Sobre Rita, a outra – ou “A vida é bela”

Nasci em João Pessoa em 1961 e desde muito tempo frequento as ruas de Santa Rita. Em minha infância, através da janela do carro de meu pai, quando muitas vezes íamos de João Pessoa para lá, enquanto corríamos pelo “Corredor da Morte” – que era como chamávamos essa mesma via que, entre canaviais, ligava a capital as cidades interioranas de Bayeux e Santa Rita – via que o lugar era cercado por grandes fazendas. Na época seus maiores administradores provinham da família Ribeiro Coutinho, um tanto próxima de nós pela amizade de meu pai com alguns de seus membros. Em viagens à Santa Rita, pelo caminho, avistava as chaminés das usinas soltando fumaça e imaginava-me também evaporar como as nuvens fazem, depois de parecerem ter sido uma porção de coisas.

Da usina à Política, em muitas ocasiões os Ribeiro Coutinho estiveram à frente da promoção das ações que contribuíram com o desenvolvimento sócio-econômico e cultural da cidade. Passados os altos e baixos dos tempos, perdas, danos e ganhos se somaram à promoção das mudanças que, por princípio, deveriam motivar a boa vontade dos que tem vocação para a administração e promoção da Vida – quer na própria família ou em sua comunidade mais ampla, representada pela Escola, pelo Partido e pela Igreja.

Hoje, novamente temos um Ribeiro Coutinho no comando da Prefeitura, o historiador Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, à tentativa de coordenar a realização das ações em benefício daqueles que, entre os muitos crentes da Esperança, o tem (como outros) como nada menos que “um representante da justiça de Deus” no enfrentamento de problemas da ordem do que sei existir hoje em Santa Rita, por intermédio de minha esposa, a Assistente Social (e haja assistência!) Simone Jordão Almeida.

Talvez uma Intenção superior dirija mesmo nossas vidas. Afinal, “a Vida é bela” – como reconheceu também o personagem do diretor e ator italiano Roberto Benini em seu filme homônimo. Contudo, incomoda-me, como provavelmente incomoda a Marcus Odilon, compartilhar essa “vida bela” com pessoas em situações tão horrivelmente desesperadoras quanto se encontram alguns moradores de Santa Rita, situações nunca vistas sequer no pior filme de terror.

Um primo espirituoso me disse outro dia que, a considerar a reencarnação recurso indispensável à transformação dos pecadores, o Nordeste é lugar ideal àquelas almas que precisam se penitenciar por suas faltas em vidas passadas. Não conheço muitos lugares do Nordeste brasileiro, mas a considerar o fato de que também sou nordestino, e a considerar “verdadeiro” o que disse meu primo, jamais farei o que certos psicólogos conceituam como “regressão”: nada quero saber de minhas pregressas vidas anteriores. Nesta vida, entretanto, em tumultuados dias passados, descobri o Pelourinho, em Salvador (BA), também um lugar de purgações. A contar com a conivência e participação da polícia baiana na administração da prostituição, no tráfico e no tráfego de drogas por suas ruas escuras, entre as ruínas da História, o Pelourinho certamente era um desses lugares.

Em casa, depois de rememorar muitas situações por mim presenciadas em Santa Rita, conversando sobre o desejo da feitura deste comentário, disse à minha esposa que o intitularia de “Rita, a outra”. Porque há muito tempo a cidade de Santa Rita nada tem de santa, embora aqui e ali ainda não tenha perdido a “poesia natural” de sua paisagem circundante. A cidade, tanto quanto qualquer outra nos últimos tempos, explodiu em “desenvolvimento” – segundo avaliações, por aproximação do modelo imperialista-citadino-tecnológico-materialista-econômico e suas conseqüências: as subumanas condições de vida de percentual considerável da população das metrópoles e das cidades por se tornarem grandes.

Quando vou lá, visito sempre a Secretaria de Saúde do Município, também para sentir de perto o que conta minha esposa sobre o seu “maravilhoso” dia-a-dia de trabalho. Como ela, muitos que moram em Santa Rita não suportariam ver o filme "Sin City – A cidade do pecado" (EUA, 2005) por ser “muito violento”. No entanto, muitos de lá sabem o que acontece na casa ao lado, onde um pai está tentando estuprar a filha, deficiente física e mental, que ganha pensão de um salário mínimo administrada por uma avó cancerosa, esclerosada, espancada e abandonada pelo filho alcoólatra, que matou a namorada prostituta do irmão para ficar com ele – porque é homossexual, ama incestuosamente o irmão e também quer protegê-lo do desejo de vingança do chefão de uma gangue de que faz parte, administradora do tráfico de drogas num determinado bairro da cidade, que prometeu arrancar-lhe o coração com uma pá de profanar túmulos por sua negligência em não prestar contas dos negócios que deve à mãe, cafetina de um cabaré, onde meninas putas se abrem para o atendimento das necessidades sexuais dos desvalidos.

Pensam que exagerei em meu ofício de escritor utilizando excessiva permissão poético-tragicômica à construção literária das imagens do fim deste último parágrafo?

Quando me penso no lugar do Prefeito Marcus Odilon – que novamente dirige a Prefeitura de Santa Rita com a força de quem conhece os adubos da terra que lhe deu origem (ao mesmo tempo em que recebe pedradas de ex-companheiros que nunca poderiam atirar-lhe sequer uma lasca), entendo melhor porque sabiamente Jesus nos pediu para que evitássemos nos sujeitar aos impulsos que nos tornam juízes uns dos outros. A conseqüência disso (problema ou solução?) é que, assim, não haveria lugar para as oposições.

Quando lembro de outras histórias que minha esposa me conta de suas andanças por favelas e hospitais de Santa Rita e de cidades próximas, quando dentro de ambulâncias em busca de uma vaga à internação de enfermos, fico com receio de chocar o leitor ao superar o talento imaginativo-macabro de Stephin King (escritor norte-americano de livros de suspense e terror) se relatar, uma a uma, a duríssima realidade de grande parcela da população de Santa Rita.

Em Santa Rita, como em toda periferia, os que moram à margem do centro (dos movimentos decisórios) da cidade vivem, vias de regra, em situações sempre difíceis. Como provavelmente em todas as secretarias da Prefeitura de Santa Rita, no que diz respeito ao universo da educação pública municipal, também há grandes enfrentamentos em João Pessoa – como também diariamente denuncia o programa de TV Correio Verdade – à realização dos ideais de ressurreição do que há de melhor em nós; ressurreição que é símbolo do Sentido que devem tomar as ações dos de boa vontade às restaurações (e construções) do que há de melhor aos fundamentos ideológicos e materiais do pretendido novo mundo que querem fundar ao redor da Terra devastada.

Abril 2006