O Show da Vida

(texto escrito em Outubro de 2009 para a Revista Sina)

Pelas ruas do Rio de Janeiro e, imagino, de outras cidades brasileiras, o cidadão pode se deparar com uma cena inusitada. Pontos de ônibus com estranhos anúncios de advertência onde se lê “apenas para humanos” abaixo de um sinal indicativo com o logo de um monstrinho, um risco de proibição e um número de telefone para que o cidadão consciente denuncie “não humanos” vistos no local. Um olhar desatento pergunta: “Que diabo é isso? Campanha de utilidade pública contra o que? Cães no ponto?”, e o transeunte conclui que não, e que precisa parar para ver aquilo direito ou não saberá exatamente do que se trata. Abaixo do logo e do telefone, o endereço de um website que deve ter a resposta. “Publicidade, claro”, conclui-se, mas de que? Evento? Produto? É difícil não ser fisgado pelo comercial meio disfarçado de outra coisa; ainda mais no Brasil, onde esse tipo de marketing não é tão corriqueiro como no primeiro mundo e, por isso, causa maior impacto.

Não é de agora que a fronteira entre fato e jogada publicitária ficou dúbia. O fenômeno é velho, mas vem ganhando contornos diferentes nas últimas décadas, quando os mecanismos manipulatórios ficaram mais explícitos, conhecidos e complexos. O público já aceita melhor a publicidade como parte do cotidiano e incorporou esse espírito também. Marketing é um estado da alma, um estilo de vida, uma graça da sociedade do espetáculo. Relações de influência cultural se multilateralizam e se fundem, uma vez que mentira e ficção viram verdades do jogo de concordâncias mais importantes que qualquer fato bruto. Fato é o fato publicitário, e a máquina midiática que por gerações nos doutrinou na importância da impressão sobre a essência, na impressão como essência da essência, clonou-se em cada membro da sociedade, hoje um outdoor em potencial. O cidadão das grandes metrópoles pode não ter crescido tanto em consciência política, mas evoluiu na consciência espetacular. Sabe usar a máquina que o manipula e fazê-la de tola sem precisar de diploma para isso. Não foi difícil à família Heene, por exemplo, mobilizar o país mais poderoso do mundo com a história de um menino num balão. O show da vida ao vivo apertou corações e desvelou sua máscara a uma mídia perplexa e ao mesmo tempo pronta a seguir tocando o espetáculo. O circo dos Heene não parou quando o pimpolho fugiu do script, deixando a mentira escapar. Só mudou de mãos. O peso do monstro que seus pais criaram se virou contra eles tão fortemente como agira contra a máquina que o alimenta. No fim, ficou claro que essa máquina e o consumidor do show da vida estiveram ganhando o tempo inteiro, pois o verdadeiro fato midiático tem menos a ver com os Heene mentirem ou não e mais com o que uma virada dramática de roteiro como a que presenciamos propiciará à qualidade do espetáculo. O drama virou uma farsa tão instigante quanto. Jornais, TVs e revistas agradecem. Os Heene mudaram de papel, mas nunca se sabe se virarão heróis de novo, ou se um dia descobriremos que a farsa também era uma farsa com objetivos similares aos da anterior. Quem nos garante? No show da vida, a cortina pode sempre se reerguer, mostrando-nos que a ilusão daquela ilusão era só outra camada numa cadeia de fachadas sobrepostas. Alguém liga? No terreno das impressões, “o que era” só vale em função “do que é”, e o importante mesmo é “causar”. Ou “ser causado”.

Luiz Mendes Junior
Enviado por Luiz Mendes Junior em 03/05/2010
Reeditado em 03/05/2010
Código do texto: T2233838
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