O chamado do demônio

Águas calmas, tempo bom, nenhuma nuvem no céu, e em poucos minutos o redemoinho surge, uma tempestade faz de barcos brinquedos na mão de Deus. Horas transcorrem e nova calmaria. Apagam-se os vestígios de que um dia ela foi interrompida. Se um dos barcos resiste, trará provas, cicatrizes e histórias da tormenta, enquanto os que afundam viram espólios da ira divina.

Todo dia nos estarrecemos com os jornais. Menina jogada da janela pela madrasta. Namorado esquarteja namorada por ciúme. Filho mata pai e mãe e diz que não sabe o que aconteceu. Crimes assim podem ser premeditados, mas também podem eclodir numa catarse de minutos, como a tempestade acima. Catarses guiadas por ciclos, como rituais de sacrifício a algum demônio antropofágico. Cientistas gastam tutano explicando enquanto demônios riem à espera da próxima “conjunção”. Entendidos e estarrecidos e criminosos guiados pelos mesmos instintos cíclicos que podem, do dia para a noite, transformar um no outro. Bom pai, belo dia, surra a esposa, e o genocida salva vidas por compaixão. Estudantes bem criados e informados, às centenas, levantam tochas para cremar a bruxa de mini-saia e ninguém explica ou consegue. Nem eles. Pretextos inventados encobrindo o fato de que foram tomados pelo clamor de uma catarse humana, agindo tão naturalmente quanto nos dias em que são como os estarrecidos. Há, sem dúvida, os tais motivos sociais, antropológicos, psíquicos... tão complexos, variáveis, intrincados e contraditórios quanto as conjunções que os demônios esperam para saber onde, como e com quem deflagrar seu ataque seguinte. Terremoto vem, deixa escombros, perguntas e muito trabalho pela frente.

Há, e houve, e haverá um clamor racional pelo fim do sofrimento. Um esforço pelo controle, um eterno desejo de compreender e prever a natureza do mal. Se somos inerentemente bons, é o meio que nos deturpa? Por que causamos sofrimento? Por que a guerra? Como ter certeza de que não serei o próximo? Ou meu filho? É justo? Décadas de uma vida trabalhadas e estudadas e erigidas, preparadas, para que um dia um desajustado desgovernado atravesse-lhes o caminho, ceifando-as? Por que eu? Por que não ele? Tenho (ou ele) culpa? Entendidos do livre-arbítrio e do “homem produto do meio” discutem se a questão é social ou pessoal, se somos vítimas ou cúmplices de um status quo doente; se o criminoso é causa ou conseqüência.

Na antiga série de TV Twin Peaks, Leland Palmer sofreu pela morte da filha que ele próprio causou e semanas depois, voltou a matar, guiado pelas mesmas marés inconscientes no crime, na incompreensão e na revolta. Quando pego pela polícia, admitiu que era fraco, ao contrário da filha, forte o bastante para resistir ao clamor do demônio assassino. Forte o bastante para não afundar na tempestade; pagando com a vida.

Quantos de nós são realmente capazes de rejeitar os papéis incutidos por situações, pelos espíritos ocultos da ordem e do caos? Pior. Seriam estes mártires, supostos remanescentes do livre-arbítrio, donos de seus narizes, ou só um tipo diferente de marionete, tão guiada quanto as demais, mesmo que em sentido oposto? Uma parte de nós, supostamente sã, quer o fim do risco, o conforto, a justiça, o crescimento, a garantia de um futuro, e muitos povos seguem caminhando rumo a algum ideal de evolução, porém progressistas e tradicionalistas não conseguem escapar dos ciclos que nos tornam repetitivos e inscientes, ainda que riscos sejam reduzidos, que guerras diminuam, que a besta fique mais sutil e ganhe formas menos ortodoxas, o outro lado da moeda está lá. Sempre. Demônios aguardando para saber onde sacrificar de novo, cumprindo seu sinistro papel na manutenção da chama da tragédia humana.

Luiz Mendes Junior
Enviado por Luiz Mendes Junior em 28/01/2010
Reeditado em 03/05/2010
Código do texto: T2055319
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