências doutrinárias, quando o assunto ali é responsabilidade social todos falam a mesma língua e seguem o que rege o Programa de Assistência Religiosa (PAR), órgão interno que estabelece condições iguais a qualquer instituição religiosa para a realização de trabalhos evangelísticos. Assim, o bom uso da religião parece, cada vez mais, pacificar coletivamente os corações dos internos.

Composta atualmente por sete divisões, a Unidade de Internação da Vila Maria, antes marcada como uma das mais violentas, hoje serve de exemplo. Localizada na zona norte de São Paulo, tem capacidade física para abrigar até 228 meninos, inclusive reincidentes separados por faixa etária e pela especificação do delito. Ninguém se diz inocente; aliás, todos são bem conscientes dos atos cometidos – que vão desde pequenos roubos a homicídios –, mas inegável mesmo é o sentimento quase unânime do arrependimento, a vontade de passar uma borracha no passado e planejar um futuro melhor. Para sustentar essa nova e intimista visão, a Fundação Casa ministra diversos cursos profissionalizantes em parceria com a sociedade civil – como panificação, culinária, fotografia, hidráulica, teatro, artesanato, dança, com certificados expedidos pelo Senai. Além disso, o esporte também faz parte da rotina dos internos; a UI Abaeté chegou até a realizar um torneio de tênis – o Abaeté Open – e recentemente recebeu a visita dos Harlen Globetrotters, a lendária e divertida equipe norte-americana de basquete, por ocasião de sua passagem pelo Brasil.

Transformações – Testemunhos são o que não faltam aos adolescentes convertidos, como o mais velho dos cinco irmãos de uma família da periferia de São Paulo. A.F, de 19 anos, diz ter cometido o primeiro delito aos oito anos, quando se tornou órfão de pai e se viu forçado a roubar comida para sustentar os irmãos. “Depois que eu vi que era fácil, comecei com assalto a mão armada; não queria fazer mal a ninguém, mas levava tudo o que desse para vender.” Ele conta que a mãe evangélica orava constantemente para que, primeiro, o filho retornasse vivo para casa e, depois, que voltasse a frequentar a igreja. “Ela trabalhava muito para manter meus irmãos, mas não conseguia me dar o que eu precisava”, continua. Depois de muitos roubos, o jovem acabou sendo pego e encaminhado para a Fundação Casa, onde diz ter reencontrado na religião um novo direcionamento para sua vida. “Logo ao chegar, ganhei uma Bíblia e comecei a participar dos estudos. Eu não queria saber muito disso, mas fui me sentindo incomodado e acabei me convertendo”, relembra. Ele ainda é categórico ao afirmar que aquela vida de roubos é coisa do passado, e que a realidade de agora em diante será bem diferente. “Vou sair daqui com uma profissão. Sei que minha mãe continua orando por mim, e que tem também uma igreja me esperando lá fora para me ajudar”, conclui.

Com 20 anos, introspectivo e de poucas palavras, outro interno da Vila Maria afirma que só descobriu a alegria de viver ao se converter. “Nunca tive felicidade. Eu era considerado perigoso, sempre roubei e cheguei até a matar só para ver como era, sem nenhuma piedade”, testemunha. Hoje, além de se confessar arrependido, ele também admite sentir medo e aguarda com ansiedade o dia em que poderá voltar para casa. “Sei que estou aqui pagando pela morte de uma pessoa, mas espero sair e mudar minha vida lá fora. Quero reencontrar minha mãe e demonstrar a todos essa mudança que aconteceu comigo. Não sei o que vai ser, mas tenho certeza que será bem diferente e muito melhor”, aposta.

Dos 13 aos 19 anos, D.L só esteve fora da instituição por seis meses. Com tanto tempo confinado, nada mais natural que exercesse uma certa liderança entre os demais; afinal, atributos como sagacidade, espírito de liderança e voz de comando não lhe faltam. Ele próprio conta que chegou a comandar várias rebeliões e fugas em massa, e hoje, cristão convertido e pai de uma filha de dois anos, admite que a liderança antes exercida não era nada natural, mas adquirida com o tempo pelas circunstâncias em que se encontrava. “Depois que me converti, perdi a vontade de mandar. Hoje eu acho que a conversa convence mais do que a força”, reflete. Tal mudança comportamental se deve também aos perigos que espreitava a cada tentativa de fuga. Durante uma troca de tiros num assalto, o jovem foi conduzido praticamente morto para o hospital com uma bala alojada à coluna e a triste perspectiva de jamais recuperar os movimentos da perna em caso de sobrevivência. Um dia, porém, ainda no hospital, ele recebeu a visita de um “crente falando de Jesus”, como ele mesmo define. “O cara afirmou que eu não morreria e nem ficaria paraplégico, mas que seria um instrumento nas mãos de Deus”, relembra. Se a princípio sua reação foi violenta para com o evangelista, a explicação dada pela mãe o deixou tanto intrigado quanto confortado espiritualmente. “Briguei com ela por ter deixado aquele homem me visitar, mas ela garantiu que ninguém havia entrado no quarto, que tudo não passava de um sonho.” Do hospital para a Fundação Casa, ele não apenas acompanhou as mudanças estruturais da entidade, como também sua própria transformação. “Eu estava disposto a mudar e queria que minha filha sentisse orgulho de mim. Foi quando ouvi alguém dizer que Jesus não discrimina ninguém e que o amor dele transforma vidas; então, eu o aceitei.” Atualmente, ele dedica sua vida às orações e ao curso de desenho, tanto que já criou vários modelos de vestidos e sonha em seguir a profissão de estilista assim que deixar a instituição. “Foi um dom que Deus me deu. Quero me especializar, viver disso, casar e criar minha filha honestamente”, planeja.

Música e homenagens – A dedicação que Eduardo Felipe Pereira demonstra como diretor da UI Abaeté é a mesma para a pregação do evangelho. Como todo admirador de boa música, a montagem do Coral Mensageiros da Paz, formado por meninos da própria unidade, foi a maneira encontrada por ele para conciliar a fé com a necessidade daqueles que tiveram, por uma série de circunstâncias, podada a chance de demonstrar seus verdadeiros valores. “A ideia de montar um coral surgiu há cerca de dois anos quando percebi nos meninos um grande interesse em participar dos cultos evangélicos, além de uma incrível aptidão para o louvor”, conta o pastor, que congrega na Assembleia de Deus Ministério do Evangelho Pleno. Nenhum deles reclama dos ensaios diários; pelo contrário, eles são bastante animados e levam a atividade muito a sério. Além disso, a música também lhes possibilita conhecer outras unidades e diversas igrejas evangélicas espalhadas pela região. “Do ponto de vista social o louvor é importantíssimo, pois as mensagens fazem com que eles reflitam de forma positiva os conceitos de suas vidas”, complementa o religioso.

Seguindo a tradição das “festas caipiras” que aquecem o inverno de todo o país, a UI Abaeté também realizou sua festa julina visando, além do entretenimento, a confraternização entre os internos e seus familiares. Entre tantos ingredientes de um arraial de verdade – não faltaram música sertaneja, comidas típicas e, claro, a tradicional quadrilha –, uma atração “quase” internacional acabou por roubar a cena: a apresentação de José Joaquim Martins dos Santos, vulgo Billy Jackson, que prestou homenagens ao cantor norte-americano morto no final de junho em Los Angeles (EUA). “Fiquei muito feliz por ter sido tão bem recebido e poder ver a felicidade estampada no rosto de cada um deles; afinal, as músicas do Michael sempre falam de amor e paz e conseguem alegrar qualquer ambiente”, resume o artista que planeja gravar um vídeo com os internos.

Definindo o evento como “um momento de grande diversão e uma perfeita forma de interação”, Eduardo Felipe aprovou a presença de um representante do maior ídolo da música pop de todos os tempos. “A repercussão foi a mais extraordinária possível. Refletiu muito o fato do Michael Jackson ter tido uma infância difícil e pobre igual a deles, mas que sempre olhou para frente e lutou para realizar seus sonhos”, comemora o assembleiano que finaliza relatando o diálogo que teve com um dos adolescentes: “‘Senhor, se ele conseguiu eu também posso’, disse o jovem. ‘Sim, você pode, respondi’”.

Papel de menino

Motivação, consciência ecológica, estímulo à arte e cultura, interação social, além de manter a mente ocupada – o que é essencial para quem vive em qualquer regime de confinamento – são alguns dos propósitos do Instituto Papel de Menino (www.papeldemenino.org.br), entidade parceira dos meninos da Fundação Casa, que surgiu há cerca de cinco anos por iniciativa de um grupo de crentes da Igreja Batista da Água Branca, zona oeste de São Paulo. Depois de visitas iniciais às unidades da Febem da capital paulista, a convivência com os internos foi se estreitando cada vez mais, criando laços e rompendo até mesmo aquela barreira aparentemente intransponível. Vencida a desconfiança e aceito ao universo particular dos adolescentes, o grupo definiu a região de Franco da Rocha com sua área mais específica para atuação, não somente pela cidade alojar um dos complexos mais críticos como também pela carência de associações participativas naquela unidade. “A escolha foi estratégica, levando em consideração também que muitas entidades assistenciais já vinham atuando na capital”, explica Silvana Goulart Urbani, diretora do Instituto.

Com a colaboração de uma indústria de embalagens da região de Franco, há cerca de um ano o Instituto Papel de Menino, com uma ideia aparentemente simples mas eficaz, literalmente conseguiu despertar o dom artístico em inúmeros adolescentes. Com o material doado, eles colocam a imaginação para funcionar e transformam uma simples embalagem plástica em artigos pra lá de criativos, para o contentamento de familiares e visitantes, que geralmente se despedem levando uma lembrancinha de presente. “Eles recebem o material e confeccionam artigos artesanais, como bolsas, porta-retratos, objetos de decoração ou o que a imaginação determinar”, complementa Silvana.

Mas se dentro da UI de Franco da Rocha o papel dos meninos é transformar a matéria-prima em arte, a atuação do grupo de voluntários é bem mais abrangente; eles também fazem acompanhamento pós-internação, mantém contato com familiares dos internos e até custeiam eventuais visitas. Todo esse propósito humanitário é declaradamente revestido de objetivos evangelísticos, com a realização de cultos e ministração da Palavra dentro da própria unidade. Afinal, além de exercitar a mente, ali muitos meninos ainda carecem de orientação espiritual.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 136

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 04/11/2009
Reeditado em 14/05/2010
Código do texto: T1905048
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