Lição de Humildade

Há alguns anos fui convidado para assumir o comando de uma instituição que se encontrava a atravessar alguns, muitos, problemas que colocavam, inclusive, a sua continuidade enquanto tal, em risco.

Há muito que eu me encontrava identificado com algumas dessas dificuldades, tinha até já colaborado com a dita instituição, de forma casual, nalgumas vezes, talvez tenha esse o factor que conduziu os seus membros fundadores a contactarem-me no sentido de me solicitarem a minha ajuda, pelo que resolvi aceitar, apesar de saber que não iria ser uma tarefa fácil.

Um dos grandes problemas da instituição residia na relação interpessoal, ou, melhor dizendo, na sua ausência, que se vivia nos colaboradores, remunerados, e que se apresentava como sendo a área onde se tornava mais imperativo intervir urgentemente, pois havia, em quase toda a classe directiva, a sensação de que muitos dos problemas que a instituição estava a viver, tinham origem nessa falta de relação patente entre o seu pessoal, isto é, o principal entrave ao avanço da instituição vinha de dentro da mesma e não de fora.

Assim que tomei posse, tomei uma decisão que se me apresentou como fundamental, ouvir todos os funcionários, primeiro em reunião geral, depois por sectores e, finalmente, um a um. A ideia que esteve por detrás desta minha estratégia foi a de que há pessoas que em grupo se sentem como que invisíveis para exprimirem pontos de vista que quando a sós não sentem coragem para tal, enquanto que outros, em grupo, sentem medo de expor essas mesmas ideias. Só que, ao contrário daquilo que muitos deles poderiam pensar, preocupei-me não só em captar ao máximo as opiniões emitidas em público, mas, principalmente isso, em identificar visualmente os seus autores.

Foi esta minha estratégia que me permitiu aperceber-me que aquela instituição se assemelhava muito a uma embalagem de Sheridan's, uma bebida que é composta por duas garrafas, uma contendo licor de baunilha e outra com licor de café, isto é, tal como na bebida, existia um objectivo comum a todos, na bebida proporcionar satisfação ao consumidor através de uma mescla dos dois licores, e na instituição atingir-se a produção pretendida através da conjugação do esforço de todos, mas a grande realidade é que os funcionários da instituição viviam como as duas garrafas, separadas e enrolhadas, só que as garrafas estão ao dispor do consumidor e não lhe oferecem resistência alguma, enquanto ali se registava o contrário, isto é, uns julgavam, aparentavam mesmo, ter alguma influência na classe directiva, chamemos-lhe a garrafa do licor de café, enquanto que os outros se movimentavam como meros peões operacionais, por analogia a garrafa com licor de baunilha. Esta nova compreensão da realidade da instituição, fez-me alterar, um pouco, a minha estratégia inicial, assim decidi não começar por ouvir os funcionários por sector, mas sim por os separar de acordo com a garrafa a que cada um me pareceu pertencer e resolvi começar pelo garrafa do licor de café, os influentes, que mais não eram do que aqueles que desempenhavam funções de topo na hierarquia das linhas de produção.

Hoje, bem digo a hora em que resolvi mudar a minha estratégia, isto porque, depois de ouvir a opinião dos elementos que da dita garrafa do licor de café, fiquei com a nítida sensação de que muitos dos funcionários que tinha colocado na garrafa do licor de baunilha, não produziam tudo o que se esperava deles, pura e simplesmente porque viviam no medo, constante, de que a sua continuidade na instituição fosse apenas uma questão da maior ou menor amizade a outra garrafa.

Todos, ou pelo menos a grande maioria, os elementos que se identificavam com a garrafa do licor de café usavam essa sua assumida capacidade de influenciar o futuro dos outros, para se colocarem como que num patamar acima dos demais.

Foi logo com a audição do primeiro elemento da garrafa do licor de baunilha que recebi a grande lição de humildade que vos resolvi contar hoje, mandei entrar o funcionário que aguardava ordem para tal e convidei-o a sentar-se, sabia que na reunião geral fora um dos que se mantivera mais calado, o que poderia não significar que fosse o mais conformado com a situação, pelo que resolvi provocá-lo um pouco:

- Então tu achas que a instituição vive à espera de uma oportunidade para te tramar e te mandar embora?

- Eu, muito sinceramente vai ter de me desculpar, mas essa sua pergunta dá-me vontade de rir.

- Dá-te vontade de rir, porquê? - Senti que ele se deixara atrair pelo isco que eu lhe lançara.

- Ora porquê? Então não acha que seria demasiada pretensão da minha parte, poder pensar, só pensar, que uma instituição como esta, não tem mais nada que fazer do que se estar a preocupar em tramar um dos seus colaboradores? Vai-me desculpar, uma vez mais, mas isso seria colocar-me num nível ao qual não pertenço, superior a todos os meus colegas, superior a tanta coisa que está, e muito, acima de mim. Quem sabe se o grande problema desta instituição, desculpe-me outra vez, não está precisamente aí, algumas pessoas pensarem que cada um, individualmente, é mais importante que o todo desta casa.

Compreendi, então, que o verdadeiro problema não estava na garrafa do licor de baunilha, mas sim na outra, na do licor de café, porque, tal como sucede na bebida, não é o licor de baunilha que teme o poder que o café tem sobre o ser humano, é este que teme ser vitima desse mesmo poder de atracção, isto é, o licor de baunilha, tal como o simples funcionário, vai desempenhando o papel que lhe compete, enquanto o licor de café, tal como os maus influenciadores, anseia pelo poder de atracção, mas ao mesmo tempo teme que essa mesma atracção se torne fatal, e que no fim a sua garrafa estejas vazia, enquanto a outra continua a exibir, orgulhosa, o licor de baunilha que impede o dono da casa de deitar todo o conjunto fora, isto é, a garrafa do licor de café teme que só consiga sobreviver enquanto o licor de baunilha conseguir resistir.

Francis Raposo Ferreira

FrancisFerreira
Enviado por FrancisFerreira em 28/02/2011
Código do texto: T2819948